Diários do Théâtre du Soleil (1)

Depoimento sobre o processo de seleção e o estágio no Théâtre du Soleil

10 de maio de 2009 Estudos

APRESENTAÇÃO

Meu nome é Gabriela Carneiro da Cunha, sou atriz, tenho 26 anos e fui para Paris para o dia 29 de dezembro de 2008 pra fazer o estágio no Théâtre du Soleil. Cheguei dia 30, um dia antes do ano novo e 40 dias antes do início do estágio. Os motivos para chegar assim tão cedo foram 3: primeiro precisava praticar o francês; segundo, um estágio com o encenador russo Anatoli Vassiliev que estaria acontecendo no mês de janeiro em Paris e terceiro, a passagem para Paris triplica de preço depois da meia noite do dia 31 de dezembro. O jeito foi esquecer o ano novo em Copacabana e começar a pensar no Réveillon na Torre Eiffel.

A questão da passagem é o que motiva este e os outros textos que escrevi, escrevo, escreverei. Consegui o dinheiro para financiar minha passagem em um edital do Ministério da Cultura, chamado edital de intercâmbio cultural, onde uma das exigências é uma proposta de contrapartida. Esta foi a minha proposta, escrever uma espécie de diário virtual sobre as atividades desenvolvidas durante o estágio para ser postado neste site. A proposta só fazia referência ao estágio no Soleil, mas de qualquer maneira resolvi escrever também sobre a experiência com Vassiliev.

A regra básica era a seguinte: escrever pelo menos um texto ao final de cada semana de trabalho e em sua maioria os textos seguem essa regra. Alguns, no entanto, foram escritos depois de minha chegada enquanto ainda tento entender palavras que foram ditas há meses atrás.

LA PREMIÈRE SEMAINE…

E lá se foi a primeira semana, a segunda em Paris, a primeira no estágio de Monsieur Vassiliev. Muito se falou, muito se falou sobre teatro, sempre frisando que não era um seminário e sim um encontro sobre teatro. O que quer dizer que perguntas do tipo seminário não são respondidas e comentários elogiosos ao trabalho não são necessários. A conversa era sobre teatro e, principalmente, sobre teatro de situação, ou psicológico, ou, um pouco mais pejorativo, de imitação. Este, no entanto, não é o teatro que ele faz ou aquele que iremos experimentar aqui, mas, como ele diz, é preciso falar sobre esse teatro, entender esse teatro, ter uma boa formação dentro dele para depois avançar em direções mais desconhecidas.

E foi isso o que aconteceu. Acho que eu nunca tinha ouvido alguém falar de teatro de uma maneira tão estruturada, quase matemática. Conflito, situação, circunstâncias dadas, ação transversal, evento original, evento principal, emoção, tarefa ação, ação, ação… tout était là. Desenhos em um grande bloco de papel do caminho que um personagem percorre através das ações desde o evento original até o evento principal. Era estranho ouvir e falar de teatro desta maneira, como algo arquitetado, partiturado, mas não é assim? Ainda não sei… Acho que é como quando pensamos em música, lembramos da melodia, nunca da partitura, e, no entanto ela esta lá.

Mas, já nesta primeira semana, ele começa a apontar algumas outras direções possíveis para fora deste teatro: psicológico, de situação, de imitação, e finalmente de resultado, um teatro de convenções onde todos já conhecem o que deve ser feito: ator, diretor e platéia. Este apontamento se dá em relação a algo que é possível ser feito, criado, inventado, que é mais do que “belle lecture acompagné par les images”, que gera um deslocamento da situação e a criação de um objeto de jogo, seja lá o que isso queira dizer…

De qualquer maneira, esta teoria só dá conta de uma parte, a outra se dá no palco. Houve perguntas que não foram respondidas exatamente por isso, porque não eram do âmbito da teoria. Era preciso fazer, agir. É preciso tocar a música…

ALGO SOBRE OS ATORES…

É impressionante, eles são os mesmos em todo lugar do mundo. Antes de chegar aqui, eu tinha essa fantasia de que os atores franceses deviam saber ou fazer algo que nós brasileiros, ou eu, eu mesma, não saberia fazer nem de longe. Mas aí começou o curso e durante a primeira semana eu estava muito ocupada em entender alguma coisa, qualquer coisa, pra notar aqueles que estavam à minha volta. Percebia alguma coisa aqui ou ali, mas nada tão revelador quanto aquilo que apareceu quando Vassiliev disse “então se juntem em duplas e amanhã me mostrem alguma coisa sobre o diálogo de Críton e Sócrates” assim, livre, qualquer coisa…

Naquele instante fez-se um silêncio e aos poucos alguns risinhos angustiados começaram a aparecer. Mas como assim qualquer coisa??? Não durou muito tempo para que as perguntas começassem, uma, depois outra, depois uma por cima da outra, depois a mesma pergunta repetidas vezes, e eu dando graças a Deus que só estou, pelo menos por enquanto, como ouvinte.

Devo dizer que esta minha felicidade durou muito pouco, uma noite pra ser mais exata, o tempo de eu ver a primeira improvisação e constatar que, como disse no começo, somos os mesmos em todo lugar do mundo e aí, nesse lugar – como diz muito bem o nome de uma companhia do Rio, fudidos privilegiados – pouco importa se eu falo ou não francês, se eu sou brasileira ou chilena, ou russa ou sei lá o quê, se eu sei ou não o que fazer, enfim, se eu estou morrendo de medo de entrar em cena ou não, porque de qualquer maneira “Il faut faire, pour tout le monde!!”

E era muito bom ver as improvisações, as caras depois das improvisações olhando para Vassiliev na tentativa de buscar algum indício de acerto ou erro, aqueles que se arriscam, aqueles que repetem, aqueles que ouviram o que ele disse durante a semana inteira e tentaram fazer, enfim, eu no meu cantinho tentando aprender alguma coisa, ele, acho, vendo muito mais além… se divertindo até. Isso é curioso. Quando vi Medéia Material pela primeira vez e depois assisti a conferência de Vassiliev no Brasil, não podia imaginar que ele tivesse tanto humor. E, pelo menos até agora, tanta delicadeza. Durante todas as apresentações ele não falou nada, nenhuma crítica, nenhum elogio, só observou, agradeceu a todos pelo trabalho e disse que agora é preciso avançar, o que significa: monólogo do texto Ion tentando aplicar a segunda estrutura, teatro lúdico, com foco no evento principal e objeto de jogo. E o silêncio se fez de novo e aos poucos alguns risinhos angustiados e como não podia deixar de ser, perguntas e mais perguntas…

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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