Miséria e morte em confronto

Crítica da peça A pereira da Tia Miséria, programação do Festival Palco Giratório

24 de junho de 2013 Críticas
Foto: Natalia Turini.

“Pois toda a vida é sonho, e os sonhos, sonhos são.”

Pedro Calderón de la Barca em A vida é sonho

O Núcleo Ás de Paus, companhia baseada na cidade de Londrina, trouxe para a quinta edição carioca do Festival Palco Giratório, realizada no mês de maio, a peça A pereira da Tia Miséria. O espetáculo é baseado em um conto popular espanhol homônimo e apresenta uma metáfora sobre o ciclo da vida e seus desdobramentos, rememorando aos espectadores que a tríade nascimento-crescimento-morte faz parte do fluxo natural de todo ser.

A companhia se formou em 2006 a partir das oficinas de iniciação à perna-de-pau na Escola Municipal de Teatro de Londrina. A pereira da Tia Miséria é o primeiro espetáculo do grupo e estreou em 2010. A peça circulou por diversas cidades do Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. O Núcleo Ás de Paus concentra sua linha de ação na pesquisa de novas possibilidades para o corpo do ator e em como potencializar sua presença cênica.

O espetáculo foi concebido para ser apresentado na rua, em espaço aberto. Entretanto, na mostra do Palco Giratório, a peça precisou ser transposta para dentro do espaço do Teatro SESC pois as condições meteorológicas do dia não eram favoráveis para uma apresentação ao ar livre. A produção do Festival e o grupo optaram por essa solução para não ocorrer o cancelamento do espetáculo. Mesmo não sendo apresentado em seu espaço de concepção original, o trabalho do Núcleo Ás de Paus impressiona por sua potência e qualidade.

No centro do espaço cênico, temos uma imensa árvore metálica, de aproximadamente seis metros de altura. Seus galhos e folhas foram construídos com cabos de guarda-chuvas e materiais reciclados que ajudam a configurar o ambiente árido na qual a encenação se escora. A cenografia de Rogério Costa e Alex Lima ocupa quase que a totalidade do espaço, tanto em sua tridimensionalidade quanto pelos vazios significantes criados no espaço cênico e que complementam a dramaturgia de forma bastante precisa. O cenário se torna um dos grandes elementos de sedução do espetáculo. Outro fator de sedução que podemos destacar está na interpretação que demanda dos atores um grande preparo e resistência física, pois eles utilizam em cena pernas-de-pau e muletas de diversos tamanhos e formas na composição de suas personagens. As atenções se voltam para a técnica empregada na utilização destes elementos. Como verdadeiras extensões dos corpos, o uso da perna-de-pau é feito com tamanha competência e naturalidade que, em dados momentos da encenação, esquecemos que os atores estão se valendo deste recurso. Em algumas passagens, os atores também manipulam marionetes.

Em A pereira da Tia Miséria, tanto a maquiagem quanto os figurinos exercem papéis importantes. Esses dois elementos combinados recriam um universo de uma terra desconhecida e de pessoas não identificáveis. A maquiagem nos remete às pinturas de Peter Brüeghel e Jeronimus Bosch, pintores renascentistas que melhor expressaram em suas telas as figuras grotescas e seres imaginários. O mundo recriado pelo conjunto cenário-figurino-maquiagem nos transporta diretamente para as cenas campestres retratadas nas pinturas de Brüeghel. É como se estivéssemos olhando para uma projeção tridimensional de O Triunfo da Morte, quadro pintado pelo pintor flamengo em 1562. Tanto o figurino quanto a maquiagem influem decisivamente na relação com o corpo dos atores. Toda a carga emocional que a encenação carrega advém destes elementos. Não por acaso todos os figurinos optam por uma palheta de cores mais sóbrias, mais uma vez nos remetendo a figuras de Brüeghel e Bosch. Um exemplo claro desta característica pode ser vista em duas personagens distintas: Os meninos que atacam a pereira de Miséria, que são leves e alegres e trazem essa leveza nos trajes e na maquiagem, enquanto que Tia Miséria carrega todo o sentimento de perda e tristeza em uma figura sorumbática, pesada, grotesca e assustadora. Outra figura de destaque é a personagem Morte, na qual um dos atores está suspenso por uma imensa perna-de-pau dourada e ornamentado com uma bela capa preta.

O texto falado e – por vezes cantado – nos remete de imediato à cultura popular da Idade Média e do Renascimento. É possível identificar, na encenação do Núcleo Ás de Paus, alguns pontos de contato com o período conhecido como o Século de Ouro Espanhol, a época clássica e apogeu da cultura espanhola, que se estendeu desde o Renascimento do século XVI até o Barroco do século XVII. A pereira de Tia Miséria investe em uma musicalidade que lembra em certos momentos os autos sacramentais de Pedro Calderón de La Barca. Não obstante, o autor espanhol alcançou a notoriedade justamente por criar personagens frias, racionais e frequentemente obsessivas, como as dessa encenação do grupo londrinense.

Por fim, A pereira da Tia Miséria carrega em seu bojo uma grande carga de teatralidade, que é alcançada na medida em que a encenação mescla diversas linguagens como a do circo e a da música para estruturar a peça e a subjetividade própria da criação artística. O resultado é bastante gratificante como experiência teatral e histórica.

Informações sobre o grupo: http://nucleoasdepaus.blogspot.com.br/

Raphael Cassou é ator, iluminador e graduando em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

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