O Ritual-Exposição como recurso performativo autobiográfico
Texto sobre a performance Ascendência-Imanência-Transcendência
O Ritual-Exposição: Ascendência-Imanência-Transcendência foi uma ação ritualística em homenagem aos antepassados, aos ancestrais. A ação foi realizada no dia 11 de março de 2014, exatamente no aniversário de um ano de falecimento do meu avô materno. O ritual foi iniciado em uma aula da pós-graduação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), na disciplina intitulada Arte Relacional como Revolução dos Afetos – ministrada pela professora e performer Tania Alice. Esta disciplina propõe discutir e experimentar, de forma teórico-prática, a performance como potencializadora de afetos, numa dimensão espiritual da existência, através de uma abordagem ativa e crítica do conceito de Estética Relacional (BOURRIAUD, 2009) e da discussão de projetos de ASE (Socially Engaged Art – Arte Socialmente Engajada) (1). A disciplina também propõe discutir o conceito de ecosofia – proposta do livro As Três Ecologias (GUATTARI, 1990).
Nesse ponto é possível estabelecer um contato imediato entre a realização deste ritual performático, o já mencionado livro de Guattari e o livro A Hermenêutica do Sujeito, de Foucault (2006): me vejo, cultuo, reconheço, me responsabilizo, me analiso, me corrijo, governo a mim, me gratifico, me observo, me respeito. Respeito o outro. Respeito a história, numa forma de também reconhecer as próprias ações e perceber em que pontos algo pode ainda ser melhorado. O que você deixa para o mundo, para o próximo? Aqui falo dos meus velhos, os homenageio. Em agradecimento, numa oportunidade de rever momentos, com cada ancestral. Imanência e transcendência: acessar outros lugares presentes aqui, chamando a memória (vinda de onde?).
As relações entre o tempo, a finitude, o envelhecimento, o político e o espiritual, são temas caros ao meu projeto de pesquisa, realizado no mestrado da UNIRIO. A análise central de minha investigação são os entrecruzamentos entre a linguagem da performance e a velhice. Criei a terminologia performanciã (2) para a identificação de ações performáticas e práticas experimentais que se insiram dentro desses temas, apresentando peculiaridades, como seus agentes atuantes, seus discursos e sua finalidade.
A apresentação dessa performance ritualística e a dedicação da ação aos antepassados entram nesse projeto não exatamente como uma performanciã, mas como uma licença para falar com meus velhos ao buscar me entender, me decifrar no processo da existência, como dádiva ao tempo que passa na vida, que modifica e renova, marcando com memórias as histórias pessoais. Ritualizo o viver.
Richard Schechner, teórico dos estudos da performance, ao abordar o ritual como elemento presente na performance, nos apresenta a seguinte reflexão:
“Rituais são memórias em ação, codificadas em ações. Rituais também ajudam pessoas (e animais) a lidar com transições difíceis, relações ambivalentes, hierarquias e desejos que problematizam, excedem ou violam as normas da vida diária”. (2012, p. 49-50)
Schechner comenta que o comportamento artístico num performer não é “algo novo”, pois é experimentado por longo tempo de preparo e ensaio, através do corpo no tempo.
Ao longo do tempo de nossas vidas realizamos diversos rituais e nos preparamos para diversos fins. Afinal, através dos rituais podemos finalizar algo (algum ciclo, uma etapa), “ritos de passagem” (SCHECHNER, p.50), marcar um momento, prestar homenagens, nos transformar e afirmar uma identidade, por exemplo.
O ritual é cotidiano. Está presente em eventos caracterizados por convenções e codificações transmissíveis (como num casamento religioso), nos aspectos culturais (como o corte do prepúcio no bebê judeu e também como num funeral), religiosos (ceia de Natal), políticos (cerimônia de Estado) e sociais (como o vestibular): “Os rituais são pensamento em/como ação” (SCHECHNER, p. 58).
Ao pensar sobre mim, em uma apresentação pessoal que fosse performática, de cara já acessei que eu deveria falar do acúmulo de ações e gestos passados, derivado de um processo natural do mundo, descendente de muitas linhas que construíram mundos, até desembocar em mim – rio que ainda jorra em movimento.
Pensei nos meus ancestrais e seus caminhos, no Princípio Hermético sobre Causa e Efeito (3), revi fotos, vídeos e documentos familiares. Ali já tinha material suficiente para me apresentar, apresentando os outros. Beth Lopes afirma que:
“O espaço da memória é um lugar de trânsito de ideias e sentimentos, um lugar de subjetividades, de revelação da interioridade do performer na razão direta da sua exterioridade. As emoções que o performer perpassa na sua pele, na sua carne, na sua expressão inscrevem uma ‘matriz de si’.” (2009, p.137)
Senti-me em gratidão com todo o material que levantei, com os presentes das memórias vividas e não vividas por mim (pelo menos nessa existência). Cada tentativa, cada escolha, recaem em mim. Para isso, um ritual deveria ser feito (4), como agradecimento, acerto de contas (?), comemoração.
Também uma exposição, com documentos (certidão de casamento, carteira da Previdência Social e óbito de minha bisavó), fotos (desde os tataravós até a mim), árvores genealógicas (partindo de seis gerações atrás) que ajudam a remontar minha história, “vídeo arte”. Fotos com gerações de familiares parecidos. Minha avó bebê numa cadeira, avó criança numa cadeira, avó velha numa cadeira. Sujeitos dentro de um sujeito, sujeito a transformações. Beth Lopes explana essa relação entre o performer e a memória como material de apresentação:
“Este sujeito que não é tomado como um ser único, em sua condição individual, visto que é formado pelo discurso do outro e se encontra em posição de assujeitamento, se encontra representado pelos processos históricos e sociais. O performer, nesta abordagem, torna-se um sujeito de si mesmo, considerando que o discurso constituído pelo léxico de palavras e gestos é pontuado por referências trazidas no cruzamento dos outros discursos. São vários discursos em um só. Cada ação, olhar, andar ou sentir está associado a alguém que de alguma forma se insere na sua história, na da sua coletividade, na do seu tempo e lugar. O discurso do performer constitui sua linguagem a partir do contexto simbólico da sua memória, ligando materialmente, inconsciente e ideologicamente. O tempo, passado, presente e futuros são totalmente intercambiáveis. Na multiplicação dos tempos e espaços dos fragmentos da memória, se criam dobras que se dobram sobre si mesmas numa sequência de remissões ao conjunto a que as lembranças pertencem. Criar uma narrativa com a linguagem corporal significa agregar uma quantidade de fatos sobrepostos da memória que correm em diferentes direções. Sendo assim, os discursos da memória são sempre portais de inscrição de outros saberes, tempos e modos de existência.” (2009, p. 137)
Tendo o exagero como uma característica particular que identifico em mim (pensando em modos de apresentação de mim), essa exposição ritualística deveria ser recheada de elementos autobiográficos excessivos (fig.2), que confundissem os participantes do ritual em seus muitos detalhes, com informações simultâneas sendo compartilhadas. Um brainstorm. Exagero como um fervilhar. De acordo com Schechner (2011, p.62): “Rituais são superdeterminados, redundantes, exagerados e repetitivos”.
Além da opção por utilizar recursos diversos para compor a ação: ritual, exposição de fotos e vídeo arte (utilização de mídia audiovisual/ipad como máscara), momentos de memórias contadas, dançadas ou cantadas, compartilhamento de informações, identidade friburguense e proposta de escrita dos participantes para o ritual, etc.
Muitas datas, rostos, momentos. Símbolos. O espaço, dado como um límen (5) abrigou: um caminho feito com sal grosso, delimitando sete palmos (a maior distância entre nós e nós mesmos) até chegar à exposição; pedras de uma cachoeira friburguense (minhas pedras), separando o mundo cotidiano do mundo ritual-espiritual; búzios; vela para elevar os pensamentos às alturas; defumador se levantando em fumaça; roupa branca num código de paz, limpeza e cura; uma carta com muitas coisas de minha vida escritas (a ser entregue aleatoriamente); papéis para as pessoas escreverem ações/histórias (ou proveniência familiar) e palavras/energias emanadas aos antepassados. Na tarde do mesmo dia, após o término da ação enquanto exposição, estes papéis com intenções energéticas foram queimados nas areias da Praia Vermelha (fig. 5) e suas energias levadas até onde precisaram ir – de acordo com cada registro! Papéis diziam: família, ideograma japonês, votos, saudades, perdões, gratidões, lugares, desejos…
Entreguei a todos os participantes um papel (informe gráfico/esquema/árvore genealógica) onde se explica aritmeticamente que todos nós somos parentes (fig. 3). Se a população mundial em 1400 era de 450 milhões e se pela progressão aritmética nós teríamos mais de 1 bilhão de ancestrais, todo mundo é parente de todo mundo duas vezes (ou seja, por parte de pai e de mãe). Se alguém excluísse um bonequinho da representação da árvore genealógica que explicava esse fato, sumiríamos automaticamente. Subindo nossas gerações, nos encontramos em algum ponto.
Próximos à linha de sal grosso (limpeza do que conduz à profundeza espiritual no encontro ancestral), dois elementos de minha vida: um saco de cabelos que raspei para realizar sessões de quimioterapia e uma camiseta de quando tinha dois anos de idade (com letras gregas desenhadas). Objetos que marcam um passado são enterros abertos e nos trazem à lembrança de algo quando acessados. Estes elementos não estavam junto à exposição, mas sim, no caminho que me conduz ao encontro comigo mesmo. Meio de estrada. Como se estivessem lá pelos 4 palmos de mim a mim mesmo. Viagem.
Beth Lopes comenta como as opções do performer podem ser materializadas numa ação envolvendo a memória:
“No trabalho com o seus arquivos, conscientes ou inconscientes, o performer vai buscar formas de materializar aquilo que sente daquilo que relembra. O discurso que se constitui é heterogêneo, fragmentado e disperso por envolver os diferentes sentidos pelos quais ele é afetado.” (2009, p. 137-138)
A exposição-ritual contou com um “vídeo-arte” onde eram exibidas numa tela de ipad colocada como máscara sobre meu rosto (fig.4), imagens de minha família materna (avô, avó, mãe, tio, primos, irmãs). São imagens antigas, filmadas por meu pai (6) – que também editou as imagens com as músicas de Roberto Carlos (Meu querido, meu velho, meu amigo e Na paz do seu sorriso) e Chitãozinho e Xororó (Fogão de lenha). Longínquo dia dos pais de 1990 e outros fragmentos de infância (7). Durante a exibição, memórias eram acionadas e compartilhadas com os outros participantes do ritual: com um jornal aberto (tal qual a imagem que passava simultaneamente na máscara-ipad, de meu avô lendo um jornal no sofá) contei o último dia de vida do meu avô, no hospital – e que naquele dia completava um ano. Contei de como meus olhos viam a cozinha de minha avó no passado e de como me lembro dela hoje. Falei sobre o macarrão que ela fazia, enquanto o vídeo a mostrava preparava o almoço em seu fogão. Comentei a ordem da família no sofá da imagem que era exibida.
Esse processo aberto não se apresenta como resultado, mas como uma exposição que se espalha sem direção. Como raízes. Raízes minhas que se prendem no aqui-agora e perfuram o passado. Lopes divide conosco a seguinte reflexão:
“O trabalho do performer consiste em se confrontar, dia a dia, com a percepção de si. Amplia-se, desta forma, o poder de observação de si e dos outros. A sua expressão se constitui não só em um traço sensível do seu processo fisiológico e psicológico mais íntimo, mas também é a expressão individual resultante de um conjunto de relações sociais (…)” (2009, p. 138)
Ali comigo, muitos elementos catalisadores brotando, um caleidoscópio autobiográfico-espiritual: “Não são importantes as lembranças em si, mas o impulso acionado para lembrá-las (…)” (LOPES, 2009, p.138). Sem ordem, deixando o acaso e a intuição comandarem, a ação se permitiu ao jogo – e não somente a uma apresentação. O que surgiu a partir da proposta foi a emoção de criar um ritual para nossos antepassados. Todos os nossos – somos todos parentes (?). Num ritual, temos a possibilidade de nos aproximarmos em torno de algo que nos une em comunidade. Os que participaram do ritual, ali estavam com o mesmo intuito que eu: homenagear e (re)lembrar, refletir, celebrar. Portanto, prazer redobrado, compartilhado e ritualizado.
Notas:
(1) Conceito elaborado pelo artista mexicano Pablo Helguera – Seu livro ainda não apresenta tradução para o português.
(2) Para assistir às ações práticas realizadas no projeto Performanciã – incluindo o vídeo do ritual –, acesse o endereço do blog: <www.projetoperformancia.blogspot.com.br>.
(3) Resumidamente, este princípio, elaborado por Hermes Trismegisto (podendo ser estudado em livros, como o Caibalion), define bem o que somos: um acúmulo de ações de causas e consequências, que desencadeiam os movimentos de transformação do mundo, num acelerador do tempo pelas escolhas, opções e ações de nossos passados e de nosso presente.
(4) Para a realização do trabalho, foram pesquisadas diversas formas de execução de rituais para os ancestrais: na visão do xamanismo (o que mais norteou o trabalho), na visão do budismo, na visão dos celtas, na visão do Seicho No Ie e na visão dos cristãos.
(5) De acordo com Schechner (2011, p. 64), em performances estéticas e rituais, o límen é o espaço entre, o local da ação.
(6) Disponível em: <http://youtu.be/f032CtG1gBw > – Dulce e José com família
(7) Disponível em: <http://youtu.be/L2BPC6kAPIM> – Infância em Friburgo
Referências bibliográficas:
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Martins, 2009.
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Tradução: Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail – 2º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução: Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 1990.
LOPES, Beth. A performance da memória. São Paulo: Revista Sala Preta número 9, 2009.
SCHECHNER, Richard. Performance e antropologia de Richard Schechner. Seleção de ensaios organizada por Zeca Ligièro. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.
TRÊS INICIADOS. O Caibalion. São Paulo: Ed. Pensamento, 1978.
Vol. VII, nº 61, março de 2014