Teatro de Operações

A questão da teatralidade em Sul concetto di volto nel figlio di Dio, de Romeu Castellucci

27 de novembro de 2011 Estudos
Sulconcetto di volto nel figlio di Dio. foto: Divulgação;.

Antes de falar sobre a teatralidade na peça de Castellucci devo narrar o acontecimento da estréia e dos dias seguintes em que a peça esteve em cartaz, que mobilizou a polícia para garantir a ordem no Théâtre de la Ville. A peça que, ao fundo do cenário, reproduz o rosto de Cristo pintado por Antonello da Messina em Salvator Mundi, retrata a história de um pai, velho, com incontinência fecal, e que é ajudado pelo filho. É na incontinência do homem e na constante presença das suas fezes no cenário que o Instituto Civitas, um grupo francês fundamentalista, viu uma ofensa à religião católica.

O grupo extremista desde a estreia da peça, dia 20/10/11, tentou por várias vezes forçar a interrupção e o cancelamento do espetáculo acusando o encenador Romeo Castellucci de “cristianofobia” e desrespeito à imagem de Jesus. A situação provocou reações não só do próprio encenador e do Théâtre de la Ville, mas também da Igreja, que condena os atos de violência, defendendo que a Igreja promove e incentiva o diálogo entre a cultura e fé.

A questão que se coloca é como o teatro pode interferir e transformar o real? Qual é o limite entre realidade e ficção? Como o teatro quebra com o espaço da representação para se tornar um agente do pensamento? É certo que no teatro há um desejo de transformação, transgressão e profanação que é garantido dentro de seu espaço. No teatro tudo pode acontecer, ele autoriza tudo desde que não interfira na integridade dos atores e do público, desde que não quebre as regras de teatralidade.

Pelo fato de Castellucci ter formação em artes plásticas (Faculdade de Belas artes de Bolonha), os seus espetáculos não dão muita ênfase ao drama, mas sim ao uso das imagens. O que ele coloca no palco é um pensamento filosófico ou plástico. Segundo Tackels (2011,p.38), tudo o que advém na esfera do espetáculo provém de uma estrutura que joga com os conceitos. São os conceitos que dão movimento à cena, a uma maneira inédita de se pensar o teatro que permite sair dos esquemas balizados pela semiologia.

O teatro de Castellucci constrói uma escritura que parte da cena, onde o autor se origina na realidade do palco e se serve essencialmente dos seus dispositivos. O corpo, o som, a luz e o movimento fazem o texto visível sem que ele precise aparecer por ele mesmo. No entanto, pode-se dizer que Castellucci trabalha essencialmente com a teatralidade na busca de um espaço vazio e virtual, onde o público vai criar o seu próprio texto.

Segundo Féral (2011,p.86), a teatralidade está mais ligada ao processo do que propriamente é uma propriedade preexistente nas coisas. Ela é o resultado de uma reflexão como um processo no qual se reconhece o tema. Ela aparece, então, como uma operação cognitiva, uma visão fantasmática, ao criar o espaço virtual do outro (o mesmo espaço transacional do qual fala Winnicot ao falar da importância do espaço potencial da imaginação no jogo infantil). Este espaço permite, tanto ao sujeito que faz quanto ao que olha, a passagem daqui para o outro, no sentido de uma construção da ficção. A teatralidade cria o espaço transacional que permite ver tanto a realidade quanto a ficção.

Castellucci questiona os limites da teatralidade ao trabalhar na fronteira entre o que é real e o que é ficção. Tendo como pano de fundo um ícone sagrado, como um grande retrato do rosto de Jesus, ele questiona de que forma aquela realidade pode entrar na ficção. A imagem de Cristo também representa uma metáfora da condição humana, como um espelho diante de todos nós olhando nossas ações.

Sul concetto di volto nel figlio di Dio. Foto: Divulgação.

O corpo real de uma pessoa idosa e doente é exposto com sua nudez, ao mesmo tempo em que o filho realiza ações de cuidar do pai. O ritual de pegar papéis, balde com água e esponja, tirar a roupa do pai e limpá-lo é um ato extremamente cotidiano e real e que se repete. O pai chora e pede desculpas para o filho que diz que ele não precisa se desculpar. Não se trata de um diálogo, mas de uma situação que se repete várias vezes. Ouvem-se apenas murmúrios, o texto não tem muita importância, são palavras que completam as imagens dos atores.

Neste sentido, trata-se de um teatro pós-dramático que valoriza a performance dos atores, suas imagens e ações precisas que desenham o espaço, em detrimento do texto. A peça também não tem uma lógica de ações com início, meio e fim, mas que se repetem até chegar a uma ruptura do plano da realidade cotidiana para o plano imaginário, como metáfora da revolta do filho que não suporta mais essa situação.

Neste momento, ocorre uma mudança do cenário com as luzes que se apagam, ficando somente acesa a imagem de Cristo e o filho que a abraça. Surgem vozes de mulheres dizendo o nome de Jesus. Logo em seguida, os atores saem e ouve-se som de correntes se arrastando e a imagem de Cristo começa a ser deformada por corpos de pessoas que entram por trás do pano branco em que é projetada a sua imagem. Ela também é manchada por uma tinta marrom e depois rasgada até aparecer a frase final: “Tu (não) és o meu pastor?”

Castellucci realiza uma profanação no teatro, no sentido de Agamben, como uma operação que desativa os dispositivos do poder e devolve ao senso comum, ou seja, uma forma de dessacralizar um ícone levando-o à sua condição de manipulação e transformação no nível real. Ele quebra com os valores sagrados da igreja em busca de um pensamento mais profundo, renovador, que pode transformar o real e até deixá-lo mais claro.

Ele faz um processo de inversão entre realidade e ficção, visto que a igreja ficcionaliza uma imagem ao criar uma história sem permitir que ela seja questionada. Ao profanar essa imagem, Castellucci está trabalhando com valores reais dentro da ficção. Ele cria uma estética de choque, pois não existe uma sequência específica das cenas que leve a uma lógica desta ação. Ele cria uma ruptura com o plano ficcional da peça, assim como com os valores estabelecidos no plano da realidade, tornando-os questionáveis e flexíveis.

Esse tipo de representação fragmentada, sem um sentido lógico, reafirmado pelo efeito de ruptura, causa um choque no público que pode ou não achar que Castellucci faz teatro ou apenas deseja criar uma polêmica em torno do real. Seu teatro expõe de uma maneira tensionada uma situação que não será resolvida diretamente e é exatamente aí que alguns espectadores são chocados pelo que vêem. O teatro de Castellucci valoriza o trabalho com a iconoclastia:

“Iconoclastia foi para nós uma palavra importante e maternal. Palavra potente para nós que experimentamos a mesma aversão que Platão. Ele pensava que comparada à verdade incorruptível das ideias, a realidade óptica era um engano. Ao invés de eliminar o engano da realidade óptica, a arte a reproduzia, tentando em vão ultrapassá-la. Mas como ultrapassar a realidade pela abstração dos fenômenos? Como seria possível refazer o mundo sem ter nas mãos os elementos do mundo? (…) Então nossa preocupação foi destruir o que existia, não pela necessidade do espaço vazio, mas pela necessidade de ruptura com a representação do mundo tal qual nos era proposta… A iconoclastia significa que eu rompo com um ícone, que falta fazer alguma coisa para torná-lo visível… Um ícone não é uma imagem simples, é uma imagem sagrada, eleita pelo povo, sua eficácia é reconhecida não importa qual seja a Igreja ou grupo social…A iconoclastia é uma força que se inscreve em competição, por uma ruptura, com uma potência formidável.” (Tackels, 2011,p.71/72 Trad. nossa).

De acordo com Tackels, este texto mostra que no campo da arte não existe nenhuma moral que escolheria entre o bem e o mal, ou tal moral seria como uma mentira, a mesma que se passa no discurso da Igreja, que faz crer que ela dispõe de instrumentos para erradicar o mal. O dispositivo iconoclasta mostra o contrário: que o mal está intimamente ligado ao bem, que um funciona e trabalha com o outro.

Todos os espetáculos de Castellucci fazem recomeçar o teatro desde as suas primeiras tentativas, o que faz com que ele trabalhe com grandes textos fundadores: Gilgamesh, a Bíblia, Tragédia Grega, Shakespeare. A ideia não é imitar o mundo e o seu começo, mas refazê-lo de novo a partir do nada. O teatro de Castellucci não é um teatro religioso ou místico, é um teatro de operações, que faz repensar a forma e o conteúdo da existência.

A decomposição da imagem de Cristo é uma metáfora da condição humana que retorna ao vazio. O corpo de Deus é um corpo vazio, assim como o Corpo sem Órgãos de Artaud, conforme citado por Castellucci na montagem da peça Genesi, que trata sobre Auschwitz:

“O que é fundamental na profecia de um corpo sem órgãos de Artaud é a paródia de um corpo sem órgãos realizado nos campos de concentração, onde se eliminaram realmente os corpos, esvaziaram seus órgãos. Existe então um corpo que é absolutamente vazio, que é provavelmente o corpo mesmo de Deus, e que existe inegavelmente no teatro, que é um corpo vazio, um corpo a atravessar.” (Tackels, 2011,p.65. Trad. nossa).

Na verdade os campos nazistas são uma paródia das palavras de Artaud, que se afasta muito do conceito de crueldade. O corpo sem órgãos é um momento de pura potência, um momento em que a alma coincide com o próprio corpo, muito além de seus órgãos, é um momento de potência e alienação, enquanto que os corpos do campo de concentração são o oposto, em que a vida se escapa e tomba.

Assim, pode-se perceber que o teatro de Castellucci não pára de questionar o mundo real, unindo o teatro a pensamentos filosóficos. Suas peças são como que interligadas, um pensamento levando a outra ideia que também será materializada pelo teatro.

Sul concetto di volto nel figlio di Dio. Foto: Divulgação.

Dispositivos de teatralidade no espetáculo

A grande plasticidade de suas imagens, a sobriedade da presença humana, o rigor dos gestos e deslocamentos, a importância do texto murmurado, o uso de maquinaria como os andaimes por trás da grande tela em que é projetada a imagem de Cristo, as palavras vazadas que aparecem no final, as tintas que sujam a tela ao vivo e os corpos que rasgam e desfazem a tela, o trabalho com o som e a luz, mostram a grande capacidade de Castellucci de absorver todas as linguagens a serviço do teatro.

O espaço é dividido em duas partes: a parte real, onde acontecem os fatos do cotidiano, do filho que está pronto para ir trabalhar e tem que tem que cuidar do pai, limpando a sua sujeira. Este espaço no início é todo branco: o sofá, o chão, o tapete, a mesa e a cadeira, a cama do quarto, assim como a luz é extremamente branca. Porém, o espaço vai se tornando caótico pelo lixo que se acumula com os papéis sujos, os panos, a água do balde que mancha o chão e as toalhas com as quais ele enxuga o pai.

No momento da ruptura do plano cotidiano para o imaginário, as luzes se apagam e a teatralidade se torna ainda mais visível, pois ela rompe com a ficção, criada pelos atores, para se trazer uma ação que interfere na realidade e que choca o espectador ao fazê-lo pensar por que aquilo está acontecendo. Neste momento é criado o espaço virtual e potencial, que o espectador tem que preencher com a sua imaginação.

O corpo manifesta a presença dos atores, o imediato do acontecimento e a materialidade que está ligada tanto à performance quanto à construção de uma ficção. O corpo mostra a ficção e aquilo que escapa, que é o real do ator. O corpo nu e envelhecido do pai é a expressão de uma narrativa muito mais potente do que a ficção, visto que é real. Para Blanchot, o real é aquilo que surpreende. A forma como as imagens são colocadas na cena surpreende o espectador e cria um despertar para um pensamento renovado.

O som é um dos elementos mais importantes de teatralidade no espetáculo de Castellucci e também é tirado no mundo real, sem músicas, ritmos ou canções. No início o som é de televisão, com várias vozes falando ao mesmo tempo, mostrando a confusão e a rapidez do mundo cotidiano. Assim como, na segunda parte, o som de correntes se arrastando e também das vozes das mulheres sussurrando o nome de Jesus, são movimentos sonoros que incomodam e anunciam a chegada de um acontecimento questionador, chocante e real no teatro.

Conclusão

Podemos concluir que a peça de Castellucci estabelece uma fronteira entre o real e a ficção. Através de sua estrutura de ruptura com os planos do cotidiano e do imaginário, o teatro de Castellucci é operativo e provocador, no sentido em que desconstrói uma realidade criada em torno de um ícone para avançar no pensamento sobre o amor e a humanidade. Assim, ele descobre novos significantes pelo desejo de profanação e de transformação do velho no novo.

Ao utilizar elementos do real, tais como o corpo envelhecido do ator, o som tirado da realidade, a imagem ícone de Cristo, a peça cria uma ficção entrelaçada pela materialidade do real, teatralidade e performance se misturam. A performance é real, está nos corpos, nas ações, na presença imediata do ator, sem mediação ou sem texto a priori. Não se trata de uma representação, mas sim de uma presentação, como afirma Lehmann em O teatro pós-dramático.

Neste sentido, Castellucci trabalha com elementos reais para criar uma teatralidade e para renovar conceitos sobre o amor, a vida e o vazio que são recorrentes em sua obra. O corpo do pai, que se desmaterializa, retorna ao vazio, ao nada, que é uma metáfora do espaço virtual de pura potência, assim como o teatro. Mais uma vez, ficção e realidade se misturam em um espaço potente, que é o da teatralidade e do pensamento.

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Profanação. São Paulo: Boitempo, 2007.

ARDENNE, Paul. Extrême, esthétiques de la limite dépassée. Paris: Flammarion, 2006.

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo. Martins Fontes, 1999.

DELEUZE, G., GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Vol.3. São Paulo: Editora 34, 1996.

FÉRAL, Josette. Théorie et pratique du théâtre. Au-delà des limites. Paris: L’entretemps, 2011.

LEHMANN, Hans-Thies. O teatro pós-dramático. Trad. Pedro Sussekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

TACKELS, Bruno. Les Castellucci. In: Écrivains de plateau I. Paris: Le solitaires intempestives, 2005.

Andréa Stelzer é professora de teatro do Núcleo de Artes da Rede Municipal, autora do livro “A escritura corporal do ator contemporâneo”, doutoranda em teatro pela UNIRIO/PARIS 3 com apoio da Capes)

Leia também o texto de Edelcio Mostaço sobre a mesma peça na edição de outubro de 2013: http://www.questaodecritica.com.br/2013/10/castellucci-e-o-juizo-de-deus/

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