O valor da superficialidade em O Retrato de Dorian Gray
Estudo sobre o romance de Oscar Wilde, encenado pela Cia de Teatro Íntimo
O presente artigo foi escrito para o debate do ciclo Encontro Pensamento, organizado pela Questão de Crítica em parceria com a Ocupação Complexo Duplo do Teatro Gláucio Gill. O debate for realizado em função da montagem da Companhia de Teatro Íntimo para o romance O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Participaram do debate: Masé Lemos e Tiago Leite.
Na passagem do século XIX para o século XX, o debate acerca do conflito de valores entre vida e arte, verdade e ficção, moralidade e prazer, gozava de grande popularidade entre artistas e intelectuais. Nessas polêmicas, era comum a apologia de uma arte hostil ao status quo, quase sempre representado pelas figuras do moralista cristão (católico ou calvinista) e do burguês filisteu. Assim, enquanto Baudelaire dizia: “O homem de letras é inimigo do mundo” (BAUDELAIRE apud GAY, 2009, p.30), Gautier reforçava o coro, afirmando que: “A arte serve apenas a si mesma – não à riqueza cúpida, não à Deus, não à pátria, não à auto-glorificação burguesa e certamente não ao progresso moral”(GAUTIER apud GAY, 2009, p.68). Foi nesse clima que Oscar Wilde escreveu O retrato de Dorian Gray.
Resumidamente, pode-se dizer que foi uma época marcada pelo declínio da moral religiosa e consolidação dos Estados seculares, assim como pela industrialização avançada e inúmeras descobertas científicas. Esses eventos que alimentavam o culto ao progresso estimularam a produção de uma arte realista que almejava reproduzir, sem idealização ou sentimentalismo, os fatos da vida.
Por outro lado, o Romantismo, que vinha apontando as limitações do iluminismo-racionalista desde o século XVIII, teve ampla influência sobre artistas e escritores que buscavam alcançar as profundidades da subjetividade humana. De modo que esse também era um tempo de idealismos, principalmente da parte de uma linhagem de artistas que procuravam “dar um sentido elevado ao comum” (NOVALIS, apud SAFRANSKI, p. 17)
Em meio a esse “Fla x Flu” que marcou o século XIX, alguns modernistas avant la lettre surgiram para embaralhar as cartas. Oscar Wilde, sem dúvida, foi um deles. Não é à toa que no prefácio de O retrato de Dorian Gray observamos a dupla afirmação:
A antipatia do século XIX pelo Realismo é a raiva de Caliban ao ver sua cara no espelho.
A antipatia do século XIX pelo Romantismo é a raiva de Caliban por não ver a sua cara no espelho (Wilde, 1961, p.31)
Sem dúvida, a concepção de arte definida no prefácio e ao longo do livro pulveriza algumas das mais usuais preocupações realistas e românticas. Ali, Wilde apresentava uma questão bem mais instigante: a da diluição da antítese entre forma e conteúdo.
É quase impossível, hoje em dia, encontrar algum crítico que defenda explicitamente a oposição entre estilo e mensagem. Existe um consenso no meio teórico em torno da idéia de que as duas instâncias são indistintas e organicamente engendradas. Na prática, porém, as coisas não funcionam bem assim. E não é preciso grande esforço para constatar a presença marcante dessa dualidade organizando nossos julgamentos estéticos no dia-a-dia.
A maior parte dos estudiosos concorda que o problema surge com Platão e com sua teoria mimética, que concebe a arte como imitação da realidade. Como se sabe, Platão considerava os objetos materiais imitações de formas ideais e transcendentes. Por conseqüência, a arte era vista como a imitação da imitação.
Susan Sontag argumenta que o problema da teoria mimética é que ela impõe à arte a obrigação de justificar sua existência, já que, de acordo com essa tese, a arte além de ser vista como algo inútil (por exemplo, um retrato de uma cadeira não serve para se sentar nele), também é julgada como uma perigosa e sedutora falsificação da verdade. Para Sontag, então:
(…) no mundo ocidental, a consciência e a reflexão sobre a arte permaneceram dentro dos limites fixados pela teoria grega da arte como mimese ou representação. É em função dessa teoria que a arte enquanto tal – acima e além de determinadas obras de arte- se torna problemática e deve ser defendida. E é a defesa da arte que gera a estranha concepção segundo a qual algo que aprendemos a chamar forma é absolutamente distinto de algo que aprendemos a chamar conteúdo, e a tendência bem-intencionada que torna o conteúdo essencial e a forma acessória. (SONTAG, 1987, p.12)
Creio que um dos grandes feitos de O retrato de Dorian Gray é o de propor o embaraço desse dualismo. Por todo livro Wilde defende a inversão da teoria mimética e de suas conseqüências morais. Ou seja, o que normalmente tomamos como o conteúdo verdadeiro, profundo e oculto é desprezado em nome das aparências superficiais e imediatas.
Vejamos, por exemplo, uma das cenas iniciais do romance, na qual o cínico Lord Henry Wotton conhece o então ingênuo Dorian Gray e discursa sobre a beleza e o pensamento. A princípio ele afirma concordar com a opinião comum de que a beleza traz, de fato, algo de superficial em si. Apenas para, logo em seguida, completar: desde que não a comparemos ao pensamento! Se comparada ao pensamento, diz ele, a beleza é muito mais profunda. E arremata o discurso com a sentença lapidar: “Somente as pessoas superficiais não julgam pelas aparências. O mistério do mundo está no visível, não no invisível” (WILDE, 2010, p. 31)
Em outra passagem, essa idéia é exposta do ângulo mais especificamente artístico. Assim, logo que Basil Halward (o pintor do retrato que dá título ao livro) termina a obra, decide por não expô-la, temendo que ela explicite muito de sua personalidade e de seus anseios secretos. Passado algum tempo, contudo, Basil pondera sobre sua primeira decisão e chega à conclusão do:
(…)erro que há em pensar que a paixão experimentada na criação possa realmente exprimir-se na obra criada. A arte é sempre mais abstrata do que imaginamos. A forma e a cor nos falam da forma e da cor e nada mais. Parece-me muitas vezes que a arte costuma ocultar o artista mais totalmente do que o revela. (WILDE, 1961, p.113-114)
Ambos os exemplos carecem de maiores explicações tal a objetividade com que invertem o senso comum. Todavia, o que mais caracteriza a subversão da tese platônica no livro é a própria alegoria do retrato de Dorian Gray. Pois, enquanto o personagem principal de carne e osso vive no hedonismo intenso sem sofrer as conseqüências do tempo e do espaço (sem adoecer, envelhecer etc), seu retrato paga o preço encarnando todas as mazelas de sua vida libertina, se decompondo em uma figura cadavérica de aspecto imoral.
A parábola é acompanhada em todo o livro por epigramas nos quais Wilde parece se divertir semeando a confusão de nossas tradicionais concepções representacionalista. Repetidamente ele nos apresenta a representação da realidade como algo mais real do que a suposta realidade representada. De maneira que quando Lord Henry afirma: “adoro o teatro, é mais real do que o mundo”(WILDE, 2009, p. 81) ou quando o narrador comenta: “As palavras, como são terríveis! Quantas são límpidas, fulgurantes ou cruéis. As simples palavras! Que há de mais real que as palavras? (WILDE, 2009, p.29)”, nós somos levados a suspeitar das nossas prateleiras conceituais fixas, nas quais julgamos separar perfeitamente o mundo e suas representações, como se houvessem coisas fora da existência e outras dentro.
Creio que não só no livro em questão, mas em toda sua obra, Wilde buscou insistentemente demonstrar que aquilo que a maioria das pessoas julgava ser penetrante e verdadeiro era, na verdade, falso e superficial. Nesse caminho, o primeiro passo foi o de criticar a idéia de que a verdade se encontra num plano invisível e que, consequentemente, nosso mundo sensorial carrega algo de falso consigo. Com isso, renegou a velha tradição que prescreve desconfiança das sensações e confiança nos juízos morais.
Wilde, no entanto, não vai parar por aí. Ele aprofunda o problema ao levantar dúvidas não apenas sobre a visibilidade ou invisibilidade da verdade, mas sobre o próprio valor da verdade em nossas vidas. Desse modo, se pergunta o quanto a mentira ou a ficção poderiam servir a vida, tornando-a mais saudável, plural e criativa, e o quanto, inversamente, a mania de sempre falar a verdade poderia ser considerada “uma faculdade mórbida e malsã” (WILDE, 1961, p. 1073).
Em uma passagem do livro, o narrador comenta:
Será tão terrível assim a insinceridade? Não creio. É simplesmente um método pelo qual podemos multiplicar nossas personalidades. Tal era a opinião de Dorian. Ele estranhava a psicologia superficial que consiste em conceber o Eu no homem como uma coisa simples, permanente, digna de confiança e guardando sua essência. Para ele o homem era um ser de múltiplas vidas e múltiplas sensações, que levava em si heranças estranhas de pensamentos e de paixões e cuja carne estava minada pela enfermidade monstruosa da morte. (WILDE, 2010, p.138)
Para Dorian Gray, a insinceridade, a mentira e a ficção eram múltiplas, comportavam o bem e o mal e toda a escala de sensações disponíveis. A verdade ao contrário era estática, restritiva e não dava conta de todas as riquezas possíveis de serem experimentadas. De forma análoga, esta passagem pode ser interpretada como uma crítica direta a noção de sujeito cartesiano, unificado pela identidade e pela razão.
Ao fim, alguns podem enxergar em tudo o que é dito no livro (e na maior parte da obra de Wilde) uma espécie de mensagem a favor do cinismo esteticista, enquanto outros, por conta do destino trágico do personagem principal (sua decadência e morte) poderiam interpretar o livro como, no fundo, uma peça moralista, já que o hedonismo e o desejo de ser jovem para sempre são castigados no final.
Enganam-se, no entanto, os que buscam um conteúdo escondido ou uma moral da história. O que Wilde nos fornece muito antes de qualquer mensagem é a idéia de suspensão do juízo.
Nas cartas de resposta que escreveu para vários jornais, em função das críticas negativas que recebeu pelo seu livro, Wilde explica detalhadamente que uma obra de arte não pode ser julgada no terreno ético-moral, mas somente no terreno estético. O clássico prefácio que introduz o livro, inclusive, foi escrito como réplica aos vários ataques e mau-entendidos sobre as supostas intenções morais de Wilde por trás da história. Para ele, entretanto, o verdadeiro artista deveria manter sempre uma distância do tema que trata.
Quanto mais distante está do tema, mais liberdade tem o artista para realizar sua obra com competência. Um artista não tem nenhuma espécie de simpatias éticas. A virtude e a maldade são simplesmente para ele o que são para o pintor as cores em sua palheta. Por meio delas pode produzir certo efeito artístico e o produz. Iago pode ser moralmente horrível e Imogênia de uma pureza imaculada. Shakespeare sente tanto prazer em criar um como em criar a outra. (WILDE, 1961, p.1327)
Podemos concluir com Wilde que a arte deve preferencialmente ser avaliada pela experiência estética e não por seus supostos preceitos conceituais e morais. Uma obra bem sucedida é mais o resultado da expressão polissêmica da vontade do autor, do que da intencionalidade de conteúdo. A experiência estética, diferente da experiência discursiva, vai além da explanação, do argumento ou da explicação. Ela é, talvez, algo mais próximo da sedução, da provocação e do envolvimento.
É por isso que as lições de moral extraídas das grandes obras, em geral, refletem muito mais o espectador do que a própria obra. Enquanto a moralidade a princípio deve ter alguma utilidade (uma vida mais fácil, feliz, pacífica, honrada e etc.), a obra de arte, ao menos depois da modernidade, não deve ter nenhuma utilidade pré-fixada, muito menos uma utilidade moral, sob o risco de mediocrização fulminante .
Milan Kundera explica isso com precisão ao definir o romance como a arte irônica por excelência. Para ele, a ironia irrita, não porque zomba da nossa cara, mas “porque nos priva das certezas, desvendando o mundo como ambiguidade”. Em seguida ele expõe essa idéia na forma de uma pergunta retórica: “Quem tem razão, quem está errado? Ema Bovary é abominável? Ou corajosa e comovente? E Werther? Sensível e nobre? Ou um sentimental agressivo, apaixonado por si mesmo? Quanto mais atentamente se lê o romance, mais impossível se torna a resposta” (KUNDERA, 2009, p.125)
É importante terminar ponderando que tudo o que foi dito nesse artigo não deve ser levado ao pé da letra. Ou seja, não devemos concluir que não há interpretação possível para a arte e que ela deve ser contemplada em silencio. De certa forma, é impossível para um ocidental não interpretar uma obre em termos de conteúdo e forma, pois faz parte da nossa educação e da nossa cultura. Falamos por meio de um vocabulário completamente mergulhado nessas noções. E, sejamos honestos, o que é esse texto senão mais uma tentativa de interpretação daquilo que não estava à mostra à primeira vista.
Por outro lado, obviamente existe algo de moral em toda obra de arte, bem como não podemos abrir mão completamente de nossa moralidade quando estamos na posição de espectador. Isso porque nossa moralidade é em parte “contaminada” por nossas afecções, assim como nossas afecções são em parte “direcionadas” por nossa moralidade.
O que podemos afirmar sem titubear é que as melhores obras de arte presenteiam a moralidade com a inteligência típica da ambigüidade, com a riqueza de interpretações e com arrebatamento estético. Enquanto isso, as piores nos presenteiam com panfletagens caricatas sobre o bem e o mal, o certo e o errado.
O que um livro como O retrato de Dorian Gray nos ensina, portanto, é a encarar a arte como a possibilidade de abertura para novas idéias e sensações mais do que como um meio de resposta a perguntas. Como diz Susan Sontag: “Uma obra de arte é alguma coisa no mundo, não apenas um texto ou um comentário sobre o mundo” (SONTAG, 1987, p.31)
Referências bibliográficas:
GAY, Peter. Modernismo – O fascínio da heresia. São Paulo: Cia das Letras, 2009.
KUNDERA, Milan. A arte do romance. São Paulo: Cia das Letras, 2009.
SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo – uma questão alemã. São Paulo: Estação
Liberdade. 2010
SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987.
WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. São Paulo: Martin Claret, 2010.
WILDE, Oscar. Obra Completa. Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1961