Dom Quixote e a invasão da poesia

Crítica da peça Das saborosas aventuras de Dom Quixote de la Mancha e seu escudeiro Sancho Pança (um capítulo que poderia ter sido), do grupo goiano Teatro que Roda

19 de outubro de 2011 Críticas

O espetáculo Das saborosas aventuras de Dom Quixote de la Mancha e seu escudeiro Sancho Pança (um capítulo que poderia ter sido) inicia-se de modo inusitado para a maior parte do público que se aglomerava na praça Nove de Julho, no centro de Presidente Prudente, interior de São Paulo. Um grupo de jovens vestidas de noiva aparece inesperadamente, caminhando em direção a uma fonte, localizada no meio da praça. Lá, ocupando diferentes posições, assumem o aspecto de figuras estatuárias, fundindo-se à paisagem urbana e tornando-se objetos de contemplação para o público que passa, indaga e tira fotos.

Do alto de um prédio, uma noiva desgarrada do grupo prepara-se para descer de rapel. Logo as pessoas se aglomeram em torno do edifício em um número crescente. Sua descida é acompanhada com frisson pelo público que a aplaude quando ela chega ao solo. Unindo-se às outras noivas que, neste momento, vêm ao seu encontro, desaparece na praça. Este poderia ser uma espécie de prólogo do espetáculo que provoca um choque estético no público, um estranhamento que assalta o seu olhar do cotidiano, uma interrupção do fluxo contínuo do dia a dia, despertando a sua percepção para novos estímulos.

Outra invasão. Dessa vez definitiva. O teatro na cidade. As noivas retornam para debaixo do mesmo prédio e apontam para o alto, guiando o olhar do público. Lá do alto, avista-se um homem que inicia também uma descida de rapel. Nova excitação dos cidadãos que acompanham sua proeza. De modo cortante, este homem chega ao solo, também sendo aplaudido. Este é Dom Quixote de la Mancha, célebre personagem do autor espanhol Miguel de Cervantes.

A desleitura

Desleitura talvez seja o termo mais adequado para se identificar a operação realizada pelo grupo goiano Teatro que Roda e pelo encenador André Carreira na adaptação do clássico espanhol El ingenioso hidalgo Don Quixote de la Mancha. Desleitura no sentido de atualização de situações e personagens do universo cervantino, procurando retomar o que ainda é recorrente na realidade urbana contemporânea. Trabalhando a partir da seleção de cinco episódios dessa obra, o grupo transforma o fidalgo espanhol em um executivo, e o seu fiel escudeiro Sancho Pança, homem simples e de bom senso, em um catador de papel. Seu garboso cavalo é a carroça desse mesmo catador. Os feiticeiros contra os quais Dom Quixote luta para salvaguardar sua amada Dulcineia são punks. O famoso dragão do romance não é mais um moinho de vento, mas um trator que atravessa a avenida defronte à praça, interrompendo o trânsito, além de trazer consigo as jovens noivas do início do espetáculo. Este é um de seus momentos de maior beleza e impacto.

Enigmáticas são as figuras dessas jovens que surgem em diversos momentos, sempre em aparições perturbadoras. Descobre-se de imediato que elas são a donzela Dulcineia, por quem Dom Quixote se lança em aventura. A princípio, elas parecem adquirir o estatuto de um coro. Mas, ao longo do espetáculo, ao invés de comentar, guiar e narrar os acontecimentos, este suposto coro possui uma função inversa: a de desorientação. Suas “invasões” na cena interrompem a fluidez do jogo estabelecido entre Dom Quixote e Sancho Pança, fazendo o primeiro mergulhar ainda mais em seus devaneios, desnorteando a todos: público e personagens. Elas provocam uma espécie de estranhamento, uma interrupção da ficção. Além disso, possuem um aspecto acentuadamente performativo, visto que suas intervenções demonstram nada querer significar a princípio, pelo menos de maneira unívoca; são ações, energias despendidas que almejam ativar outras camadas de percepção do espectador, “instalando a ambiguidade das significações, o deslocamento dos códigos, o deslizamento de sentido”.

A partição

Neste teatro de intervenção urbana a cidade torna-se teatro e o público em coparticipante do fenômeno teatral de modo mais intrínseco. Estabelece-se um jogo lúdico entre atores e plateia, garantido particularmente pela ação do catador de papel/ Sancho Pança, interpretado com competência pela atriz Liz Eliodoraz. Em diversos momentos, o público participa da ação do espetáculo, seja ajudando Dom Quixote a vestir sua armadura, seja auxiliando Sancho Pança a conduzir sua carroça, seja divertindo-se em descobrir os variegados disfarces dos atores que tentam se misturar a plateia sem dar a perceber sua participação na ação cênica. O prazer de jogar é compartilhado por crianças, adolescentes e adultos, indistintamente, tornando o espetáculo, de certo modo, um ato artístico coletivo.

Há uma fricção entre a ficção e a realidade, baseada na relação de Sancho Pança com o público. O primeiro não deixa nunca de chamar a atenção para o caráter ilusório das ações de Dom Quixote, o que garante uma atuação cúmplice da atriz com a plateia. Suas evoluções junto ao público são alguns dos momentos mais felizes, pois, bebendo das fontes farsescas e histriônicas da tradição popular, confere ao espetáculo uma deliciosa comicidade.

Sancho Pança passa a ser então uma figura central na encenação, uma espécie de lucidez cômica. Talvez, o seu verdadeiro protagonista. Existem dois universos distintos no espetáculo: o do devaneio (e, consequentemente, o da representação) de Dom Quixote e o da realidade cotidiana da plateia. Sancho encontra-se no entre. Ele abre uma divisão, ou seja, uma partição, que é justamente o olhar que permite ao espectador perceber a dualidade dos discursos. Em Das saborosas aventuras de Dom Quixote de la Mancha e seu escudeiro Sancho Pança, este olhar vem de Sancho, que nunca perde o referencial da realidade ao debochar do delírio de Dom Quixote, ao mesmo tempo em que não se furta de partilhar de suas aventuras. De sua poesia. Ele é então um personagem de passagem, cindido entre dos mundos. Sancho Pança seria a própria partição do espetáculo.

A invasão

Espetáculo vigoroso e comovente, com atuações e um encenação bastante eficazes, Das saborosas aventuras de Dom Quixote de la Mancha ganha ainda mais força e sentido em suas cenas finais.

Novamente se colocando em risco, Dom Quixote agride alguns operários. Acredita que Dulcineia seja prisioneira deles. No entanto, é vencido e jogado na sarjeta por seus algozes. De súbito, surge um carro da polícia de onde saem dois policiais que o levam consigo. Seria a realidade invadindo a ficção? Veto à poesia? O Catador/Sancho permanece atônito. Chora pelo desaparecimento do amigo. E, finalmente, decide ir à sua procura. Neste momento, diz pela primeira vez, com seriedade, quem é: Sancho Pança. Pega sua carroça e sai em disparada, provavelmente em direção à delegacia. Boa parte do público acompanha-o nessa corrida.

A trajetória do cavaleiro de triste figura demonstra que na vida real não há heróis. Porém, a invasão de Dom Quixote por entre os prédios de Presidente Prudente é uma metáfora da invasão da poesia à cidade. É uma forma de devolver a cultura e a arte ao seio da pólis. E aqui reside a força política do espetáculo. A batalha de Dom Quixote não é perdida, ela resiste por meio de Sancho Pança que, apartado do amigo, escolhe a poesia, tornando-a seu elemento vital. Sua corrida não é apenas o resgate de Dom Quixote, mas o da própria poesia, do teatro mais especificamente. E os espectadores que o acompanham neste último percurso parecem também correr em busca do teatro.

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