A estratégia final de Abramović ou a imortalidade da arte

Crítica de The Life and Death of Marina Abramović, encenada por Bob Wilson

30 de setembro de 2012 Críticas

Oriundos das próprias vidas dos artistas, sentimentos e reflexões são materiais colhidos e transpostos para uma linguagem universal. Por este motivo Marina Abramović decidiu fazer uma biografia sobre a sua própria vida e, embora tenha optado por usar a sua figura como um material-conteúdo para a elaboração de uma obra, não permitiu que erroneamente trilhasse uma extrema manifestação do seu ego artístico; transcendeu o exclusivismo quando compartilhou conosco a sua consciência e aceitação da morte de uma forma serena em The Life and Death of Marina Abramović, cuja criação é coletiva: de autoria do músico Antony, do encenador Robert Wilson e da própria performer Marina Abramović.

De certa forma, esta é mais uma performance da artista, em que sua imagem funciona como campo simbólico da sua obra de arte, em que se expõe sem estar por detrás de uma personagem. Esta é uma performance mais híbrida, que acopla agora os tradicionais elementos teatrais, embora, sob a encenação de Bob Wilson, nada seja exatamente convencional, inclusive, sua encenação é caracterizada pela ruptura com os moldes cênicos mais clássicos, abrangendo a performance fringe ou o chamado teatro pós-dramático, sendo assim, é uma nova performance, conforme nomeia a teórica deste  assunto Roselee Goldberg.

A arte da performance de outrora manifestava-se como uma ação quase anárquica (para não dizer completamente) e estava circunscrita por representantes radicais como Vito Acconci, Chris Burden, Gina Pane e, também, por Marina Abramović, sendo que esta última, hoje, apresenta-se parcialmente (ou totalmente) destituída das ideias originais que esse gênero artístico sugeria. Mas essa nova postura não é só de Abramović; como ela, muitos dos performers deste período adaptaram-se ao novo panorama artístico.

Se a solidificação da performance como manifesto artístico autônomo se concretizou entre as décadas de 1960 e 1970, coincidindo justamente com a arte conceitual, em que a ideia era mais importante que o produto final, o corpo do artista passou, então, a ser o principal suporte das criações artísticas da época e, portanto, os adeptos deste manifesto artístico rejeitavam a arte comercial. Com o retorno da pintura – neoexpressionismo – e o aquecimento do mercado das artes a partir dos anos de 1980, poucos continuaram a insistir na expressão performática como linguagem e pouquíssimos resistiram e não se renderam ao mercado.

Marina Abramović, na sua produção inicial, foi intransigente nos trabalhos desenvolvidos em torno da performance; tanto nas suas elaborações individuais como nas que executou em parceria com Ulay, a artista procurou ser firme nos preceitos que o seu principal manifesto de expressão propunha. Mas há uma incoerência que hoje pode ser facilmente notada. Não só porque Abramović passou a ser uma artista popularizada e endeusada como a principal representante deste gênero artístico, mas principalmente porque os objetos, vestígios das suas ações, são hoje comercializados a preços que superam uma pintura ou uma escultura célebre que, desde o princípio, são estratégias artísticas vendáveis. Porém, como a arte contemporânea permite novos e múltiplos suportes, a própria condição inicial da performance acabou rendida e, por isso, também está à venda através dos seus registros. Abramović é, talvez, a melhor representante desta ideia no âmbito da performance ou, ao menos, em manifestos que se opunham radicalmente ao capitalismo e que hoje o compõem.

Adorador das celebridades, Andy Warhol quiçá (destaco o“quiçá”), hoje, não desejaria reencarnar como anel de Diamante de Elizabeth Taylor, mas sim como um objeto-vestígio de alguma performance de Marina Abramović, o qual poderá vir a valer até mais do que esse tal anel de diamante.

Embora aponte as contradições nos discursos estabelecidos na trajetória desta artista e, inclusive, da própria arte da performance, sigo igualmente ilógico, quando escorrego em tons elogiosos e nos argumentos dotados de juízo de valor ao me referir ao seu trabalho em The Life and Death of Marina Abramović, estreado em Manchester em 2011 e, em abril de 2012, apresentado em Madrid, no Teatro Real, pois este é um trabalho indubitavelmente primoroso. Esta ópera entrou em cartaz durante o mês de junho em Basileia (Suíça), Amsterdam (Holanda) e Antuérpia (Bélgica).

Ao contrário do artista gênio, já falecido, adorador das celebridades, Andy Warhol, que afirmava não estar preparado para a sua morte, Marina Abramović já elaborou o seu próprio velório e exigiu que Robert Wilson o representasse em cena e, conforme declarou a artista, não queria ter nenhum controle sobre como sua história seria contada; os demais detalhes de sua vida foram completamente entregues a Wilson que, ao contrário dos outros encenadores que dirigiram biografias da artista, optou por renunciar proeminências da sua carreira para se apegar aos pormenores da sua própria vida, sendo esta uma escolha bastante coesa pois, na performance, manifesto tão recorrente para Abramović, está timbrada justamente a relação entre arte e vida.

Assim sendo, a peça tem início já com o velório de Abramović. Em cena, há três representações humanas indistinguíveis da própria artista deitadas sobre três caixões dispostos sobre o palco. Ali, não há a possibilidade de o observador detectar qual é, de fato, a verdadeira Marina Abramović, pois os corpos estão ornados com o mesmíssimo vestido negro de veludo e seus rostos tapados pela análoga máscara branca: o rosto de Abramović.

Tal qual a imagem proposta por Wilson sobre o palco, o velório real da artista deixará uma dúvida latente: onde estará o verdadeiro corpo da artista? Esta artista sérvia concebeu um velório que ocorrerá em três países diferentes e ninguém deverá saber em qual deles estará oficialmente o seu corpo. Alertou Abramović: “um artista deveria dar instruções para o seu funeral”.

No funeral cênico, nem tudo era ficção. Havia três cachorros negros percorrendo o palco entre ossos de cor vermelha. Atravessavam de forma obsessiva o espaço cênico enquanto o público entrava no teatro e, em nenhum momento, os animais se interessaram ou pareciam perceber a presença da plateia. Pareciam domados pela condição naturalista da quarta parede. Além do cão, um outro animal, que surge numa outra cena, sublinha o risco tão presente neste espetáculo, enfatizando a possibilidade de acaso: uma cobra viva e bastante ativa transitava sobre o corpo de um dos atores.

É válido aqui realçar alguns dos episódios vividos pela artista, sendo ambos mencionados de forma hilária pela encenação de Robert Wilson, sob auxílio da interpretação enérgica e caricata do ator Willem Dafoe, que se sobressai nesta “mise-en-scène”em seu papel de narrador. São ocorrências vividas pela performer na sua infância e que anunciam o seu fascínio pelo perigo e pela dor como forma de explorar seus limites físicos e mentais nas suas interpretações como forma de arte visual.

Um dos episódios é a sua tática para obter o nariz semelhante ao da atriz Brigitte Bardot em que Abramović, ainda criança, vai até o quarto dos seus pais e, propositalmente, joga-se para bater violentamente com seu nariz contra a quina pontiaguda da cama, para assim ter de ser submetida a uma cirurgia plástica e, com isso, obter em seu rosto o tão desejado nariz de Bardot. A outra passagem exposta da sua infância é quando Marina Abramović suja com betume as paredes, portas e janelas do seu quarto para convencer a sua mãe de que aquela imundície era feita de fezes e, assim, evitar a aproximação dela em seu recinto particular.

Noções de especulações das fronteiras físicas através da dor, do martírio, bem como das suas relações afetivas e dos seus ideais – talvez utópicos hoje – foram alteradas em seu si e, então, seu discurso artístico, naturalmente, vem como um reflexo disso. Em meio aos aforismos advindos da fragmentada dramaturgia criada por Wolfgang Wiens, rebenta a voz da artista afirmando “bye bye extremes, bye bye purity, bye bye togetherness, bye bye intensity, bye bye structure, bye byeTibetans, bye bye danger, bye bye unhappiness, bye bye tears” como uma confirmação de que os tempos mudaram. Marina Abramović agora desestabiliza a absoluta conduta do artista (ativista) que faz performance quando mostra-se múltipla e apreciada como ídolo da arte contemporânea, como diva da live art.

Sob a voz de Antony, vocalista do Antony and the Johnsons, que se apresenta como uma projeção andrógina e imaculada de Marina, com vestido e cabelos longos, a rainha, ou melhor, a avó da performance art, Marina Abramović, é representada sendo elevada de branco aos céus já no fim desse espetáculo. Aliás, são Marinas dissimuladas em suas máscaras e não se sabe ao certo qual das três é a verdadeira, mas todas transcendem e desfrutam de um merecedor lugar sagrado sobre o palco icônico das luzes Robert Wilson que toam pintura.

Tales Frey é encenador, performer, videoartista e crítico de arte. Autor do livro Discursos Críticos Através da Poética Visual de Márcia X, doutorando em Estudos Teatrais e Performativos pela Universidade de Coimbra, mestre em Estudos Artísticos – Teoria e Crítica da Arte pela Universidade do Porto e graduado em Direção Teatral pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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