Estética, cultura e teatro

Crítica da peça Jacinta, dirigida por Aderbal Freire-Filho

23 de fevereiro de 2013 Críticas
Foto: Divulgação.

Jacinta é uma comédia-rock muito bem-vinda na cidade que tem um gosto especial pelos musicais. Sua estrutura congrega uma espécie de exposição de quadros que perfazem a trajetória artística da protagonista e indica uma forma de pensar. Podemos fazer uma alusão, se quisermos, aos milagres medievais que contavam a história de santos, também compostos por golpes de teatro. Mas ao passo que nos chamados milagres os golpes de teatro são, muitas vezes, manifestações divinas, aqui eles tomam uma feição inversa, mundana, e suscitam, como os primeiros, uma boa dose de humor, porém, alicerçados por releituras de citações históricas. As produções do gênero musical que normalmente assistimos são versões de musicais importados, o que é revolucionado em Jacinta, notando que não se trata de um musical biográfico que conta a vida de um compositor, alternando cenas com suas músicas (particularidade de um gênero mais explorado na produção de musicais no Rio). A fábula trata da saga de uma histriônica atriz portuguesa – considerada a pior de sua época – que promove, com sua atuação, a morte da rainha de Portugal e a desgraça do renomado dramaturgo Gil Vicente. Em vista disso, ela se vê em um exílio forçado em terras brasileiras.

A graça da dramaturgia está em mostrar a miscigenação, os mecanismos que originaram o país por meio de deslocamentos, como um navio que mudou de rumo, de mudanças dos lugares-comuns sobre a gente que povoou o Brasil em seus primórdios. Coloca os artistas em primeiro plano. Foram eles, os artistas mambembes, as companhias de repertório que construíram as aventuras do pensamento enquanto os donos da cultura tradicional pereciam. Ou, em uma visão igualmente possível, a tradição só se perpetua quando profanada, quando pode ser utilizada pelos homens. Jacinta é uma composição estética e cultural numa bela homenagem ao teatro, aos seus procedimentos que o ilusionismo procurou esconder, às influências do Século de Ouro do teatro espanhol, ao dramaturgo Willian Shakespeare e ao teatro jesuíta – aos “fantasmas” que nos formaram.

A cenografia de Fernando Mello da Costa deixa à mostra as laterais do palco do Teatro Poeira criando camarins, igualmente visíveis, ao mesmo tempo em que elabora um espaço fechado e “quente” para a representação. Isto evidencia a cenografia como qualidade sempre em dubiedade que faz com que o público não perca de vista a tensão dupla entre personagem e atuante, característica da arte teatral. Neste sentido é possível ver os atores sentados aguardando seu momento de entrar em cena e se transformado com acessórios, mas, por vezes, o movimento da cena faz a audiência se surpreender com algumas dessas transformações.

A direção de Aderbal realizou um trabalho em conjunto com os atores e com Branco Mello, diretor musical, sobre o texto de Newton Moreno, construindo um espaço em que a autoria se confunde com um limite invisível. O paradoxo do ator se aproxima ao do autor. O resultado é a saga exposta por uma visão de multiplicidades, mesmo que em algum trecho mostre certa perda de ritmo. As músicas apresentam situações e personagens e brincam com a ideia de uma rima estranha, o que ainda é ressaltado pela mistura tema/ritmo de rock e pela prosódia portuguesa.

A atriz Andrea Beltrão mostra precisão e afeto na composição da protagonista. Imprime a conexão entre texto e teatralidade em sua corporalidade, gestos e sonoridade da língua. O elenco formado por Augusto Madeira, Gilray Coutinho, Isio Ghelman, José Brant e Rodrigo França evidencia apropriação do trabalho, sobretudo por encarnar uma trupe na posição crítica daquele que expõe os fatos e se diverte ao mesmo tempo.

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