14.654 Tróias

Crítica da peça Sobre Troia[s], de Luiz Paulo Corrêa e Castro, direção de Bruno Henriquez

27 de agosto de 2013 Críticas
Foto: Rany Carneiro.

Sentei-me sem perguntas à beira da terra,
e ouvi narrarem-se casualmente os que passavam.
Tenho a garganta amarga e os olhos doloridos:
deixai-me esquecer o tempo,
inclinar nas mãos a testa desencantada,
e de mim mesma desaparecer,
— que o clamor dos homens gloriosos
cortou-me o coração de lado a lado.

(Cecília Meireles. In: Mar Absoluto)

Guerras: Médicas; Púnicas; Hussitas. Das Rosas; Do Peloponeso; De Secessão e Sucessão. Dos 100, 13, 30 ou 80 anos. Mundiais. Ao longo de milênios, 14.654 guerras, – em permanente expansão numérica: intermitentes, ilimitadas, diplomáticas, de guerrilha; civil, revolucionária, subversiva, fria; nuclear, biológica ou química. A história do homem é também a história das guerras.

Retornar à Guerra de Troia, a mais emblemática das guerras de que se tem notícia. Embarcar em naus rumo aos episódios legendários, que nos chegaram pela via da poesia épica de Homero, de existência tão controversa e enigmática quanto à autoria de suas obras, inauguradoras da literatura ocidental: a Ilíada e a Odisseia.

Com direção de Bruno Henriquez e orientação de Rosyane Trotta, Sobre Troia[s] esteve em cartaz no Forte de São João [Forte da Urca], numa parceria inédita entre a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e o Ministério do Exército. Com efeito, não há lugar mais apropriado para encenar a guerra do que a própria construção da guerra, cujas paredes, canhões e casas-mata testemunham e murmuram incessantemente isso. Lugar de memória, simbólico e funcional; lugar de história, repleto de vestígios petrificados, inscritos em arquivos: a construção, as armas e munições, os corpos dos atores itinerantes – “o memento, o índice, a prova e o testemunho.” (1)

Entre deuses vaidosos, herois modelares e homens de verve se desenrolam histórias intensas, tecidas nos fios emaranhados das Moiras, senhoras do nascimento, da fortuna e da morte. Por estas águas encantadas de um mundo em que deuses e homens con-viviam, todos igualmente como parte do Cosmos e co-partícipes da ordem que regia o mundo, navegamos em direção à cidade de Troia, aos seus mistérios e mitos, singrando por entre lutas, lutos e lendas.

Nas bodas de Peleu e Tétis se inicia o percurso – perigosa travessia nascida no seio da majestosa festa de celebração da união de uma deusa do oceano, dita a mais bela dentre as Nereidas, e um rei, guerreiro valente, porém mortal. Para prestigiá-los, todas as divindades do Olimpo compareceram ao monte Pélio, a fim de festejar junto aos nubentes. Ou melhor, quase todas. Éris, a deusa da discórdia, fora a única relegada, haja vista que a deusa, habitante do mundo subterrâneo de Hades, era conhecida por semear o desentendimento entre deuses e mortais, gerador de longas disputas e desenlaces fatídicos. Todavia, o desprezo iria feri-la profundamente. Seria necessário, portanto, traçar um plano para perturbar a alegria do banquete, no qual todos se divertiam ao som das liras, que acompanhavam o canto das Musas. Da vingança perversa da deusa, surge o famoso pomo da discórdia, uma maça de ouro, deixada sobre a mesa de Zeus, com a breve – e bélica – inscrição: “À mais bela”. Estava disseminada a desarmonia: Afrodite, Atena ou Hera? A quem se destinava o presente? Inoculado o veneno de Éris, germe da futura guerra, a tensão se espraiara pela festa. E, claro, não seria Zeus o árbitro de uma disputa tão explosiva. Deliberando agilmente, elege Páris, um jovem príncipe pastor, que vivia no alto do monte Ida, para a decisão. Ao mais belo dos mortais, caberia a escolha da mais bela dentre as deusas – sendo oferecida a ele, por cada uma delas, uma compensação caso fossem as eleitas. Hera oferece o poder e a riqueza incalculável; Atena, a sabedoria e a força guerreira; Afrodite, o amor de Helena, a mulher mais bela do mundo.

A decisão de Páris implicaria uma condenação, independente de sua escolha, afinal, o ultraje do mortal provocaria a cólera das outras deusas, sequiosas de vingança pelo juízo negativo. Afrodite é a eleita. Mas o preço da rejeição custaria demasiado caro a Páris, malgrado seu não-saber. E, da beleza incomparável de Helena, nasceria a guerra mais memorável de todos os tempos, unindo diversos reinos da Grécia, de forma inédita, para lutar contra a famosa [e poderosa] Troia.

Por Helena, milhares de homens deram as suas vidas, em batalhas que duraram aproximadamente dez anos até a queda da cidade do rei Príamo, filho de Laomedonte. Diante das muralhas, na agonística guerreira, num duplo movimento, os homens aparecem e consagram seus nomes e feitos, ao custo da morte dos inimigos. Em questão, para além da vitória, está a imortalidade, a honra, o lugar na memória dos homens, na escritura dos tempos, que consagrou, dentre outros, Aquiles, Ajax, Heitor, nobres guerreiros imortalizados pela excelência e pela coragem.

Foto: Rany Carneiro.

A dramaturgia de Luiz Paulo Corrêa e Castro, trabalho que transita entre os clássicos e contemporâneos, se arma numa mescla dos textos e das experimentações dos atores em sala de ensaio. Entre a tradição e a traição fiel, coloca em cena Homero, Giraudoux, Sartre, Sêneca, Eurípedes, bem como fragmentos epistolares do arquivo das guerras mundiais. Nesse sentido, potencializando em duplo movimento a intimidade e o estranhamento, somos convidados ora a dividir a alcova de Páris e Helena, cujo diálogo em tom intimista é quase a confissão [erótica] de um “segredo ao pé de ouvido”, ora a acompanharmos a batalha entre os exércitos grego e troiano narrada em tom futebolesco, enquanto se cruzam os soldados-jogadores sobre o campo agonístico. Analogias e imagens-guia que operam tensionamentos desconcertantes e, através dos estranhos jogos de lugares, sismos e fissuras, mobilizam os vinte e cinco atores, que atravessam os labirintos da guerra. Labirintos que são, como na poesia de Jorge Luís Borges, “redes de pedra”, em cujas tramas tantas gerações se perderam e se perderão, atenta Andrômaca a Heitor, pai que não conhecerá seu filho.

As pontes figurais, altamente alegóricas, trabalham com um “como se” que não se realiza plenamente. Entre o mito e o “discurso filosófico” da guerra, duas potências se entrecruzam – a força da imagem e o móbil da palavra. E, no tensionamento entre elas, a faísca e o relâmpago que surgem no intraficcional transbordam o próprio diálogo, criando lacunas, jogos de endereçamentos e de tempos sobrepostos. Súbito encontro com personagens canônicos e existências desconhecidas, exumados na dramaturgia de Luiz Paulo, e que “mistura como que para complicar mais, o próximo (muito próximo) e o distante, o defunto.” (2)

Assim, é feito o convite ao público para empreender junto aos atores essa viagem; a serem testemunhas e co-laboradores de uma Troia mítica, recriada na tentativa de trazer à luz os conflitos, os afetos, os medos e as glórias comuns a todas as guerras. Guerra-matricial, guerra-emblema, guerra-de-todas-as-guerras – Troias que não deixam de se suceder e atravessar percursos individuais e coletivos; de escrever sobre a superfície de muros e corpos uma infinidade de narrativas; e de escandir rupturas, dando início a novos tempos e novas Troias. Afinal, só os mortos conhecem o fim da guerra; os vivos, as exéquias.

E as máquinas de entranhas abertas,
e os cadáveres ainda armados,
e a terra com suas flores ardendo,
e os rios espavoridos como tigres, com suas máculas,
e este mar desvairado de incêndios e náufragos,
e a lua alucinada de seu testemunho,
e nós e vós, imunes,
chorando, apenas, sobre fotografias,
— tudo é um natural armar e desarmar de andaimes
entre tempos vagarosos,
sonhando arquiteturas.

(Cecília Meireles, in: Mar Absoluto)

Notas:

(1) DERRIDA, J. (2001) Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará. pp.7

(2) FARGE, A. (2009) O sabor do arquivo. Trad. Fátima Murad. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. pp.15

Diego Reis é mestrando e graduado em Filosofia pela UFRJ, e cursa graduação em Teoria do Teatro na UNIRIO.

Foto: Rany Carneiro.

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