O tempo em gradações sutis

Crítica da peça Dias felizes, de Samuel Beckett, encenada por Bob Wilson

21 de setembro de 2010 Críticas
Atriz: Adriana Asti. Foto: Danilo Christidis

Bob Wilson se apropria de Dias Felizes, de Samuel Beckett, em espetáculo cujo controle sobressai, em especial, por meio do acabamento formal. A terra que suga Winnie surge simbolizada pelo que parecem ser grandes pedras de carvão. Ao longo de boa parte do primeiro ato imperam as tonalidades esmaecidas: atrás de Winnie um sol esbranquiçado e um céu azul claro. O dourado do cabelo da atriz Adriana Asti e as discretas inserções de tonalidades fortes saltam aos olhos num quadro de atraente quase neutralidade.

À medida que a encenação avança, as cores do céu tornam-se mais intensas. Marcam, claro, a passagem do tempo, a despeito da crescente imobilidade de Winnie. O tempo é um elemento determinante na dramaturgia de Beckett. Peças como Dias Felizes e Esperando Godot possuem uma estrutura circular, com o movimento do segundo ato repetindo, em boa parte, o do primeiro: sabe-se que o tempo passou porque surgiram umas poucas folhas na árvore ressecada de Godot; e porque Winnie, antes enterrada da cintura para cima, reaparece apenas com a cabeça descoberta na volta do intervalo. A iluminação de A.J. Weissbard, em suas gradações sutis e bem marcadas, contracena com as falas, acompanhando (sem exatamente demarcar de maneira didática) suas transições, e ajuda a potencializar o isolamento da personagem numa peça que chama atenção para a surpreendente capacidade de adaptação do ser humano.

Mas Winnie não reflete sobre o seu desamparo a partir de uma perspectiva realista. E, em Dias felizes, a solidão não ganha uma dimensão melancólica. Winnie é uma personagem que mantém um otimismo inquebrantável (“Alguém ainda me olha? É isso que eu acho maravilhoso. Olhos nos olhos”), mesmo impotente diante de sua anunciada finitude, simbolizada por uma situação concreta e fantástica: está sendo tragada pela terra. A constância de sua fala (e a função de Willie, o marido, é, sobretudo, a de escutá-la, uma vez que ela julga intolerável falar sozinha) só será interrompida diante da morte, jamais da desistência, como ocorre talvez em outro texto de Samuel Beckett, a peça curta Cadeira de Balanço. Talvez Winnie não tema a morte, e sim que as palavras lhe faltem.

A personagem desse quase monólogo sobrevive plenamente na fragmentação – e vale lembrar que Beckett “comprovou” a possibilidade de expressão autônoma de uma parte do corpo, caso da boca de Eu não, outra de suas peças curtas – e se desconstrói com frequência. Ao dizer que “a tristeza insiste em se intrometer” ensaia um choro, mas não leva adiante. Evoca o passado, mas questiona a lembrança e afirma sua crença no novo dia. A interpretação de Adriana Asti projeta Winnie como um clown capaz de se divertir com pequenas ações infantis. Como uma criança, demonstra o desejo de apresentar pequenas surpresas e se entretém com elas. Ajeita a sobrancelha com uma escova de dente, beija uma arma que acabou de apontar para a própria cabeça. Compõe vozes, assume um tom debochado, não se leva a sério. A atriz domina esse jogo, com boa sustentação do silêncio – justamente na construção de uma personagem que gosta dos sons (porque “as coisas têm vida própria”) – e com o desenho minucioso dos gestos em todo o primeiro ato.

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores