A verdadeira neve de papel picado

Crítica da peça Os náufragos do Louca Esperança, do Théâtre du Soleil

27 de novembro de 2011 Críticas
Os Náufragos do Louca Esperança. Foto Michèle Laurent.

Os náufragos do Louca Esperança (Auroras) é um espetáculo que evidencia os mecanismos de construção a partir da história da realização de um filme, nas primeiras décadas do século XX, empreendimento utópico desenvolvido por um grupo desbravador. Todo o complicado processo de filmagem é descortinado diante do público – a manipulação dos telões pintados, a recriação minuciosa dos ambientes nos quais se desenrola uma narrativa épica, a reprodução das manifestações climáticas.

Por meio dessa proposta, a diretora Ariane Mnouchkine lembra da natureza artificial não só do cinema como da arte em geral. Em todo caso, talvez no cinema essa característica fique mais evidente, a julgar pela necessidade de toda uma maquinaria para sua efetiva viabilização. Mas o artifício não deve ser entendido como sinônimo de falso ou de mentiroso, e sim de construído. Por isto, não se opõe à noção de verdade. Numa das cenas, ainda no início da encenação, uma diretora se indispõe com um ator durante as filmagens e clama que seja verdadeiro. Pede que fale o texto munido de imagens concretas em relação ao que diz, apesar da proximidade da câmera, da artificialidade de todo o aparato técnico ao seu redor.

Ao mesmo tempo em que exibe os procedimentos de construção, Os náufragos do Louca Esperança (Auroras) revela investimento em mecanismos de ilusão. Evidencia que o objetivo do quixotesco grupo, que não mede esforços na concretização do filme, é transmitir veracidade ao espectador que, porventura, assistir ao filme no cinema – apesar de todos os procedimentos empregados divertirem a plateia de hoje por serem evidentemente rudimentares para os padrões do século XXI. E passa para o espectador atual, que confere a montagem no teatro, certa sensação de ilusão. Um bom exemplo é a neve intermitente que cai sobre o palco, que parece verdadeira apesar de feita de papel picado. O trabalho na interface teatro/cinema é o aspecto mais interessante na encenação, mesmo que o procedimento, uma vez exposto, seja reeditado ao longo da apresentação.

Os náufragos do Louca Esperança. Foto: Michèle Laurent.

A paixão dos personagens pela aventura de um cinema iniciante contagia a plateia de hoje, ainda que o momento em que o grupo decide dar continuidade ao filme depois de um instante de hesitação soe um tanto edificante. Em todo caso é um problema menor entre tantos outros presentes no texto de Hélène Cixous, antiga colaboradora de Ariane Mnouchkine no âmbito da dramaturgia, escrito em parceria com o Théâtre du Soleil a partir de romance póstumo de Júlio Verne, intitulado Os Náufragos do Jonathan. A autora entrelaça diferentes planos narrativos – a evocação do feito cinematográfico, a circunstância da filmagem artesanal e a história contada no filme, centrada em personagens que viajam de navio rumo à Austrália, mas naufragam na América do Sul, mesclada a uma visão panorâmica acerca do contexto mundial. Em relação ao terceiro plano, a carga de informações pesa ao longo das quatro horas de espetáculo, problema minimizado, em alguma medida, pela suavidade da narração de Gabriela Rabelo.

Apesar de Os náufragos do Louca Esperança (Auroras) ser uma montagem em que o conjunto se destaca mais do que atuações individualizadas, cabe chamar atenção para os desempenhos de Eve Doe-Bruce, responsável por imprimir apreciável e extremado registro clownesco a Monsieur Félix Courage; e de Juliana Carneiro da Cunha, que consegue tirar partido de um tom de voz agudo na composição da dedicada Madame Gabrielle. Vale também mencionar a boa apropriação do trabalho corporal dos atores do cinema mudo, período ao qual o espetáculo faz referência direta.

Daniel Schenker é doutorando da UniRio e crítico de teatro do Jornal do Commercio e da Isto É / Gente.

Os náufragos do Louca Esperança. Foto: Michèle Laurent.


Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores