Dramaturgia das (auto)biografias no teatro documentário de Vivi Tellas

O processo de construção de Mulheres Guia

26 de dezembro de 2013 Traduções

Tradução de Davi Giordano

Nota do tradutor: Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada nas II Jornadas de Crítica Genética realizadas na Universidad de Córdoba, Argentina, em junho de 2011. A presente tradução é resultante da participação de Pamela Brownell no evento Diálogos sobre Teatro Documentário, idealizado e realizado por mim e pelo Grupo Garimpo, o qual foi realizado em setembro de 2013 no Pavilhão do Teatro do Anônimo.

Durante alguns anos, eu venho me dedicando ao estudo de diferentes práticas cênicas relacionadas àquilo que chamamos de teatro do real. Apesar de todos os problemas apresentados por esta definição, eu acredito que ela sirva, pelo menos, para fazer referência a uma determinada pesquisa comum que podemos identificar em muitos projetos artísticos que buscam desenvolver uma relação mais próxima com a realidade extrateatral.

Em função da grande diversidade de experiências que estão inseridas dentro desta tendência, a minha pesquisa pessoal está sendo orientada cada vez mais em direção a um objeto específico: o teatro documentário, que é o que nos traz aqui hoje, neste tão bem vindo espaço para o diálogo. E, no teatro documentário, eu me concentrei principalmente na experiência mais representativa que há atualmente na Argentina em relação a este caminho estético, que é o projeto Arquivos (1) de Vivi Tellas.

Nele, a diretora trabalha com “pessoas comuns” – ou seja, pessoas que não tem como profissão a interpretação/atuação. Nas nove peças estreadas desde 2003, estas pessoas foram a sua mãe e a sua tia, o diretor de cinema Edgardo Cozarinsky e seu médico, três filósofos (com bigodes), instrutores de uma autoescola, guias de turismo, djs, rabinos e bruxas. Uma dessas obras, O rabino e seu filho, foi realizada em São Paulo em 2012 (2). Hoje vou dar uma atenção especial para Mulheres Guia, um dos trabalhos com o qual estou mais familiarizada, já que eu fazia parte da equipe de produção na sua reestreia. Minha intenção é tomá-la como um exemplo da dramaturgia que Tellas realiza em todas as obras do projeto.

A partir de um trabalho com os corpos, as histórias e os documentos pessoais (todos os tipos de bens e lembranças de suas vidas) dos intérpretes, Tellas cria uma composição de dramaturgia bastante peculiar, articulando nos espetáculos os momentos de depoimento e os momentos que são mais explicitamente performáticos. Os Arquivos criados são caracterizados por uma atmosfera de intimidade, um humor sutil e uma estética muito contemporânea. Espero ir preenchendo de sentido estes vagos adjetivos ao longo desta intervenção.

Nesta ocasião, eu quero destacar especialmente uma característica deste projeto, que é a forma como ele está situado num espaço intersticial interessante entre a biografia, como o relato que alguém faz da vida de outro, e a autobiografia, como o relato da própria vida. Nos Arquivos, as pessoas cujas histórias são contadas são as mesmas que falam em nome de si próprios para compartilhá-las no palco. No entanto, toda a construção está organizada por um olhar externo, o qual lhe deu uma forma e fez com que essas histórias se transformassem – para dizer em poucas palavras – em teatro.

Por isso, eu acredito ser importante concentrar a minha fala neste ponto, pensando quais as tensões particulares que são geradas em termos das narrativas de si (narrativas do eu) quando as próprias mediações relacionadas aos relatos que cada um faz de sua própria história se somam através da mediação de um terceiro, e de que modo isso contribui para potencializar ou limitar a afetividade colocada no jogo tanto do lado das intérpretes como também do lado dos espectadores.

Foto: Nicolás Goldberg.

I. Narrando o eu do outro

Eu gostaria de começar descrevendo a situação que deu origem ao foco deste trabalho. Aconteceu num dos ensaios realizados para cobrir uma substituição nas Mulheres Guia, obra que estreou originalmente, em 2008, no Teatro Sarmiento de Buenos Aires e que teve sua reestreia, em 2011, no Museu Etnográfico da Cidade.

É o seguinte: as três intérpretes estão revendo uma das cenas em que cada uma delas mostra algum presente que recebeu como parte de seu trabalho como guias. María Irma – guia da Cidade de Buenos Aires – mostra uma quantidade de presentes exóticos feitos por diferentes grupos de turistas; Micaela – guia do Museu Etnográfico – mostra somente um chaveiro que recebeu como forma de agradecimento de um coreano que estava ali para filmar um documentário; e, por último, Silvana – guia do Jardim Botânico – mostra um pote de balas vazio que um italiano lhe deu durante uma visita guiada, porque ela tinha ataque de tosse. Ela é alérgica ao pólen, coisa que no Botânico existe certamente em abundância. Ou seja, ela é alérgica ao seu trabalho. A lata já estava vazia e ela declara que já haviam comido os caramelos. Algo une as três histórias, e algo as separa.

Há uma progressão da abundância para a escassez, da acumulação ao despojamento, de um mundo de viagens e sotaques estrangeiros em direção a um mundo de nostalgia, resignação e ironia que condensam num detalhe o sentimento particular de uma vida e o tom de uma cidade (talvez, por isso, a peça termina com um tango). A sequência é tragicômica, motivo pelo qual muitos de nós assistentes durante os ensaios dávamos algumas risadas.

Vivi Tellas, a diretora, satisfeita com o seu trabalho, diz: “A verdade é que ficou boa a dramaturgia desta cena. Às vezes as pessoas me dizem que nas minhas peças não há dramaturgia. Elas não se dão conta de como todos os detalhes vão se desenvolvendo”.

Fazendo uma breve análise através do processo que resultou na configuração final de Mulheres Guia, eu pretendo refletir sobre de que forma uma experiência como esta investiga a vida das pessoas como material de criação e quais os tipos de operações que são realizados sobre este material conforme ele vai ganhando uma forma cênica definitiva.

1. Como se conta uma vida?

O projeto Arquivos está compreendido dentro do Biodrama, o macroprojeto de Vivi Tellas da última década. Este termo tem alcançado grande difusão na cena argentina e podemos encontrá-lo muitas vezes utilizado como se fosse um gênero. No começo, Tellas denominou dessa maneira o ciclo do qual ela foi curadora entre 2002 e 2008 no Teatro Sarmiento, no qual ela convocava outros diretores para criarem uma peça de teatro a partir da vida de uma pessoa viva. Esse mote comum de criação resultou em quatorze trabalhos muito diversos. Em paralelo, Tellas começou a desenvolver Arquivos Tellas – teatro documentário como o seu projeto de direção, mas eventualmente ambos os projetos se uniram quando quatro peças dos Arquivos foram apresentadas no contexto do Biodrama. E, desde então, eles continuaram juntos até o momento em que Vivi Tellas não quis mais distinguir um do outro e optou por manter o termo Biodrama para todo o seu trabalho. Biodrama é, portanto, o nome do programa estético que Tellas leva adiante, e o seu modo de definir sinteticamente o conceito é o seguinte: os biodramas são biografias cênicas.

Então, consideramos isso como ponto de partida e perguntamos como se constrói uma biografia cênica. Esta definição que fazia Alan Pauls (2008) nos tempos daquele ciclo funcional com outros diretores nos dá uma primeira aproximação:

“O ciclo Biodrama do Teatro Sarmiento demonstrou que as formas para abordar a passagem de uma vida para a cena são múltiplas, muitas vezes híbridas, quase sempre tão inclassificáveis como a própria experiência da qual tentam dar conta. O documental, o teatro biográfico, a evocação, a recriação em termos de gênero, a exibição e o método de re-enactment são algumas das estratégias pelas quais o Biodrama procura tornar presente a irredutibilidade da vida humana. A ‘forma’ final de cada Biodrama depende sempre do intercâmbio entre o diretor e a vida específica que ele toma por objeto.”

Vejamos como este hibridismo de formas e multiplicidade de recursos aparece no caso particular de Mulheres Guia. Sem poder fazer aqui uma descrição exaustiva da obra, faço uma breve resenha de sua estrutura geral.

Ao entrar na sala, as três intérpretes estão dialogando sobre Medeia, de Eurípedes, debatendo sobre o que elas teriam feito no lugar da protagonista, como a julgam etc. Quando todo o público já entrou, e depois que o debate avança alguns minutos, começa uma canção, as três dançam e finalmente começam a apresentação.

Os diferentes momentos estão claramente divididos. As intérpretes parecem seguir um caminho com estações que elas respeitam rigorosamente, inclusive quando no interior dessas estações é permitido um pouco de liberdade.

Primeiro, elas se apresentam como guias, depois começam a mostrar seus “documentos” – as evidências de distintos aspectos de sua vida –, e logo começam a contar as histórias pessoais de cada uma. Nelas oscilam momentos mais “testemunhais”, nos quais elas falam diretamente para o público, com outros nos quais certas situações são recriadas com os mínimos recursos presentes na cena, como móveis ou objetos alusivos. Aqui encontramos o re-enactment que Pauls mencionava. A transição entre as histórias acontece naturalmente e varia em cada caso. Há uma grande fluidez que nos leva de um momento para o outro.

Depois que terminam as três histórias, as intérpretes dizem numa voz conjunta: “Vamos fazer Medeia” e lá começa uma espécie de jogo infantil no qual elas se disfarçam com aquilo que têm (todos os elementos apresentados anteriormente no contexto de suas histórias pessoais), elas decidem quem fará os personagens e experimentam uma representação.

Assim que termina, Silvana, fantasiada de coelho, fica de pé e canta duas estrofes do (melancólico e botânico) tango Naranjo em flor. Há os aplausos e, como parte do ritual final, há o convite para que o público compartilhe uma “comida temática” com as intérpretes, do mesmo modo como acontece em todos os outros Arquivos.

Nesta rápida trajetória, podemos tirar algumas ideias sobre as diferentes formas a partir das quais se conta uma vida, que poderíamos sintetizar assim:

I. Compartilhando anedotas e episódios significativos, que podem ser narrados como depoimentos ou recriados (re-enacted).

II. Resgatando tópicos que atravessam cada vida, como ligantes que constituem o centro em torno do qual orbitam as histórias. Assim, Maria é “aquela que se apaixonou por um playboy”, Micaela é “aquela da família peronista ” e Silvana é “aquela que não tem tido sorte na vida.” Os aspectos de suas vidas que não estão ligados nesses eixos estruturais são contornados. Isso quer dizer que são diretamente omitidos, mencionados muito brevemente ou bem integrados como referências implícitas em diferentes gestos cênicos.

III. Identificando nelas temas gerais que se relacionam com problemáticas históricas, de gênero ou outras. Neste caso, isso pode ser atribuído à inclusão de Medeia na peça. Tellas identificou um vínculo entre as histórias em relação ao tema da maternidade, esta por sua vez associada a algum componente trágico: aquela que não pôde ter filho, aquela que acabou de perder a sua mãe, aquela que viveu sua maternidade inicialmente como algo traumático.

Também aparece fortemente a questão das relações de casal. Outro ponto levantado é o estrangeiro, ligado ao mundo do turismo. Por último, havia neste trio algo mais fortemente teatral do que nos outros Arquivos, principalmente porque duas delas foram ou queriam ser atrizes.

Medeia integra todas estas questões e atravessa transversalmente a peça, aparecendo explicitamente no início e no final, motivo pelo qual ela desempenha um papel fundamental para o “agenciamento” das histórias pessoais.

Ensaio. Foto: Paula Pedreira.

2. O processo

Agora vejamos qual foi o processo de trabalho que deu origem a Mulheres Guia.

Assim como nos seus outros trabalhos documentários, Vivi Tellas e sua equipe realizaram uma primeira etapa de pesquisa (investigação que na verdade continua ao longo de todo o processo).

Isso durou quase o período de todas as visitas gratuitas da cidade ao longo de um ano: a visita noturna do Botânico, Congresso, Crímenes famosos, Caballito, Chacarita, entre outras. O único pedido era que as guias fossem mulheres, já que a única premissa que estava clara naquele momento era fazer um trabalho com três guias mulheres. Como Tellas já disse em muitas ocasiões, o que orienta sempre o olhar para estas experiências é a busca da teatralidade fora do teatro.

Inicialmente, o trabalho seria produzido de forma independente, assim como as peças anteriores. Quando apareceu a oportunidade de produzi-las no Teatro Sarmiento, houve a necessidade de acelerar o processo e, por isso, realizaram uma convocação pública para audições. Muitas guias da cidade vieram através da convocação, e entre elas foram selecionadas as três intérpretes com as quais o espetáculo foi criado.

Quando eu consultei Vivi Tellas sobre as razões da escolha, ela me respondeu que “todas as três tinham histórias atraentes para o teatro. Tinham elementos dramáticos, únicos, específicos. As três tinham um mistério.” (Tellas , 2011)

Durante as audições, Tellas e sua equipe faziam diversas perguntas e conduziam algumas improvisações. Algumas destas perguntas foram: Vocês se sentem atrizes quando estão trabalhando como guias? Qual é a sua profissão? Você sabe cantar ou dançar? É loira natural? Sua mãe está viva?

Em relação a isso, Micaela Pereira (uma das intérpretes) disse: “Eu me lembro que foram feitas todas essas perguntas que, ao final do processo, se tornaram muito importantes para mim, como, por exemplo, a pergunta sobre a minha mãe. Mas naquela época eu não tinha a menor ideia. Parecia uma coisa totalmente aleatória.” (Pereira, 2011)

Depois vieram dois meses de ensaios quase diários. Elas trabalharam em torno de questões, de motes de criação e de improvisações. Elas foram solicitadas a trazerem coisas que considerassem importantes.

Micaela conta: “Ainda não sabíamos o que iria acontecer para cada uma de nós. Eu levei coisas que tinham a ver com o museu, com a infância, tudo misturado. E, no meu caso, Vivi direcionou para um caminho… (…) O que Vivi me pediu uma vez foi que ficasse a etnografia da minha vida numa família peronista, e não a minha experiência específica no Museu [Etnográfico]”.

Conversando sobre a dinâmica dos ensaios, Micaela me contou sobre duas situações que ela citou como exemplos dos processos de seleção e transformação que foram acontecendo na montagem da obra.

Sua mãe era uma pintora e fez uma série dedicada a Perón e a Evita, e outra dedicada somente a Evita. Ela levou dois quadros ao ensaio, e para que eles não fossem danificados, ela os protegeu de forma peculiar. Ao chegar de forma ansiosa e descuidada, ela começou a rasgar os papéis que cobriam o quadro. Mais tarde, Tellas não só decidiu que ela iria contar sobre a sua mãe e mostrar os quadros como também selecionou esse gesto como algo que deveria aparecer na peça. Então, na cena, ela sempre traz os quadros cobertos e rasga o papel diante do público. No final de sua história, um ventilador é ligado e isso faz voar os restos de papel, criando uma imagem muito potente visualmente e também muito libertadora.

Outro episódio, também ligado às pinturas, é ilustrativo por vários aspectos no que diz respeito ao processo criativo:

“Naquele dia, por acaso, eu tinha uma camisa da mesma cor que a pintura, e então dessa situação foi escolhida a cor que eu ia usar. Porque a equipe opinou que eu estou parecida com a imagem da Evita no quadro, e então Vivi me diz que eu iria dizer também no texto que sempre me disseram que eu parecia com Evita. (…) Essa foi uma indicação da diretora, que uma vez me disse ‘diga dessa maneira, e logo você apoia a pintura…’. Então eu vou para trás, apoio o quadro, volto para frente com a camisa da mesma cor e digo ‘sempre me disseram que eu parecia com a Evita’, eu faço o coque no meu cabelo, eu me sento e logo começa a visita guiada de María sobre Eva Perón.” (Pereira, 2011)

Este fragmento sintetiza a forma como as decisões são tomadas em termos dos recursos cênicos que serão utilizados e os movimentos das intérpretes dentro da cena, assim como as pequenas transformações que serão operadas sobre as histórias ao ir fixando o texto que as intérpretes vão dizer.

Ao longo desta etapa, muitas situações foram experimentadas até o momento quando foi decidido qual seria o mundo que cada uma visitaria. Em cada encontro, Tellas e Mei Iduicissa –assistente e assessora de dramaturgia – trabalhavam a partir das anotações dos acontecimentos no ensaio e preparavam o ensaio do dia seguinte, destacando coisas que gostariam de experimentar, coisas para repetir e coisas para fixar. Tellas diz:

“No início, eu gosto de abrir a investigação para todas as direções, criando espaço para todas as ideias, desenvolvendo e expandindo-as no espaço. Dessa forma a criação se assemelha a um funil. Eu vou tomando um caminho, e nisso vai ficando claro que existem coisas que estão nesse caminho e outras que não.” (Tellas, 2011)

Finalmente, houve um trabalho de edição, de montagem, de costura, que acabou de acontecer recentemente nas últimas semanas. Tellas explica que está em busca de uma associação entre esses fragmentos: “No princípio, há uma espécie de progressão que parte de uma perspectiva geral, que é o trabalho delas como guias, até o nível pessoal, que são as histórias de cada uma.” (Tellas, 2011 )

Como podemos ver, nesta peça, há um desafio duplo: encontrar a forma de contar cada uma das vidas, e depois a forma de unir estas três histórias. Como dissemos, a inclusão de Medeia funciona neste sentido.

Também são importantes as canções. Entre a história de Micaela e a de María, por exemplo, Tellas decidiu colocar uma canção de Leonardo Favio, que pode ser pensada como uma articulação entre o mundo peronista e o mundo musical dos anos setenta no qual está inserida a história de amor de María.

Em relação ao modo como cada uma participa – ou seja, atua – na história da outra, Micaela diz: “Fomos buscando, contando a história de uma e experimentando em que medida elas serviam nas narrativas das outras duas. Depois Vivi concebeu como articular tudo isso.” (Pereira, 2011)

3. Transformação das histórias

Ainda que pensemos que se trata de uma adaptação, experiências como esta sempre instalam a dúvida sobre o quanto são reais ou sobre o quanto são transformadas essas histórias que são contadas. Tellas explica que esta conversão é uma busca desejável e não somente uma concessão às necessidades da cena: “Eu procuro que nada fique como está, que tudo esteja atravessado mais pelo teatro, que passe por essa transformação, essa elaboração.” (Tellas, 2011)

Quanto à forma como ela concebe o processo de dramaturgia das biografias que realiza, ela diz:

“Há uma busca pelos momentos de mudança na vida, momentos precisos da biografia que marcaram uma mudança. Quando estas pessoas lhe contam suas histórias, elas não estão contando como se fossem algo importante, elas usam como um tom mediano para tudo. Eu vou dando-lhes um valor, aí está o olhar. Eu vou fazendo perguntas. Então tudo começa a ter um peso, porque vamos fazer algo com isso, algo teatral. (…) As histórias pessoais estão direcionadas para uma aresta.” (Tellas, 2011)

Assim, através das perguntas, Tellas vai alargando as situações.

Quando Silvana contou que não teve uma boa experiência nos primeiros momentos da maternidade, que ela estava insegura, Tellas perguntou-lhe: “Você ficou louca?”, e ela respondeu que sim, que ficou louca. Isso é o que ficou na peça: “Quando nasceu minha filha, eu fiquei louca”. Nas palavras da diretora: “aí começa a ‘reescritura’ da historia, porque eu ‘reescrevo’ tudo o que me contam”.

Esta reescritura acontece tanto no nível das anedotas, que vão sendo “apimentadas” e redefinidas para a cena, assim como acontece com os objetos que são exibidos como documentos.

Em alguns casos, a falsidade dos documentos é colocada em evidência. Por exemplo, quando Silvana mostra uma foto dela menina disfarçada de Coelho e, em seguida, apresenta uma fantasia de Coelho diferente da foto e ajustada para o seu tamanho atual.

Os vários documentos parecem ter diferentes estatutos. No geral, o que é essencial é que eles sintetizem alguns dos sentidos que aparecem nas histórias e que sejam funcionais em relação às narrativas. Nesse sentido, é interessante o relato de Micaela em relação à peruca “de Evita” que ela tem no palco:

“Na realidade, a peruca vem de outra coisa. É uma história que eu contei de minha tia, de quando ela foi perseguida na época da ditadura e usava uma peruca. O que eu contei foi que posteriormente eu e meus irmãos tínhamos a peruca no meio de nossas roupas de fantasias e que a usávamos para brincar. Então Vivi transformou isso em: ‘Com esta peruca, meus irmãos e eu brincávamos de Evita’. Existe algo, mas na realidade não. Existe uma transformação do objeto, podemos dizer, porque não é exatamente… E ela decide que esta peruca esteja ali e que depois eu a coloque para fazer Medeia.” (Pereira, 2011)

Ensaio. Foto: Paula Pedreira.

4. A tensão biografia/autobiografia

Eu entendo que parece evidente no que foi exposto até aqui que o trabalho de construção da peça a partir dos relatos de vida está muito mais próximo de um trabalho biográfico do que autobiográfico. As intérpretes participam do processo narrando suas histórias e existe aí um princípio de construção, mas logo este material vai se transformando completamente em função do olhar exclusivo da diretora.

Uma certa condição de possibilidade para que isso aconteça no trabalho de Vivi Tellas parece ser uma espécie de sensação de incerteza que ela visa promover nas intérpretes. Como as decisões finais sobre o que será contado estavam no comando e na responsabilidade da diretora, as intérpretes foram compreendendo que deveriam estar em suas mãos e somente trabalhar a partir das instruções que recebiam nos encontros dos ensaios. Tellas insistentemente desencorajou que elas “aperfeiçoassem” o que estava sendo trabalhado nos ensaios ou que tentassem dizer “melhor” as suas falas.

“Com isso, Tellas busca potencializar um estado de fragilidade e de instabilidade que permita a emergência da inocência, do que havia de autêntico nelas, da coisa real em si, descuidos e impurezas características daquilo que se considera vivo. Então, elas deixam de ter a total autoridade sobre as suas próprias histórias. Em relação a isso, Micaela diz, sem nenhuma censura e total satisfação: “Quando ela nos dizia “esta palavra sim, esta palavra não, nós nos dávamos conta de que ela vai contar a nossa história.” (Pereira, 2011)

5. Final

Acredito que o processo de construção desta peça, em termos de dramaturgia, é um exemplo muito fértil para refletir sobre diferentes artistas de teatro documentário. Espero que o relato que eu desenvolvi até aqui tenha sido claro e do interesse de vocês. Eu receio estar me alongando muito, por isso eu gostaria de terminar destacando algumas poucas ideias vinculadas ao título dessa mesa como forma de uma breve conclusão.

Por um lado, eu gostaria de apontar que esta tensão – presente em todos os Arquivos – entre o intérprete que se mostra e a diretora que intervém em sua narração/performance de si cria aquilo que podemos chamar de uma encenação do olhar (3). Isso significa que não vemos somente aquilo que Tellas direcionou para o a nossa visão, mas sim que aquilo que se torna presente é o próprio gesto de olhar. Isso é próprio de todo trabalho documentário. Neste caso, trata-se particularmente de olhar ao nosso redor, em direção às pessoas que nos rodeiam, revalorizando as suas vidas, as suas histórias, os seus corpos, os seus pertences.

Por outro lado, vale à pena considerar que Tellas favorece, através de vários procedimentos cênicos e preferindo sempre espaços pequenos e uma quantidade reduzida de espectadores, que este encontro com nossos semelhantes aconteça de um modo muito próximo e quente. A cena a que assistimos permite uma aproximação com estas pessoas como parte de nós. Isso acontece literalmente, já que no final do espetáculo nós compartilhamos uma comida e temos a possibilidade de criar diálogo com elas. Mas eu digo isso principalmente em sentido figurado. O fundamental é a aproximação que se origina por causa do fato de que elas se comprometem intimamente com a exposição de sua afetividade e de que os espectadores se identificam especialmente com elas por serem, justamente, pessoas como nós.

Acredito que a encenação de um olhar ao redor e a criação de espaços de proximidade a partir do contato direto com estas pessoas reais e seus objetos são características que dão para o teatro documentário de Vivi Tellas uma potência estética, política e singular, e que constituem um caso muito relevante para pensar as possibilidades especiais que o teatro documentário tem para operar contra-hegemonicamente dentro e fora do mundo artístico, movendo-se num limite produtivo entre o que é arte e o que não é, e por constituir um campo aberto numa rede de novos laços sociais.

Notas

(1) Proyecto Archivos, de Vivi Tellas

(2) Pamela Brownell faz referência à versão brasileira do espetáculo O rabino e seu filho que foi apresentada no Centro da Cultura Judaica em São Paulo entre os dias 24 e 26 de abril de 2012. É importante comentar que este mesmo espetáculo teve sua versão anterior e original intitulada Rabbi Rabino montada em Nova York no Performance Space 122’s – 6th Annual Winter Festival of Contemporary Performance em janeiro de 2011. Como diretora e performer, Vivi Tellas costuma viajar para outros países e realizar a versão de seus espetáculos com novos intérpretes. Isso revela um procedimento performático de seu processo de encenação, tendo em vista que a criação sempre acontece através de procedimentos de atualização, seja do tempo, do espaço e também dos participantes inseridos na experiência artística.

(3) O conceito escenificación de la mirada, traduzido aqui como encenação do olhar, está para ser publicado num artigo da Revista Brasileira de Estudos da Presença na qual a autora trabalha mais profundamente sobre esta ideia.

Referências bibliográficas:

PAULS, Alan. “Biodrama”, en Biagini, H. y Roig, A. (Dirs.) Diccionario del pensamiento alternativo. Buenos Aires: Biblos/UNLa, 2008

PEREIRA, Micaela. Entrevista personal. 2011

TELLAS, Viviana. s/f, “Proyecto” In www.archivotellas.com.ar

TELLAS, Viviana. Entrevista personal. 2011

Davi Giordano é diretor teatral e mestrando em Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro na linha de Estudos da Performance. A presente tradução faz parte de sua pesquisa intitulada Teatro Documentário: perspectivas das novas subjetividades na cena contemporânea brasileira e argentina / Procedimentos de direção para a cena documentária.

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