Nós que aqui estamos por “voz” esperamos

Tatiana Tibúrcio escreve sobre Traga-me a cabeça de Lima Barreto, com Hilton Cobra

20 de fevereiro de 2018 Críticas

Sim! “Voz”. Não é um erro! É proposital. Tomo aqui a liberdade poética para fazer menção ao título do filme de Marcelo Masagão, Nós que aqui estamos por vós esperamos de 1999. Lembro-me claramente daquela noite, sentada na areia da praia de Ipanema, com o dinheiro contado da passagem no bolso, de ter sido arrebatada em minhas verdades diante de um imenso telão montado pelo Festival de Cinema do Rio; sozinha depois de um dia inteiro de maratona cinematográfica passando por Rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas, Infidelidade, Castelo Ratimbum. Vendo-as cair por terra e meus parâmetros se resignificarem diante de um arrebatamento culminado em lágrimas de libertação e alegria. Me senti renascida porque vi que não estava só em meus devaneios éticos. Eles não eram devaneios…! Os vi ter “voz” naquele momento. E me senti forte e corajosa o suficiente para seguir nessa caminhada chamada vida.

Muitos anos se passaram e “aqui estou”. Agora com um pouco mais que apenas o dinheiro da passagem no bolso (rs), com meu filho de oito anos sentado ao meu lado (sim! é de pequeno que se torce o pepino!) na platéia do teatro Carlos Gomes à espera do início do espetáculo Traga-me a cabeça de Lima Barreto. Mal sabia eu que estava a poucos minutos de viver as mesmas emoções e arrebatamentos que vivi há 19 anos. Meu mundo estava prestes a ganhar novos e ainda mais ricos contornos. Novamente diante de um momento de intensos questionamentos, a Vida, Deus, os Orixás ou no que quer que se acredite, estava me dando de alguma forma uma resposta. Ou no mínimo uma possibilidade. O que talvez seja ainda mais valoroso.

Durante 60 minutos vi a mesma magia se fazer viva em mim novamente. Agora não mais como um encontro comigo como ser humano, social, com todos os questionamentos de alguém que acreditava que podia mudar o mundo com arte e ideal. Mas como um ser/artista que se entendeu negra através da arte e que ainda tenta achar a sua arte negra. Pela potência da interpretação daquele que me apresentou o caminho para me entender como uma atriz negra, apoiado em uma ficha técnica que em sua maioria também fez parte desse entendimento (Marcio Meirelles, Zebrinha, Jarbas Bittencourt), vi novamente um novo mundo de possibilidades e comunhão de verdades se desvelarem diante de meus olhos.

Traga-me a cabeça de Lima Barreto é um espetáculo forte, contundente, visceral, profano (graças a Deus! rs), não só pela potência, propriedade e genialidade (me atrevo a afirmar) daqueles que o construíram, mas, e principalmente, pela condução do discurso. Pela capacidade de dar voz de maneira tão respaldada e inconteste a um grito que ecoa por gerações e que hoje se faz presente no brado retumbante de Hilton Cobra/Lima Barreto.

“Se em vida me submeti às mais sórdidas humilhações, em morte não cederei”

Aos 40 anos de carreira Hilton Cobra mergulha novamente no universo Barreteano. Em Triste fim de Policarpo Quaresma já tinha sido dirigido em Salvador por Luiz Marfuz. O mesmo que agora assina o texto de Traga-me a cabeça de Lima Barreto inspirado livremente em duas obras que são consideradas autobiografias, Diário íntimo e Cemitério dos vivos. E em romances, crônicas e contos de Lima Barreto. Com uma harmonia impecável, Marfuz entrecruza trechos de livros e da vida de Lima com trechos dos filmes Homo sapiens 1900 e Arquitetura da destruição que mostram fortes imagens da eugenia racial e da arte censurada pelo regime Hitlerista. Ambos cedidos pelo diretor Peter Cohen.

Fica muito clara na apresentação do texto e na construção cênica igualmente genial da querida Fernanda Julia, o quão solitária e feroz foi e continua sendo a luta do sujeito negro para se fazer existir em seu talento e genialidade. O quão dura é a nossa batalha para ter a nossa capacidade reconhecida num espaço onde o padrão não nos contempla. Onde somos vistos como exceção, como excêntricos, como exóticos. Onde nos é exigida um “dissecação” da nossa prática, do nosso fazer na tentativa não de compreender, mas de desqualificar nossa capacidade em um mínimo detalhe que seja. Sim, pois ao sujeito negro não é permitido errar como ao sujeito branco. Isso quando muito, pois na maioria das vezes essa “dissecação” é feita na forma da invisibilidade de nossos feitos pelas comissões competentes (ou que se consideram assim). Como explicar uma não chuva de indicações a prêmios para esse espetáculo por algumas instituições consideradas importantes das artes cênicas? Como um ator com a capacidade interpretativa, potência e veracidade de um Hilton Cobra é ignorado por prêmios como Shell, Cesgranrio e tantos outros? A invisibilidade também pode ser considerada uma eugenia dos tempos atuais. Neste caso, uma eugenia cênica. Muitas vezes só somos vistos e considerados por estes grupos quando sob a tutela do sujeito branco visto como o condutor de uma nau desgovernada que só encontra prumo pelas mãos daqueles a quem é conferida a competência.

Traga-me a cabeça de Lima Barreto nos convida a refletir, entre outras coisas, como o racismo nos leva à loucura de considerar louco aquilo que não entendo, aquilo que não se encaixa em um padrão pré-determinado, aquilo que não é o reflexo do privilégio e do poder.

Naquele dia, sentada na plateia do teatro Carlos Gomes no Rio de Janeiro, vi novamente os meus anseios ganharem voz e bradarem em um palco cenicamente enxuto criado por Marcio Meirelles que foi sutil e preciso em uma cenografia que funciona como um adorno elegante e discreto para um discurso que fala por si. E fala num brado visceral que ecoa dos tumbeiros, passando por Lima e vibrando através de Cobra até chegar numa plateia ansiosa pelo momento de soltar seu brado em “Bravo!!!”. Também traduzido em aplausos generosos como se a boca não fosse o suficiente para expressar toda a loucura de existir negro nesse país!

Sejamos todos loucos como Lima, como Cobra, como Marfuz, como Marcio, como Zebra, como Jarbas, como Fernanda Julia, como Jorginho, porque como diz Luciene Nascimento “… o bagulho é louco e é necessário ser mais louco do que o bagulho”.

Naquele dia, quando as cortinas se fecharam e as luzes da plateia se acenderam, eu pude constatar que diante de Traga-me a cabeça de Lima Barreto, NÓS QUE AQUI ESTAMOS, POR “VOZ”, NÃO MAIS ESPERAMOS!

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