Número zero – O cansaço em performance

Notas críticas sobre Heterotopias – Habitação Rio, de Andrea Bardawil e Alexandre Veras

6 de outubro de 2010 Críticas

O festival ArtCENA, com a curadoria de Fábio Ferreira e dos curadores convidados André Lepecki e Eleonora Fabião, trouxe à cidade o projeto Heterotopias realizado pela ONG Alpendre – Casa de Arte, Pesquisa e Produção, que é um desdobramento da comemoração de dez anos de atividades desse grupo de Fortaleza. O projeto empreendeu uma série de ações integradas no sentido da promoção da discussão e apresentação de parte da produção de arte contemporânea realizada nos últimos dez anos em seu Estado. O formato idealizado para o Artcena é uma Habitação dos artistas Alexandre Veras (vídeo) e Andréa Bardawil (dança) em uma casa na Ladeira do Selaron no bairro da Lapa. No texto do projeto a palavra alpendre aparece como “um território plástico que na lisura pode ser transformado, convertido e reconvertido (…) lugar de flerte com a alteridade (…) espaço de trocas e de fluxos”. A forma do alpendre carioca, na casa situada no alto da escadaria realiza uma conformação forjada na performance do não-específico da Lapa. Habitação de um “entre” interior e exterior, de um estar que aponta para um além dele mesmo.

A ação desse Heterotopias em habitação é convidar diariamente, de acordo com horário agendado, artistas e amigos em torno da partilha dos atravessamentos da “ideia de cansaço, apresentada por Maurice Blanchot no livro A conversa infinita, e da ideia de habitar o tempo, apresentada por João Cabral de Melo Neto nos poemas Habitar o tempo e Bifurcados de habitar o tempo.” O público pode se integrar a essa partilha entre artistas e compor outras sensações. O Alpendre formaliza assim uma das possíveis Heterotopias pensadas por Foucault, que define o termo em conformação com o duplo problema da produção de sentidos e dos espaços. O prefixo hetero –, aponta diretamente para o alter, o outro, e, nesse sentido, também se enquadra nas noções de “ao lado” e “contra”, na relação especular do eu e do outro. Já –topia é lugar e espaço.

“Existem países, cidades, continentes, planetas, universos ‘sem lugar’, os quais seriam impossíveis encontrar num mapa, e histórias sem cronologia. Esses lugares, esses tempos, nascem na cabeça dos homens, nas suas narrativas, nos seus sonhos, no vazio de seus corações. São a doçura das utopias. Mas eu acredito que existem em todas as sociedades algumas utopias que ocupam um lugar real, um lugar que podemos situar num mapa, que têm um tempo determinado, um tempo que podemos fixar e medir segundo o calendário de todos os dias.”

Notas de agenda: sábado, 2 de outubro de 2010.

Denise Stutz em vídeo. Imagem interferida por outra do vídeo intitulado Tempos. Fragmentos sobrepostos que desestabilizam a definição do olhar. O corpo de Stutz em performance quase anódina entre fixidez e um virar-se. Não existem sinais de esforço. A repetição dá a ideia do cansaço causado por ela e, ao mesmo tempo, do desejo de movimento para sair de um certo estado de coisas que o cansaço provoca. A cabeça de Stutz está recortada – fragmento que remete ao inacabamento da obra em franca operação do espectador. O espectador precisa se colocar em obra ao mesmo tempo em que a obra (imagem) se dá a ver. Alexandre Veras procura pelo projetor que idealmente apague o quadro da projeção na parede, fazendo dela seu mar de Heterotopia. Sobredeterminação de substâncias: da que forma o vídeo Tempos com a massa e tinta do suporte parede. Inclusão do espaço na construção de sentido. Provocação para outros espaços que frequentamos, nos quais nossas determinações temporais estão aliadas ao nosso estado de estar cansado. Crítica: fazemos nosso tempo por meio do nosso cansaço projetado. Veras opera a fragmentação que promove nosso estado de alerta e nos construímos, nos portamos em obra junto ao vídeo. O cansaço não assenta, nos remete.

Outras informações sobre os artistas e o festival: http://www.artcenafestival.art.br/

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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