Einstein on the beach: um estudo semiótico em oposição ao textocentrismo

Crítica de Einstein on the beach, de Bob Wilson

10 de maio de 2012 Críticas

“The most beautiful experience we can have is the mysterious.”
(A mais bela experiência que podemos ter é a do mistério.)
Albert Einstein

O desuso do discurso lógico-verbal nas artes cênicas perdeu sua hegemonia precisamente a partir da segunda metade do século XX, momento em que sobrevém, para o campo da arte, a desconstrução e o questionamento dos moldes artísticos tradicionais sob a intensa busca pela ruptura com um passado que havia perdido sentido e força.

A origem insurge, talvez, a partir do pensamento nietzschiano, que declarou a existência de distintas formas de se experienciar a realidade e, com isso, a arte, desde o início do século passado, começou a adquirir um caráter plural de representação, o qual reverberou a tal ponto durante dezenas de anos que acabou por ecoar ainda para o nosso século atual.

A pluralidade extremamente presente hoje também no teatro é imensa e está arraigada em gêneros artísticos cênicos tais como a dança e a performance, que são exemplos de expressões não dominadas pelo logos. Essa particularidade é também encontrada no teatro pós-modernista, que faz constante recusa ao modelo aristotélico de dramaturgia em prol do chamado teatro pós-dramático, conforme nomeou Hans-ThiesLehman, cujo texto pode aparecer completamente fragmentado e, inclusive, dar lugar a um “texto” compreendido no seu sentido semiótico e não mais através de palavras. O clássico espetáculo Einstein on the Beach, musicado por Philip Glass e encenado por Robert Wilson pela primeira vez na década de 1970, é um exemplo claro dessas noções e pode, outra vez, ser visto ao vivo, mantendo o seu caráter atual.

John Rockwell, crítico estadunidense, já alertava em uma observação para o jornal The New York Times, após a estreia mundial, em 1976, que Einstein on the Beach é como um artefato “atemporal” que “deve ser visto e revisto, encontrado e apreciado” (1). A estreia mundial da nova versão dessa ópera, que é amplamente reconhecida como uma das maiores realizações do século XX, ocorreu no Le Corum (Opéra Berlioz) da cidade francesa de Montpellier do dia 16 ao dia 18 de março de 2012.

A produção ressurgiu em outros momentos nas últimas décadas do século XX e, agora, foi reencenada no século XXI. A cada execução dessa obra, as casas de espetáculos estiveram lotadas e, com isso, para quem não assistiu e não poderá assistir ao vivo, resquícios (documentário e DVD?) do trabalho podem suprir uma pequena parte do prazer de presenciar ao vivo essa criação. É o que ocorre em muitos casos dentro da arte da performance, gênero artístico que muitas vezes acaba por ser apreciado através de registros.

Exemplo autêntico do alcance pleno da fusão de todas as artes, essa é uma ópera composta por quatro atos e incontáveis imagens emblemáticas, as quais timbram uma junção de dois grandes gênios que propiciaram um espetáculo completamente híbrido, o qual percorre as artes visuais e cênicas, em que não só a música e a performance art estão fundidas, mas todos os gêneros artísticos, em que as figuras linguísticas são insuficientes para transpor acontecimentos visuais.

A dramaturgia se faz onírica quando mescla elementos que ultrapassam a hegemonia estabelecida pela palavra; as cores pronunciam, o texto é música, as partituras corporais cantam, as luzes propõem o drama e substituem o clássico discernimento entre os elementos de cena, pois tudo está interligado sem brecha para a diferenciação. A retórica é posta em cheque em uma realização que transgride todos os códigos vigentes da sua época. Aqui, observa-se claramente a noção de “obra de arte total” proposta por Wagner, quando é retumbado não só o chamado “teatro das variedades” dos futuristas e os corpos robotizados de Meyerhold, mas também o artista-chave da escola da Bauhaus, Oskar Schlemmer e o ballet triádico no entrosamento dos diversos elementos cênicos e a maneira como o corpo, o movimento, a forma, a cor e a luz compõem o espaço.

Se numa visão nietzschiana, a realidade desponta do excesso, que somente a música e Dioniso podem permitir, Robert Wilson e Philip Glass procedem de uma lógica similar ou idêntica. Nietzsche diz: “(…) comparada à música, toda expressão verbal possui qualquer coisa de indecente; o verbo atrasa e embrutece; o verbo despersonaliza: o verbo banaliza aquilo que é raro” (2). E levando isso em conta, os artistas estabelecem, de forma bastante coerente, um processo de afastamento do texto e do teatro, que exige uma nova definição. Lehman afirma que “o teatro veio em primeiro lugar: surgiu do ritual, apropriou a forma da dança mimética, configurou-se como um modo de comportamento e como uma prática antes de qualquer escritura” (3).

A música de Philip Glass esboça toda uma espacialização do tempo no entendimento de sentidos e saberes que se constroem pela imagética proposta de Robert Wilson. E, apesar de remeter ao som de trem e de máquinas, a música é suave, aprazível aos ouvidos na execução ao vivo sob vozes afinadas de cantores líricos, os quais emanam números como letras das canções completamente experimentais.

O espaço-tempo exposto em cena transcende o fio narrativo apresentado, ancora um território que vai se insinuando até atingir profundezas por um jogo de reverberação cromática e, ainda, a construção causada por um verdadeiro emaranhado de fios simbólicos de uma grande máquina, na qual os seres humanos fazem parte como operários e, ao mesmo tempo, como peças funcionais desse aparelho. A dimensão (meta)discursiva da memória imbui uma paisagem estável através da repetição de gestos ou da música entre os atos, reduzindo, assim, o espetáculo ao essencial. Einstein on the Beach impera como uma sinopse da noção de modernidade em sua sequência, ou seja, desvanece como “um processo figurativo da transformação civilizacional, fundado num amplo conjunto de categorias, princípios e valores, os quais moldam a representação de mundo de toda uma época e cultura, desde o século XVII até os nossos dias” (4).

Notas:

(1)Comentário do crítico de música e dança e editor estadunidense John Rockwell sobre a versão inicial de Einstein onthe Beach. Disponível em: http://einsteinonthebeachdoc.com/einstein-on-the-beach/

(2)NIETZSCHE, Friedrich. La Volonté de Puissance TOME II, p. 438.

(3)LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático, p. 76.

(4)GOMES, Helder. Friedrich Nietzsche: a arte como modelo da relação entre o homem e o real. Porto: Universidade do Porto, s/ data, p. 02.

Vol. V, nº 44, maio de 2012

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