Acidentes poéticos na topografia carioca

Crítica da performance O Confete da Índia, de André Masseno

30 de junho de 2014 Críticas

Vol. VII, nº 62, junho de 2014

Resumo: Este artigo analisa a performance O Confete da Índia, de André Masseno, focalizando seus deslocamentos de tempo e espaço, que reconfiguram a percepção de uma topografia poética no Rio de Janeiro. Atravessada pelo contexto social e cultural do desbunde, nos anos 1970, pela atuação de ícones das linguagens musical, teatral e fotográfica, a performance relê tais referências, trazendo à cena contemporânea uma proposição singular: o desbunde num mundo sem desbunde.

Palavras-chave: êxtase, corpo, desbunde

Abstract: This article analyzes the performance O Confete da Índia, by André Masseno, focusing their time and space dislocations, which refigure the perception of a poetic topography in Rio de Janeiro. Crossed by the social and cultural context of the desbunde era, in the years 1970, by acting icons of musical, theatrical and photographic languages, the performance reread such references, bringing to contemporary scene a singular proposition: the desbunde era in a world without desbunde.

Keywords: extasis, body, desbunde

Acidentes poéticos na topografia carioca

Foto: Nilmar Lage.

Os acidentes geográficos do Rio de Janeiro mobilizam seus habitantes. Vive-se no alto dos morros, quase no alto, na beira do mar ou das lagoas, perto da floresta, e ainda, no meio da planície-asfalto escaldante. Na zona norte, zona sul, zona oeste, no centro. Isto implica em subir e descer morros, escalar pedras, conviver com a floresta, descansar na sombra, para então contemplar ilhas. Ou, numa outra perspectiva, cruzar as ruas e avenidas congestionadas em meio a carros e buzinas, ouvir a fala abusada nos corpos muito cansados. Enfileirados. Separados pela geopolítica das ausências, silêncios, que anestesia e se incorpora nos veículos lentos e pesados.

Atravessar a cidade requer medições, cálculos improvisados, representações mentais sobre o tamanho dos carros, dos elevadores, das escadas, dos centímetros que restaram para apoiar a mão quando sai o vagão do metrô. Quantas pernas, costas, bolsas, conversas mal entendidas, desejos ainda cabem espremidos no vagão? Vale entrar ou ficar? Quantos metros é possível avançar apesar do barulho, dos escombros, de tudo o que ruiu, tombou, se desconectou? Quem ainda cabe nessa cidade real e sobrevive a seu colapso, seus fios de comunicação desencapados? Quem fica, quem sai? A cidade quer decisões.

Alain Berthoz, em seus estudos sobre a emoção, diz que a decisão “não é apenas resultado de uma deliberação racional ou de um processo emocional único” – ela pode ser completamente modificada por uma relação espacial em questão: quem decide precisa perceber um problema sob vários pontos de vista. (BERTHOZ, 1995, p. 75). Sendo a visão uma ação de olhar, adotamos posições e seguimos direções a partir do lugar em que estamos, das circunstâncias em que nos encontramos – “o julgamento é espacializado, como muitas operações mentais” e nossa concepção de mundo depende inequivocamente desse fato (idem). Então, de acordo com o ponto de vista em que nos situamos, vemos as coisas de uma maneira ou de outra, e aprendemos a mudá-lo a partir das novas posições em que nos colocamos, ou imaginamos nos colocar. (idem, p. 77).

A mobilidade como critério para a tomada de decisões é um ponto importante na tese de Berthoz, e mais, o fato de a imaginação ter um peso sobre o lugar em que acreditamos estar. A equação espaço/tempo, portanto, pode ser alterada quando algumas apostas são feitas para estarmos em outro lugar, real ou imaginário, para além daquele vagão onde não conseguimos (ou não queremos) caber. Façamos então uma mudança de ponto de vista.

Pensando numa abordagem rizomática – “não procure a raiz, siga o canal” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 30) – sair da cidade pode ser também ficar nela, em outras camadas e territórios, outras velocidades de aproximação ou distanciamento. As travessias demandam capacidade de invenção: pensar uma outra topografia, acidentada pelas ruínas do viaduto tombado, das vielas forjadas entre os tapumes das obras em que caminhamos sobre pedaços de madeira, terra e o ruído das britadeiras. Para então, se houver curiosidade em meio aos percursos apressados pelo centro da cidade, perceber a fina ironia da frase escrita que transforma os tapumes brancos acidentalmente em outdoors improvisados: “Fui crime, serei poesia.”(1)

Acidentes poéticos restauram pontes de uma teia social dinamitada e, centímetro a centímetro, deslocam a cidade real para uma outra subvertida, porém acessível, próxima de nossa rotina diária. Linhas de fuga se delineiam pelas ruas e regiões, delas se apropriando esteticamente e nelas criando zonas de intensificação em fluxos inconstantes, por ativações artísticas e sociais. Zonas em que ideias, corpos, lugares e afetos produzem, provocam, desestabilizam e acolhem outros corpos, lugares, afetos. Zonas onde a cidade parece ser uma outra cidade, tecida pelas forças que atravessam os corpos, num misto de poesia e violência.

Forças que crescem sem permissão, sem nenhuma utilidade, como ervas daninhas, “entre, e no meio das outras coisas”:

“A erva existe exclusivamente entre os grandes espaços não cultivados. Ela preenche os vazios, ela cresce entre, e no meio das outras coisas. A flor é bela, o repolho útil, a papoula enlouquece. Mas a erva é transbordamento, ela é uma lição de moral.” (MILLER apud DELEUZE E GUATTARI, 1995, p. 30)

Erva como transbordamento, força aparentemente inofensiva que toma algumas regiões da cidade sem avisar, na contramão de nossas percepções habituais.

No viés desta contracorrente, descrevo a seguir outro acidente.

No bairro de Botafogo, um dançarino se move envolto num saco preto. O saco preto cobre também sua cabeça. A movimentação é embalada pela música disco, americana. Dança sozinho e em seguida desliza seu corpo pelos espectadores, encostados à parede no pequeno espaço disponível. A proximidade desconcerta as pessoas, que a princípio parecem acuadas, mas depois entram no jogo. À medida que a música acaba, outra movimentação começa mais forte e centrada num só lugar, ao ritmo da percussão que introduz a voz de Gal Costa (milho verde, milho verde, ah milho verde…) A dança evolui, o dançarino abaixa o saco preto na altura do ombro revelando uma máscara no rosto, compondo um figurino semelhante ao dos “clóvis” do carnaval carioca de Realengo, Marechal Hermes, Santa Cruz, que saem em blocos pelas ruas, provocando graça mas também medo, ao jogar bolas nas pessoas para demarcar seu território de festa transgressora. Calçando sapatos vermelhos de salto alto dos quais eventualmente cai, o artista inicia assim sua performance: o “clóvis” como abre-alas do trabalho, meio masculino, meio feminino.

Na pequena e estreita sala do Solar Botafogo (2), no ambiente esfumaçado em que se pode ver as paredes descascadas, de aparência suja como um “inferninho” decadente, o público assiste de pé à performance O Confete da Índia, de André Masseno. Ele desliga o som, esfrega o chão primeiramente com as mãos, depois com o corpo todo como se quisesse limpar obsessivamente o ambiente e então levanta-se para dançar ao som de Villa-Lobos. O nacionalismo e a tentativa de imitar o que seria uma coreografia grandiosa, porém, já nasce com pequenos fracassos embutidos: os movimentos não terminam, não são bem “executados”, um pé está descalço, outro de salto alto.

As pequenas falhas deixam claro que não é a dança enquanto frases de movimentos o que está em questão, mas o caráter performativo, de acontecimento. Os gestos se querem sujos. Mergulhar em cada ação torna-se vital, assim como no momento em que Masseno, já descalço, sem máscara, sem sapatos e com um vestido dourado, dubla sem voz, só com os movimentos faciais, a música disco Hot shot de Karen Young. O inusitado do vestido leve e dourado no corpo musculoso e a revelação do rosto com barba provoca o riso imediato, sobretudo quando deixa entrever a calcinha de renda vermelha. A canção é imitada com prazer, mas não há preocupação em cantá-la em inglês – são as máscaras faciais e atitudes do artista enquanto canta que mobilizam o espectador. O que vai-se traçando nos gestos “mal acabados”, pouco a pouco, é uma fisicalidade soberana, que não se economiza, e essa generosidade alimenta o ambiente sensorial entre artista e público.

Soberano, na definição que adoto,

“(…)é aquele cujo presente não está subordinado ao futuro, em que o instante brilha autonomamente (…) É da ordem do jogo, não do trabalho. A sexualidade por exemplo é útil, portanto servil, já o erotismo é inútil, e neste sentido, soberano. Implica num dispêndio gratuito. Do mesmo modo o riso, a festa, as lágrimas, efusões diversas, tudo aquilo que contém um excedente.” (PELBART, 2003, p. 35)

Peter Pál Pelbart, ao comentar a noção de soberania via Georges Bataille, fala da lógica em que vivemos, centrada na utilidade, no acúmulo, na operação subordinada, no encadeamento da duração, e opõe a isto uma soberania, que se revelaria nos “estados difusos e subjetivos, de não servilidade, de gratuidade milagrosa, de dispêndio ou apenas dissipação” (idem). Soberania seria, neste sentido, uma “perda de si”, recusa de servidão. O que é “excedente”, poderíamos acrescentar a partir da performance, não é preciso, é da ordem da fruição – da brincadeira, do deboche, da irreverência, do prazer que transborda, desmedido.

Apesar dos excessos, há um rigor na composição. O improviso é estratégia para perder o controle, nos gestos que se intensificam provocando a confusão das referências espaciais, aguçando a presença – por exemplo, quando o performer passa da dança descrita mais acima, ao som disco, para uma movimentação mais próxima dos pontos de umbanda, sacudindo costas e cabeça, ainda que a música de discoteca continue. Os movimentos insistem, até transformarem-se num grito, que se refaz como se não quisesse terminar, como se o instante pudesse se prolongar e o artista se fazer presente infinitamente. Masseno, já no chão, põe-se de cócoras, rola, interrompendo-se para novamente gritar mais e mais. O grito, que a cada vez quer ser mais grito, é também uma forma de dizer ao público: a partir de agora tudo pode acontecer, é proibido proibir.

A cena se transforma pelo investimento nessa presença, que leva o dançarino a se levantar, abrir uma garrafa de cidra e beber muito. Rebola ao som de um funk, em pé, de quatro, ajoelhado, freneticamente, até parar e comer milho em conserva, com as mãos, sentado num canto da sala. Quando se levanta, coloca a peruca negra, e ouvindo Índia, de Gal Costa, move os cabelos (Índia teus cabelos nos ombros caindo/negros como as noites que não têm luar…) e então o corpo todo. As ondulações do torso são sintonizadas com o ritmo da música, assim como os pequenos saltinhos, numa composição ambígua entre a caricatura e o desejo de insistir naquela dança. Essa sequência de ações que começam com o funk, passando pelo milho e depois pela Índia de Gal, é contraditória pela sobreposição de referências musicais e temporais distintas, em que tudo é misturado para ser deglutido, comido, digerido. O milho é em conserva, não é espiga, e a Índia é falsa, seus cabelos são falsos assim como a atitude que imita um romantismo.

Foto: Nilmar Lage.

As referências à cultura nacional e à cultura pop entram na composição quebrando com humor o ambiente nostálgico que poderia se instalar. Este recurso se repete com a entrada da música Maria Fumaça, da banda Black Rio, trilha sonora de uma novela de sucesso: Locomotivas. Sintonizado com a música da novela – cuja chamada mostrava uma modelo sendo maquiada e penteada por vários cabeleireiros, como uma estrela (ou “locomotiva”) – Masseno coloca um vestido vermelho de festa, calça novamente os sapatos de salto alto e faz um desfile “coreografado”, experimentando ser essa outra pessoa de sucesso, embora a peruca esteja caindo, expondo sua própria falsidade, da mesma forma que a garrafa de cidra soava falso porque não podia ser champagne francês. A performance vai assumindo, ao longo de sua duração, este paradoxo que a impulsiona: a precariedade e ao mesmo tempo, o desejo de fazer (e ser) “muito”. [Eu sempre quis muito/mesmo que parecesse ser modesto/luxo para todos/muito é muito pouco…(VELOSO, 1978)].

Há um certo desconforto nesta atuação, o corpo não cabe em si, o tempo não cabe mais no presente, o pé não cabe no sapato, a dança não cabe no espaço que lhe foi destinado e o artista encosta no público. Tudo está enfaticamente acima do tom, a euforia excessiva é hilariante mas é também um vazio. Não há revolta, há uma carnavalização da falta, um impulso de fazer o máximo com aquilo que está disponível.

(A Índia/Masseno então faz pausa para o café, coado na calcinha vermelha. A pausa é um deleite, uma trégua do transe. O coador precário insulta o símbolo nacional do cafezinho, momento ritualístico do brasileiro cordial. Ao café ele/ela acrescenta um pouco mais de cidra, maçã, fios de cabelo. O café também é impuro.)

O que está disponível ainda: arroz com feijão, que o artista come e, sem nenhum cuidado, espalha pelo chão, pelo corpo, pela peruca negra. Em seguida, urina e desliza se lambuzando, em trajetória circular rente ao público, provocando um misto de susto e incômodo. Mas não é possível escapar, do incômodo nem da falta. O arroz com feijão, a cidra são o pequeno, o que é pouco, que não se equipara à “locomotiva”, ao salto alto vermelho, ao glamour – no entanto estão colocados lado a lado, como elementos a serem comidos, e acabam tornando-se combustão para uma apoteose em que a música de Caetano Veloso se impõe enquanto Masseno espalha a comida pelo chão, pela boca, pelo corpo: “Deixa eu dançar pro meu corpo ficar odara ficar odara minha cara minha cuca ficar odara ficar odara deixa eu cantar que é pro mundo ficar odara pra ficar tudo jóia rara qualquer coisa que se sonhara canto e danço que dará.” Dança agora com o cansaço, a peruca cobrindo o rosto, é o fim. Ele abre a porta interna da sala e sai de cena.

O final da performance é repentino, não há na verdade uma preocupação com início ou fim, o mais importante acontece durante, enquanto o artista experimenta sem tréguas a face e o corpo no nível máximo – uma potência que está no ato. Quando os espectadores entravam a dança já acontecia, e quando tudo termina e o artista sai, o público é envolto pela ambiência de fumaça, café, arroz com feijão, o resto da cidra, o som da música, o cheiro de urina e suor.

O material de investigação para o trabalho – a performance vocal e a imagem da cantora Gal Costa no álbum Índia, a teatralidade andrógina do grupo carioca Dzi Croquettes e os registros da folia carnavalesca feitos por Arthur Omar na série fotográfica Antropologia da Face Gloriosa – são relidos em O Confete da Índia, pelo próprio desejo de trazer à cena contemporânea comportamentos transgressores. A contundência cênica dos Dzi Croquettes, a sedução tropicalista de Gal, a glória e o transe registrados por Arthur Omar ecoam sua explosão sensorial na performance de Masseno, dando-lhe subsídios para uma proposição em tudo singular: o desbunde num mundo sem desbunde.

Em 1972, em plena ditadura militar e sob o lema “com a força do macho e a graça da fêmea”, os Dzi Croquettes criaram um espetáculo homônimo que investiu num comportamento transgressor: as convenções teatrais e coreográficas eram redefinidas por meio de uma narrativa não-linear e de quadros independentes, com movimentações próximas ao registro do cabaré, com cenários e figurinos sucateados, porém repletos de brilhos, cor e purpurina, como as maquiagens utilizadas pelos seus treze integrantes. Referências da cultura nacional mesclavam-se às produções da cultura de massa norte-americana, criando uma corporeidade plural e borrada. Mais adiante, em 1973, no período de lançamento do LP Índia, Gal Costa já era a musa do desbunde, com seus cabelos ondulados e longos, flores na cabeça, vestimenta ampla e registro vocal rasgadamente agudo e sedutor. Com arte de Waly Salomão e fotos de Antonio Guerreiro, o disco teve capa e contracapa censuradas, sendo comercializado envolto em plástico opaco de cor azulada. Com Índia, o desbunde tornava-se uma atitude de contestação à ditadura vigente, mirando na releitura do passado e na cultura de massa nacionais.

Em outro momento, entre 1973 e 1996, o fotógrafo e cineasta carioca Arthur Omar compôs A Antropologia da Face Gloriosa, uma série fotográfica constituída por registros em close up de rostos de foliões cariocas anônimos no instante de êxtase. As fotografias, em preto e branco e de dimensões grandiosas, constroem um acervo de múltiplas expressões do sujeito em condição extática, entregue à experiência corporal do transe carnavalesco, de caráter público e transitoriamente comum. As fotos capturam faces gloriosas em estado alterado, de passagem.

Este retorno aos anos 1970 é estratégico para o trabalho e seu humor crítico, tanto à atualidade do país, com suas dificuldades para compor as próprias contradições, quanto à produção artística contemporânea, muito identificada com um pensamento eurocêntrico de crítica à representação e à estética espetacular, com certa ênfase na recusa do movimento como dança, e ainda, na subtração rigorosa de elementos cênicos como a iluminação, o figurino, os adereços. O Confete da Índia, no entanto, parece dizer outra coisa. Ao deslocar tempo e espaço, pega esse touro à unha para compor com todos os seus elementos: dança, iluminação, figurino, adereços, sem medo das misturas – ao contrário, quer tudo aqui e agora, a pomba-gira da umbanda, o bloco dos clóvis, a Índia da Gal, a face gloriosa do carnaval, mesmo que a maneira de fazer seja “improvisada”, com um pé calçado e o outro não, que a peruca saia do lugar, que a comida suje o lugar da dança. Quer dançar com as “cafonices”, debochar de seu próprio estatuto de arte contemporânea. É como se algo novo surgisse a partir do que estava afastado no tempo, longe da cena, e agora transformasse o corpo de Masseno em muitos outros, dublando/falsificando Índia, travestindo-se em longas madeixas negras de fios falsos, trazendo de volta, ainda que criticamente, um país esquecido. Ao escapar ao contexto da crítica à representação, esta performance-espetacular torna-se delírio, confete de carnaval, de festa, de brilho, deixando-se atravessar por uma força não apenas artística, mas também social, de um período de verticalização em que algumas questões cruciais foram assumidas e confrontadas: as drogas, as ações coletivas, o corpo, as políticas do corpo.

A arte durante o desbunde estava intimamente relacionada a um comportamento aberto às relações em grupo, à contestação das imposições institucionais, às experimentações sobre os limites do corpo, convocando o público ao transe nos shows que tinham algo de ritualístico. Nesta perspectiva, Masseno busca uma aproximação singular com os espectadores, tocando-os fisicamente ou sensorialmente, sem estabelecer, no entanto, uma relação cotidiana, banal. Reinstala o subúrbio, a máscara de carnaval, convoca uma cultura carioca marginal que se impõe por certa agressividade, não é “bacana”, não está presente na convicção já tão assimilada do “menos é mais”. Ao contrário, seu trabalho parece dizer “é preciso (eu preciso) mais”.

O Confete da Índia investe numa temporalidade borrada, entre passado e presente, Dzi Croquettes e corpo musculoso, Tropicalismo e som operado no computador, a euforia e o que sobrou dela. O desejo atravessa o tempo de trás para frente e se materializa no transbordamento dos gêneros, no deboche com a dança, no improviso, imprimindo à performance o ritmo que ela impõe.

A estética suja, impura, está no confete, no carnaval, nos movimentos imprecisos, na alusão aos clóvis que brincam com a própria agressividade, nas falsificações da cidra/champagne e das dublagens. Tudo parece ser pouco, quando o confronto com a espacialidade é inevitável: nada cabe, o próprio corpo não cabe em si, nem o tempo presente basta.

Dizendo com Giorgio Agamben: Do que e de quem somos contemporâneos? (AGAMBEN, 2009, 57). Para nos conectarmos com o que nos potencializa, nos identifica, é preciso ir além do que é presente ou passado, jogar luz sobre o que estava na escuridão. O Confete da Índia faz deste modo uma inversão, um desvio de rumos no tempo que avança sem parar e revisita o passado, para tirar o presente da cronologia que o submete.

Agamben fala do que significa ser contemporâneo como uma não-coincidência com o próprio tempo, uma “discronia”, de alguém que adere ao momento em que vive e ao mesmo tempo dele se distancia:

“A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela.” (AGAMBEN, 2009, 59)

Nesta perspectiva, o olhar desta performance seria justamente seu olhar para trás, para o que estava no escuro. Ao inverter o tempo, inverte também o espaço, atravessando a cidade para jogar luz sobre a cultura suburbana e os inferninhos do centro da cidade, que não ecoam pela zona sul. Desviando o foco de uma zona da cidade reconhecidamente detentora de um poder cultural para olhar outras, a performance se insere na construção de uma cidade poeticamente sobreposta àquela outra “real”. Esta desterritorialização não é apenas no sentido de território enquanto espaço, pois reinstala um ambiente cultural com seus ícones, suas metáforas, ao revisitá-lo.

Como lembra Christine Greiner, quando se fala em desterritorialização, “não se trata de uma relação exclusiva com o espaço (uma mudança de local) e sim de uma reorganização sígnica que cria novas metáforas e mediações”. As metáforas, aqui, compreendidas não como figuras de linguagem ou produtos da imaginação poética, mas como “deslocamento de pensamento e ação” (GREINER, 2010, 47). Neste sentido O Confete da Índia opera uma reorganização sígnica, promovendo inversões na maneira de fazer e pensar a dança, ao reativar uma memória cultural passada numa conjuntura presente, investindo na energia que se dissipa, excede e transborda, pelas ações que não se economizam – e mediando esse investimento pelo humor, pelos movimentos imprecisos, pelas súbitas alterações nas referências temporais e musicais. Esta mediação feita pela performance expõe um problema que a constitui: sua identidade borrada, entre as contradições de um Brasil “país do futuro” e outro que restou, entre o êxtase e o arroz com feijão.

A tentativa de resgatar uma face gloriosa, para si e por extensão, aos que assistem e propagam esta experiência, reinstala na pequena sala de Botafogo um pedaço da cidade soberana, com seu destino carnavalizante que reivindica o gozo. Uma face que não se adequa à topografia da cidade real descrita no início deste artigo, medida pelos corpos que nela querem caber. Está naquela outra, subvertida, tecida pelas forças que não cabem, transbordando como erva daninha entre e no meio das coisas, como o tapume pichado, entre crime e poesia.

Ao transbordar, O Confete da Índia provoca nos espectadores uma inquietação, pelo compartilhamento de algo que nos é comum: isso que é pouco, precário, violento mas também glorioso, feito com o coração aos pulos.

Notas:

(1) Pichação feita pelo ator Bernardo Campos em vários locais da cidade citando frase do seu avô, o poeta Pereira Lima.

(2) Apresentação realizada em 2012. Solo criado em colaboração dramatúrgica com o coreógrafo mineiro Tuca Pinheiro. Percorreu várias cidades do Brasil entre 2012 e 2014. Contemplado pelo Fomento à Cultura Carioca 2013, da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. Prêmio Funarte Petrobras de Dança Klauss Vianna 2012 (Circulação). Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2011(Montagem). FADA 2011 – Fundo de Apoio à Dança, da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. Prêmio APCA de Melhor Projeto Artístico de Dança em 2013. Eleito pelo Guia Folha de São Paulo como um dos melhores espetáculos de dança de 2013.

Referências bibliográficas:

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009.

BERTHOZ, Alain. La décision. Paris: Odile Jacob, 1997.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 1995.

GREINER, Christine. O corpo em crise: novas pistas e o curto-circuito das representações. São Paulo: Annablume, 2010.

PELBART, Peter P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.

Recomendação de leitura:

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.

LAZZARATO, Maurizio. Puissances de l’invention: la psychologie de Gabriel Tarde contre l’économie politique. Paris: Les Empêcheurs de penser en rond; Le Seuil, 2002.

Ivana Menna Barreto é criadora/intérprete e pesquisadora carioca, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.

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