Tradição e criação

Crítica do espetáculo Caetana, da Duas Companhias, de Recife, programação do Palco Giratório

19 de maio de 2013 Críticas
Foto: Renata Pires.

A tradição popular é o que norteia a construção da cena de Caetana, espetáculo da Duas Companhias formada por Lívia Falcão e Fabiana Pirro, apresentado no Festival Palco Giratório que acontece no Espaço Cultural Escola Sesc, que fica na Escola Sesc de Ensino Médio, e em outros palcos da cidade. A companhia de Pernambuco partiu do desejo das duas atrizes de investigar suas tradições e “falar do seu lugar de origem”. A personagem Caetana é uma figuração feminina da morte da mitologia popular do nordeste do Brasil. O espetáculo apresenta ludicamente o embate entre a rezadeira Benta que, acostumada por função a encomendar a alma dos mortos de sua cidade, se vê agora na situação limite em que esteve vinculada durante toda a sua vida, ou seja, enfrentando a própria morte.

A beleza do trabalho é a conjugação do popular com a concepção da direção de Moncho Rodriguez, que deu vida a uma série de bonecos que são composições originais de materiais diversos como os do Mamulengo ou de bonecos portugueses. Ainda conjugam em suas figuras a exposição de dualidades também presentes nas personagens da morte e da rezadeira: a substância etérea e a terra. O texto dramatúrgico, elaborado por Moncho em parceria com Weydson Barros, tem uma leve musicalidade, não propriamente uma rima, mas que consegue dar a dimensão poética que seu tema apresenta.

A fábula de Benta mostra a inevitabilidade a qual os homens estão sujeitos – mesmo tendo matado os deuses, não conseguiram vencer o destino. O desenvolvimento da dramaturgia é uma visada no espelho com personagens devidamente encomendados à morte pela velha senhora, mas que de algum modo a ajudam no derradeiro momento. O texto deixa espaçar em alguma medida sua clareza no terceiro quarto do espetáculo, mas consegue recuperar sua diretriz mais adiante.

Os figurinos e a cenografia compostos pela direção são impecáveis. O palco se transforma em um pequeno picadeiro de circo, cuja iluminação, feita com candeeiros ou com as tonalidades azuis e vermelhas criadas pelo desenho luminoso de Luciana Raposo, nos faz ter visões de pinturas que favorecem a atividade da imaginação. Sua dimensão também nos dá a medida do personagem da morte vivida por Fabiana Pirro, ao mesmo tempo em que acentua a delicadeza de Benta com atuação de Lívia Falcão. No que diz respeito aos figurinos, o destaque é para sua composição complexa de texturas, formatos, cores e superposições, bem como os tamancos da personagem da morte que aludem aos que sabemos terem sido utilizados nas tragédias gregas.

As duas atrizes mostram dedicação e precisão em seus personagens inspirados na arte da palhaçaria e conseguem construir uma atmosfera cheia de afetos. As referências ao filme O sétimo selo de Ingmar Bergman e às figuras de Frederico Fellini são um acerto que promove a participação do público por meio de um imaginário do qual já é detentor. A figura da morte é humanizada, o que nos faz perceber o conteúdo dramatúrgico para além de seu aspecto universal, com possibilidades de entendimentos baseadas em nossas experiências.

Dinah Cesare é teórica do teatro, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na Linha de Pesquisa Poéticas Interdisciplinares e mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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