O teatro político e a teatralidade
Crítica do espetáculo BR-Trans, com Silvero Pereira
Vol. VIII n° 66 dezembro de 2015 :: Baixar edição completa em pdf
Resumo: Crítica do espetáculo BR-Trans, com Silvero Pereira e direção de Jezebel de Carli. O texto pensa a encenação a partir de noções históricas do teatro político e reflete sobre o uso da teatralidade na cena.
Palavras-chave: Teatro político, teatralidade, trans
Abstract: Review of the play BR-Trans, with Silvero Pereira and direction of Jezebel Carli. The text thinks the staging from historical notions of political theater and reflects on the use of theatricality in the scene.
Keywords: political theater, theatricality, trans
As discussões sobre gênero e identidade estão num momento de ascensão na sociedade. Atravessando os limites dos estudos especializados, refletir sobre o universo trans não é uma demanda exclusiva de instituições de ensino. Temos exemplos diários de novas histórias de vida de pessoas trans que vão desde a infância – com relatos de pais e crianças durante a fase de crescimento e formação do corpo e reconhecimento de identidade –, passando pela juventude – com desdobramentos da vida escolar, da entrada nas universidades, com o registro e alteração do nome social –, até a vida adulta – com o ingresso no mercado de trabalho fora da marginalidade e com direitos adquiridos. Muitos exemplos se compararmos com um passado recente, porém, poucas histórias para tantas pessoas ainda excluídas, que têm sua dignidade e cidadania negadas.
A visibilidade crescente do tema possibilita que a discussão se espalhe por diversos meios e expressões, que vão da escola à mídia, dos ambientes virtuais aos encontros cotidianos, dos livros às produções artísticas. Recordo-me de algumas peças e filmes nos últimos anos nos quais a reflexão sobre gênero era formadora do trabalho. A visibilidade do tema também permite que estes trabalhos artísticos se arrisquem num pensamento mais depurado sobre o universo trans, que se detenham sobre características e explicações que vão desde a biologia à psicologia desses personagens. Sem estereótipos, a subjetividade dos personagens fica em primeiro plano nas histórias contadas, e estes ganham uma densidade para além da casca do corpo-clichê.
É importante dizer que eu escrevo do Rio de Janeiro, capital, zona sul. Que estas peças as quais me referi foram feitas aqui e encenadas por artistas moradores daqui. É uma referência crucial esta, saber de onde se está falando. Infelizmente, devido ao pensamento de gestão cultural do nosso país, ficamos ilhados em eixos geográficos (Rio-São Paulo), o que, graças à centralização das políticas, torna difícil assistir ao que se produz fora das nossas regiões. Portanto, além de termos uma produção teatral muito autorreferente, lidamos ainda com condições de fala que refletem exclusivamente o nosso meio.
Falar do universo trans da zona sul do Rio de Janeiro é diferente das falas vindas das demais regiões da capital, como é diferente das cidades do interior do estado, como também das demais regiões do país. É necessário, portanto, que instituições como o CCBB se preocupem em descentralizar o acesso às pautas e ofereçam ao público e aos artistas o contato com uma maior diversidade de linguagens cênicas.
Com isso, quero dizer que este texto propõe um olhar sobre BR-Trans, espetáculo que tem atuação e texto do artista cearense Silvero Pereira, desenvolvido em residência no SOMOS Pontão de Cultura LGBT em Porto Alegre, a partir das referências trazidas dessas outras regiões do país. Desta BR que vai de uma ponta a outra do Brasil, mas que, no lugar onde moro, ela corta por fora.
É importante que se instale novas possibilidades de falas sobre um mesmo tema, mas que tais falas não sejam carregadas de um poder nivelador. Diferente dos dramas citados e aprofundados em questões subjetivas, Silvero Pereira constrói uma dramaturgia que estabelece uma relação com propriedades historicamente atribuídas ao teatro político. Menos psicologismos e mais grito, oriundo da denúncia legítima que nos esfrega na cara que, para cada pessoa trans sendo exceção e tendo entradas na vida social antes não vistas, existem milhares de outras que ainda buscam o mínimo: permanecer vivas.
A proposta da crítica é simples, destacar nos procedimentos formais do espetáculo o político – para o conteúdo, isto não se faz necessário. Começando pela dramaturgia, não por conta de uma ordem textocêntrica na crítica, mas porque, neste caso, é pelo texto que a encenação e a interpretação assumem as características estéticas apresentadas no trabalho. Quem são as mulheres trans de BR-Trans?
Quando me refiro aos traços do teatro político, faço pensando em uma caracterização alocada na história do teatro, não para determinar o que é ou não político, admitindo que existam limites rígidos para tal classificação (“tenho a tentação de acreditar que todo grande teatro é, por definição, político; mesmo quando se recusa a ser político” (DORT, 1977, p. 381)). O teatro político, tomando como contorno a explicação de Bernard Dort no texto Teatro político: uma reviravolta copernicana, tem suas bases no que foi chamado de “teatro do povo” pelos estudiosos da Europa Ocidental, no século XIX. Um teatro feito pelo proletariado, com fins na participação política pública. Em princípio, os espetáculos eram feitos pela massa (de proletários), contando histórias nas quais a massa era protagonista. Um teatro para contar a história na perspectiva de quem, normalmente, não aparece.
As mulheres trans de BR-Trans são as que vivem no extremo da marginalidade. As que são assassinadas das formas mais violentas, que são exploradas e abusadas pelos companheiros, as que estão presas por crimes que revelam a que tipo de vida estão condenadas, as abandonadas pelas famílias, as que usam toda força possível para fazer surgir algum amor diante da brutalidade.
Como Gisele Almodóvar (filha de Gisele Bündchen e Pedro Almodóvar), a travesti que tem no corpo de Silvero, desde 2002, seu lugar de pertencimento e fala. Gisele nasce de uma pesquisa do ator sobre transexualidade desenvolvida na companhia As Travestidas, do Ceará. Gisele Almodóvar, filha desta outra Gisele que tem uma vida irreal para quase todas as mulheres do mundo (com uma distância ainda maior para as mulheres trans) e de Almodóvar, cineasta que tem no repertório algumas personagens trans, além da estética kitsch, que reflete o mesmo universo, numa perspectiva de crítica social. A distância aqui pode ser compreendida quando o termo Cult aparece. Gisele Almodóvar, na frente dos espectadores, faz surgir risos melancólicos.
Gisele e Silvero dividem a cena, o corpo, a voz e alguns pronomes para contar a história de tantas outras mulheres trans que poderiam ser consideradas da massa, se não fosse a marginalidade que as retiram até mesmo deste grupo. O que interessa aqui é reiterar que a dramaturgia trata da massa das mulheres trans, não das exceções. “Agora eu vou contar a história de…”, a introdução usada por Silvero a cada novo relato insiste neste verbo: contar. Apenas, contar. Não criar significados e desdobrar camadas interpretativas, contar somente. Dar voz a narrativas não ouvidas. E mostrar as fotografias.
O elemento épico narrativo é fundamental para o teatro político do século XX, do qual Brecht é o principal formulador. Colocar a questão social acima dos dramas individuais, fazer do palco do teatro lugar que reconhece as vozes dos inconformados, para que, assim, o espectador realize uma “transformação real da sociedade a partir da tomada de consciência histórica da qual a representação foi o pretexto” (DORT, 1977, p. 391).
Seria querer demais, hoje, de um público que não representa a massa nem em quantidade, nem em perspectiva social. O jogo de identificação e distanciamento que o teatro épico brechtiano propõe – que não arrisco dizer que seria uma proposta de direção de Jezebel de Carli – fica comprometido, e, deve supor obstruções quanto à identificação, já que não reflete a vida cotidiana da maioria da plateia (ou da plateia inteira, ao menos no dia em que assisti). E cria também outra relação de distanciamento, que não diz do distanciamento que gera uma reflexão crítica acerca da própria história, mas evidencia a própria distância entre a vida do espectador e a do sujeito da narrativa. Nesse sentido, o verbo “contar” em BR-Trans é anterior a um assunto em comum entre palco e plateia, não se conta uma história familiarizada, se “apresenta” uma história excluída. Dado o teor dessas narrativas, a reflexão, num primeiro momento, perde para a sensibilização; o distanciamento crítico, para a empatia.
A comoção é um recurso do político ainda. E ela é gerada juntamente com a aglutinação de tantos relatos num só corpo – nomes são constantemente escritos no corpo do artista –, que desde o início já pertence a dois. O que traz à cena o personagem do teatro político com toda a sua impossibilidade de ser só um, de ser completo.
[Brecht] Numa polêmica a propósito de Os Soldados, de Theodor W. Adorno [,] sustenta que o teatro não pode mais nos mostrar o homem como indivíduo: diante da reificação radical (aceita por todos) do homem na sociedade de hoje, a personagem deve perder todo o traço individual, pessoal; ela só poderia ser o simples portador de um comportamento coletivo. É o que Ernest Wendt, comenta esta polêmica, traduziu assim: “O homem agindo espontaneamente e se desenvolvendo livremente; este homem, não mais podemos salvar”.
Ora, Brecht ainda pretende salvar o indivíduo. Por certo não sonha com uma salvação religiosa ou mística, nem uma salvação moral (e de algum modo existencial): é de salvação política, histórica, que ele fala. (…) É para poder, numa sociedade enfim transformada, voltar a ser plenamente um indivíduo (DORT, 1977, p. 394).
Um corpo para dois antes mesmo de estar no palco já é um corpo coletivo, político. Teatral, portanto, na vida. O tom documental das narrativas expõe uma teatralidade não atrelada ao exercício teatral, mas uma teatralidade presente na vida dessas mulheres, que comportam uma expressividade espacial, visual, corporal, facial e vocal, que flerta o tempo todo com a representação. A interpretação de Silvero percorre entonações, melodias, máscaras, corporeidades que reconheceríamos nessas mulheres em qualquer atividade cotidiana, o que, no entanto, para o público de teatro daqui, pode soar muito… teatral.
A mesma teatralidade interpretativa se espraia pelo cenário criado por Silvero Pereira e Marco Krug, que exibe com crueza objetos-clichês do universo trans que, de certa forma, pertencem a um imaginário coletivo. Sem disfarçar o ar underground e decadente, o cenário é composto por: uma penteadeira de camarim pobre com luzinhas, baús, um biombo ao fundo do palco, um altarzinho com imagens de santo, uma mesinha com aparelhos sonoros (mp3, rádio etc.), luminárias para luz indireta e um músico tecladista solitário (Rodrigo Apolinário, que também assina as músicas originais), que remete aos ambientes de gueto em fim de noite.
Neste cenário condensado de signos marcantes, tem mais um que traduz bem a teatralidade dessas vidas: o pedestal com o microfone. Na maioria das vezes usado para o canto, o microfone é o objeto que dá voz e põe luz sobre essas mulheres nos palcos de boates. Um lugar minúsculo de visibilidade frente às luzes da ribalta. As músicas escolhidas por Silvero – de Maria Bethânia às musas pops internacionais – pertencem obviamente ao mundo retratado, mas não são usadas simplesmente como trilha sonora emocionada para os relatos. Por serem cantadas na íntegra, a música cria um efeito de corte, comentário e transição entre as narrativas – como no teatro épico.
Mais um desdobramento da teatralidade cotidiana está presente na manipulação da iluminação cênica, pensada por Lucas Simas. É Silvero, Gisele e as outras mulheres – eu/ela, nós/elas – que põem a luz sobre si, tudo feito de dentro do palco-vida. Tem sempre um tanto de penumbra, as luzes são fracas, tem algo de submundo, fora as luzes de chão, da ribalta, que resguardam um resto de glamour agonizante. Operar a luz de uma autoiluminação, além de mais uma vez remeter à escassez da vida ao léu, denunciar o falso glamour, expor as fantasias, ainda revela toda a solidão à qual estão submetidas essas mulheres, que no máximo, têm a companhia delas mesmas. Pode também ser visto como um procedimento teatral propositalmente operado aos olhos do espectador, o que soma mais um recurso épico.
Sobre as narrativas, retomando a dramaturgia, é importante dizer que elas não comportam vidas inteiras – do nascimento até o presente – das mulheres apresentadas. São fragmentos. Partes que, vistas como panorama, até apresentam uma cronologia meio editada, mas que, separadamente, dão conta dos trechos mais emblemáticos das experiências relatadas a Silvero. Tais recortes, embora embasados por um nome que os sustentam, são também genéricos, tratam de situações possíveis a qualquer uma delas – basicamente, falam de violência, exclusão familiar, a vida na noite, dores. Pensar na especificidade dos recortes, na temática e no conteúdo, faz perceber que os trechos expõem imagens que não são surpreendentes (mesmo não havendo familiaridade com a vida cotidiana da plateia), uma vez que, infelizmente, o que se chega por meio de mídias e noticiários outros são essencialmente as mesmas histórias.
Como hipótese, é possível pensar a teatralidade de duas maneiras: como mediadora entre o conteúdo lugar-comum (dos meios de informação) e a plateia de um teatro; e, como um falso lugar-comum da vida dessas mulheres. Esta instância teatral da vida cotidiana não dura, não pode durar 24 horas por dia. Ou seja, leva-se ao palco um teatral socialmente codificado: a imagem teatral do cotidiano teatralizado dessas mulheres. Esta imagem do cotidiano teatralizado todos nós temos, nos escapa a imagem da realidade. A teatralidade apontaria, portanto, para ideia que se tem da vida delas, não para a vida delas. Tem-se, enfim, uma crítica à maneira como essas narrativas estão impregnadas de uma repetição castradora e vaga.
Não no espetáculo, mas fora dele. O eu narrador de Silvero tem uma força corporal que parece ir de encontro a esta ideia apresentada. No decorrer do espetáculo, seu corpo vai se inflando de raiva, que combina movimentos de luta com palavrões, e mesmo as canções mais doces ficam carregadas de fúria. O corpo exaltado vai contaminando os relatos e a cólera não descola mais da fala. É como se a raiva reprimida por séculos de inferiorização não pudesse mais ser contida. Isto não é um mero reflexo da imagem teatral que se tem da vida das mulheres, é um rasgo para o real. Usando com um pouco de descuido as palavras, é dizer que tudo pode parecer fantasia nessas vidas, falso (teatral), mas a raiva é de verdade.
Na origem destas formas novas do teatro político atual, há uma dupla verificação: a impossibilidade de apreender a realidade em seu conjunto e de transpô-la simbolicamente no palco; a falsidade ou, pelo menos, a insuficiência das imagens da realidade que os teatros se habituaram a nos dar. É nesta constatação que se enraízam o que se chama de “teatro-documento” e o que se poderia chamar – retomando uma expressão já velha de mais de meio século – o “teatro da teatralidade” (DORT, 1977, p. 397).
Compreender a teatralidade como cúmplice do teatro político. Tanto como meio, e aqui, ainda, como crítica de si mesma. Colocar uma membrana teatral sobre a vida dos outros é fácil, porque entretém. E ainda que esta membrana esteja lá em certos momentos, chegar ao lado que permanece na sombra é o que interessa.
É também sobre a experiência de uma distância que se fundamenta o que chamamos de “teatro da teatralidade”. Esta vez a criação teatral não nasce mais dos fragmentos da realidade expostos no palco: ela utiliza, como material, as imagens que fazemos desta realidade – literalmente nossas representações da realidade. Ela se apoia mais ainda no teatro. Não para descobrir uma verdade que seria a da arte, oposta à da vida […], mas para submeter nossas representações do real à crítica desta mesma realidade (DORT, 1977, p. 400).
No teatro, para o nosso tempo, a teatralidade “ainda” pode ser inestimável, para a vida, pode ser uma forma de não ver. Quando iniciei este texto, a ideia era apresentar uma possibilidade de leitura que aproximasse este espetáculo de um lugar já histórico do teatro político, porém, não se pode falar de um passado findo, quando o presente faz gritar a sua atualidade. Não se trata de uma nova forma, estamos falando de um teatro necessário.
Obs.: creio que fica óbvio o porquê de não haver na dramaturgia espaço para fazer distinções entre travestis, transexuais e transformistas – as pessoas não se preocupam/ocupam em dar espaço às classificações sociais e psicológicas. Não há espaço para subjetivações quando a visão teatralizada da vida coloca todas no mesmo pacote.
Referências bibliográficas:
DORT, Bernard. “Teatro político: uma reviravolta copernicana”. In: O teatro e sua realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977.
Recomendação de leitura:
LEHMANN, Hans-Thyes. “Teatro Pós-Dramático e Teatro Político”. In: Sala Preta. Revista de Artes Cênicas, nº 3, ECA/USP, 2003.
Mariana Barcelos é atriz, teórica do teatro formada pela UNIRIO e graduanda de Ciências Sociais pela UFRJ.