O tempo em gradações sutis
Crítica da peça Dias felizes, de Samuel Beckett, encenada por Bob Wilson
Bob Wilson se apropria de Dias Felizes, de Samuel Beckett, em espetáculo cujo controle sobressai, em especial, por meio do acabamento formal. A terra que suga Winnie surge simbolizada pelo que parecem ser grandes pedras de carvão. Ao longo de boa parte do primeiro ato imperam as tonalidades esmaecidas: atrás de Winnie um sol esbranquiçado e um céu azul claro. O dourado do cabelo da atriz Adriana Asti e as discretas inserções de tonalidades fortes saltam aos olhos num quadro de atraente quase neutralidade.
À medida que a encenação avança, as cores do céu tornam-se mais intensas. Marcam, claro, a passagem do tempo, a despeito da crescente imobilidade de Winnie. O tempo é um elemento determinante na dramaturgia de Beckett. Peças como Dias Felizes e Esperando Godot possuem uma estrutura circular, com o movimento do segundo ato repetindo, em boa parte, o do primeiro: sabe-se que o tempo passou porque surgiram umas poucas folhas na árvore ressecada de Godot; e porque Winnie, antes enterrada da cintura para cima, reaparece apenas com a cabeça descoberta na volta do intervalo. A iluminação de A.J. Weissbard, em suas gradações sutis e bem marcadas, contracena com as falas, acompanhando (sem exatamente demarcar de maneira didática) suas transições, e ajuda a potencializar o isolamento da personagem numa peça que chama atenção para a surpreendente capacidade de adaptação do ser humano.
Mas Winnie não reflete sobre o seu desamparo a partir de uma perspectiva realista. E, em Dias felizes, a solidão não ganha uma dimensão melancólica. Winnie é uma personagem que mantém um otimismo inquebrantável (“Alguém ainda me olha? É isso que eu acho maravilhoso. Olhos nos olhos”), mesmo impotente diante de sua anunciada finitude, simbolizada por uma situação concreta e fantástica: está sendo tragada pela terra. A constância de sua fala (e a função de Willie, o marido, é, sobretudo, a de escutá-la, uma vez que ela julga intolerável falar sozinha) só será interrompida diante da morte, jamais da desistência, como ocorre talvez em outro texto de Samuel Beckett, a peça curta Cadeira de Balanço. Talvez Winnie não tema a morte, e sim que as palavras lhe faltem.
A personagem desse quase monólogo sobrevive plenamente na fragmentação – e vale lembrar que Beckett “comprovou” a possibilidade de expressão autônoma de uma parte do corpo, caso da boca de Eu não, outra de suas peças curtas – e se desconstrói com frequência. Ao dizer que “a tristeza insiste em se intrometer” ensaia um choro, mas não leva adiante. Evoca o passado, mas questiona a lembrança e afirma sua crença no novo dia. A interpretação de Adriana Asti projeta Winnie como um clown capaz de se divertir com pequenas ações infantis. Como uma criança, demonstra o desejo de apresentar pequenas surpresas e se entretém com elas. Ajeita a sobrancelha com uma escova de dente, beija uma arma que acabou de apontar para a própria cabeça. Compõe vozes, assume um tom debochado, não se leva a sério. A atriz domina esse jogo, com boa sustentação do silêncio – justamente na construção de uma personagem que gosta dos sons (porque “as coisas têm vida própria”) – e com o desenho minucioso dos gestos em todo o primeiro ato.