O lugar da mulher

11 de julho de 2017 Críticas

Nesta breve reflexão pretendo abordar dois trabalhos diferentes em tudo. Ledores no breu é um espetáculo de teatro adulto da Cia do Tijolo, um grupo de São Paulo, a cidade brasileira que mais tem políticas públicas para as artes cênicas. A peça é encabeçada por dois homens, o ator Dinho Lima Flor e o diretor Rodrigo Mercadante. Tempo de brincar é um espetáculo de circo para crianças da Trupe Açu, de Taquaruçu, distrito da região serrana de Palmas, capital do Tocantins. À frente do grupo de palhaçaria feminina estão três jovens mulheres: Giovana Kurovski, Mayara Cacau e Ester Monteiro – embora na apresentação a que assisti, no dia 4 de julho, estavam apenas duas, Giovana, a palhaça Girassol, e Ester, a palhaça Tapioca. O que aproxima as duas peças, à primeira vista, é o contexto em que ambas estão inseridas, a programação da Aldeia Jiquitaia, do Sesc Palmas, a que tive oportunidade de assistir enquanto ministrava a oficina intitulada “Des-pensar a crítica”, a convite do Sesc, em julho deste ano. Além disso, as duas peças se posicionam – cada uma a seu modo e em diferentes medidas – quanto a formas de exclusão social. Faço aqui um rápido recorte, procurando pensar a representatividade da mulher e o modo como é representada nesses trabalhos, sem a intenção de fazer uma abordagem ampla de cada um.

A exclusão de que trata Ledores no breu é o analfabetismo, exemplificado em diversos aspectos na peça. Costurando fragmentos de narrativas e de canções, o ator interage com os espectadores, faz personagens, narra histórias e entoa canções, homenageando grandes nomes que são referências para a criação do trabalho e para a tentativa de construção de um país mais justo. O principal homenageado é Paulo Freire, mas diversos outros são mencionados. Apenas homens, no entanto. Não há sequer um nome feminino na lista de filósofos, músicos e escritores reverenciados em cena. A mulher só entra na dramaturgia como personagem. Ela é objeto epistemológico, ou seja, é um dos temas do cenário cultural apresentado. Mas nunca sujeito epistemológico. A mulher tem nome, tem corpo; em determinado momento parece ser o mais puro objeto do amor. Mas voz mesmo, isso não tem. Representatividade também não.

A peça começa com a narrativa de um caso clássico. O ator faz um personagem que conta na primeira pessoa do singular a agressão a um suposto amante da sua mulher e o assassinato desta. Ele se entrega à polícia, levando consigo a faca que é prova do crime e uma carta da sua amada para o tal amante, prova do seu “motivo”. Ele pede para que o delegado leia, porque ele mesmo não sabe ler. A perspectiva do assassino é, como sempre, idealizada. O ator “defende” o personagem; sua paixão, sua convicção e seu sofrimento são colocados em jogo com fé cênica. O personagem não é apresentado como um assassino, mas como um homem apaixonado, coitado, que tem um código de honra a cumprir. A grande virada está na leitura da carta, que revela que a mulher não o traiu. Há aí uma cultura implícita de que “o pior” é que ela era inocente, como se uma comprovação da traição fosse justificativa para o assassinato, como observou a Valdete, aluna da oficina, em um de nossos debates.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

O que tenho a apontar como problema no espetáculo é que a identificação do espectador com o assassino, proporcionada pela maneira comovida como o ator faz o personagem, é um dado de naturalização, ou melhor, de perpetuação da naturalização do feminicídio. Já não ouvimos muitas vezes essa história? Sempre contada pelo ponto de vista do assassino? Sempre justificada pela paixão e pela honra, esses sentimentos supostamente tão nobres? “É cultural”, dizem… Até quando? E qual é a nossa responsabilidade quanto à manutenção dessa cultura?

Mas há ainda, na dramaturgia do espetáculo, uma camada de ênfase nessa virada moralista da prova de inocência. A peça guarda a leitura da carta por um tempo, interrompendo essa narrativa, passando por outros fragmentos de outras histórias, para mais tarde soltar um áudio com a leitura da carta, que vem como um golpe de teatro. Essa estratégia dramatúrgica de ênfase reforça – e com isso defende – o moralismo que sustenta o sofrimento do assassino. Como já entendemos que o problema em questão é o analfabetismo, o ponto de vista que está sendo construído é o de que o analfabeto, se soubesse ler, não teria matado a mulher. Na peça, ele não é um assassino, mas uma vítima do analfabetismo. Da forma como ele nos é apresentado, ele é quase tão digno de compaixão quanto a mulher esfaqueada. O golpe de teatro é bastante eficaz. As pessoas na plateia parecem achar tudo muito bonito, afinal, tudo na peça é feito com beleza. Mas, vejamos. Trata-se de uma história de assassinato, do folclore de um país que é um dos que mais mata mulheres (cis e trans) no mundo. Será que não está na hora de parar de fazer feminicídio parecer bonito, romântico, natural? Será que não está na hora de parar de reverenciar essa cultura só porque “é nossa”? Até quando os homens vão continuar vitimizando os assassinos?

Tempo de brincar. Foto Alessandra Britez.
Tempo de brincar. Foto Alessandra Britez.

Já o grupo de palhaçaria feminina conquistou a minha simpatia no que, salvo engano, deve ter sido logo o primeiro número. As palhaças Tapioca e Girassol começam a brincar de pular corda e cantam aquela musiquinha tão conhecida, mas com uma alteração significativa: “Um homem bateu em minha porta e eu NÃO abri.” Foi imediata a reação de algumas mulheres na plateia que, como eu, até aquele momento não tinham se dado conta do absurdo que é a pretensamente inofensiva letra original, que nos ensina a abrir a porta para qualquer homem entrar. Trocamos olhares, comentários, sorrisos. Nos vimos bem representadas.

O trabalho tem vários méritos, entre eles o modo como as artistas usam a precariedade como linguagem, aproveitando a seu favor qualquer elemento da rua e do acaso que venha a atravessar o espetáculo, conquistando com isso a cumplicidade do público desde a atribulada montagem do cenário contra o vento na praça. Tendo a brincadeira como principal elemento dramatúrgico, o trabalho não se pauta pela espetacularidade, mas pelo engajamento das crianças e adultos da plateia, que são convidados a participar literalmente da cena. Mas, para além do que pareceria um momento de distração descompromissada para as crianças, o espetáculo se mostra como um gesto consciente de posicionamento da mulher na sociedade contemporânea. À brincadeira inicial com a música de pular corda, somam-se outros momentos feministas, como o número de perna-de-pau, em que Tapioca enfatiza a ajuda da mãe e da avó para “subir na vida”, enquanto duas mulheres da plateia a apoiam para que ela fique de pé. Em outros momentos, Girassol repete o bordão: “Lugar de palhaça onde é? Onde ela quiser!”.

Ao final do espetáculo, depois de agradecer ao público, elas se apresentam e falam com todas as letras que estão ali defendendo o lugar da mulher no circo. Elas fazem essa defesa não apenas com o próprio trabalho, atestando a relevância da palhaçaria feminina, mas conscientizando espectadores e espectadoras, desde criança, da necessidade da mulher lutar pelo seu lugar. E, com relação a isso, elas não estão de brincadeira.

É mais que merecida e necessária a homenagem que a Cia do Tijolo faz a Paulo Freire, especialmente no Brasil pós-golpe. E a peça nos faz ver o analfabeto que existe dentro de cada um de nós. Mas, refletindo sobre Ledores no breu, à luz da consciência política das meninas de Tempo de brincar, há importantes considerações a se fazer. Penso no lugar da mulher naquela peça e vejo o óbvio, que a mulher não quer ser vítima da neurose romantizada dos seus assassinos, nem quer estar apenas entre as personagens de belas histórias, mas quer o reconhecimento do seu lugar como referência, quer ver nomes de mulheres entre os formadores da arte e do pensamento crítico no seu país.

Pôr em cena a violência e a estupidez do feminicídio é uma crítica ao machismo, claro. Mas fazer essa crítica repetindo a visão opressora de uma cultura moralista é dar continuidade à cultura da misoginia. E tratar como natural a ausência de mulheres em uma lista de nomes reverenciáveis da nossa história é ser conivente com e perpetuar o epistemicídio que, não só simbolicamente, também nos mata, nos oprime, nos apaga. Todos os dias.

 

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