Homem Piano – uma instalação para a memória

Texto sobre o processo de criação da montagem da CiaSenhas de Teatro, de Curitiba

26 de agosto de 2010 Processos
Foto: Elenize Dezgeniski

Para relatar o processo de criação do espetáculo Homem Piano – uma instalação para a memória é necessário esclarecer (mesmo que rapidamente) os meandros deste longo processo iniciado em 2008 com o Projeto de Pesquisa em Linguagem Cênica Narrativas Urbanas – interferências e contaminações. Na pesquisa inicial os intérpretes da CiaSenhas desenvolveram propostas de criação cênica a partir de um fato real veiculado pela mídia. Minha função era conduzir a pesquisa dos atores e desenvolver a dramaturgia dos projetos individuais. Sem a pretensão de montarmos um espetáculo, o objetivo desta fase era justamente a pesquisa de linguagem – treinos e procedimentos artísticos. Isso quer dizer, determo-nos em um processo de criação compartilhado e colaborativo e nele aprofundar o estudo prático sobre aspectos da narrativa em cena, tendo o ator criador como propositor.

Durante o processo criativo (da pesquisa e montagem final) tivemos o envolvimento de vários artistas que ajudaram a tecer e intensificar o espaço de criação conjunta e consequentemente o resultado deste trabalho. Dentre eles é preciso citar Chico Medeiros e Lucienne Guedes pela imensa colaboração. Foi fundamental também a parceria com Cinthia Kunifas, responsável pela condução das pesquisas de corpo da CiaSenhas, bem como Mônica Infante, que assumiu esta tarefa no período da montagem.

Homem Piano – uma instalação para a memória nasce da pesquisa individual do ator Luiz Bertazzo. O documento jornalístico escolhido por ele, trazia matérias veiculadas pela internet sobre um rapaz, apelidado pela mídia de Homem Piano. Em linhas gerais, as reportagens apresentavam um jovem inglês (2005) que perdera a memória e fora encontrado por desconhecidos. Estes o levaram a um hospital onde permaneceu internado durante meses e manteve-se em silêncio. Em um determinado dia, através de um desenho, ele pediu um piano e foi prontamente atendido. Diante do piano, o homem supostamente tocou várias músicas. O fato foi muito explorado pela mídia através de especulações sobre a identidade do desconhecido. Esta seara instigou Bertazzo a tentar entender poeticamente a complexidade de sentimentos e emoções que assolam um Ser sem memória, portanto sem presente e sem passado.

No projeto Narrativas Urbanas estivemos muito absorvidos na pesquisa sobre a relação entre corpo e narrativa. Em outras palavras, buscávamos experienciar o sentido de aspectos da narrativa corporificada pelo intérprete. Para tanto foram realizados treinos específicos e vários workshops a partir de diferentes propostas. Ao final do projeto, Bertazzo havia construído a fisicalidade da personagem Homem Piano e uma partitura de ações bastante focadas em estados emocionais expressos no corpo. Mesmo existindo pouca relação direta com os fatos reais que serviram como matriz da pesquisa havíamos encontrado mecanismos de tradução poética dos fatos em corpo emocionado Os resultados desta fase nos instigavam a prosseguir.

Em 2009, ainda sem o compromisso de realizar um espetáculo, Bertazzo continuou a desenvolver a pesquisa, da qual me mantive sempre próxima propondo e estimulando as investidas do ator. Durante esse período, tivemos duas oportunidades de, na qualidade de “mostra de processo”, apresentar ao público o trabalho que se mantinha vivo e em transformação. Estas experiências permitiram que investigássemos, em espaços não convencionais, a escritura cênica narrativa e expandí-la. Foram situações em que observamos possibilidades de relação entre memória, espaço cênico, instalação (segundo premissas das artes visuais), intérprete e platéia. Além disso, as repercussões do trânsito entre realidade e ficção e a tensão entre ator e personagem, vivenciados nestas duas oportunidades, serviram como base para realizarmos o projeto de montagem.

Em todas as mostras de processos mantivemos e investigamos a ação de convidar o espectador para o jogo propondo a ele que escrevesse suas memórias pessoais em pequenos papéis, realizando a cerimônia de trituração destes em um liquidificador. Mantivemos também a utilização de uma mala cheia de giz branco e um grande círculo desenhado no chão com a letra da música Nowhere Man dos Beatles, sobre a qual o intérprete caminhava descalço para, em seguida, realizar uma série de quedas sobre as palavras escritas, marcando-se de giz (memórias) pelo corpo todo.

Além destes, novos elementos foram inseridos na estrutura inicial: Ary Giordani (sonoplasta) iniciou a utilização de texturas sonoras a partir de objetos microfonados; outras formas de relação com a palavra no espaço e com o texto falado foram experimentadas. Procurávamos provocar situações cênicas em que ator e personagem agissem como condutores de uma determinada teatralidade que envolvesse a memória e o espaço físico e propusesse uma relação ativa com o espectador. Cultivamos o percurso para compreender a dinâmica de criação: primeiramente o desdobrar do documento real em estados físicos e emocionais e depois em palavras soltas de um roteiro flexível que se reorganizava a cada nova experiência com o público.

Em 2010, com o Prêmio Myrian Muniz retomamos a pesquisa, agora com o intuito de realizar uma montagem. Resgatamos o que havíamos feito até então e iniciamos um novo processo de trabalho. Desde o início optamos por nos concentrar menos na história de Andreas – o jovem que perdera a memória – e mais nas implicações da ausência de memória na constituição do Ser, pois essas eram as bases da investigação realizada por Bertazzo desde o início. Ao esmiuçarmos o percurso pelo qual a pesquisa seguiu e os elementos cênicos que estruturavam as cenas, chegamos enfim, ao nome do espetáculo: Homem Piano – uma instalação para a memória.

Foto: Elenize Dezgeniski

Para a montagem pareceu-nos fundamental a participação do público de maneira efetiva e afetiva de modo que a ação da platéia, enquanto corpo coletivo ou ação individual, desencadeasse a construção de memórias do personagem Homem Piano e sustentasse a dramaturgia. Para isso, decidimos que a dramaturgia deveria criar mecanismos que conduzisse o espectador por um trajeto de purificação e redenção de suas próprias memórias. Estivemos durante todo o processo de criação, que resultou na montagem, estimulados pelas propostas que Nicolas Bourriaud apresenta em seu livro Estética Relacional e das idéia delas, traduzidas para o teatro.

Permitir ao espectador participar da ação cênica (presentificando suas memórias e doando-as pelo desejo de colaborar com o personagem) era uma exigência do trabalho desde o início da pesquisa. Encontrar circunstâncias e procedimentos poéticos que o levassem a esta participação nos conduziu a criação de uma performance / instalação que foi realizada em praças centrais da cidade com o objetivo de nos colocar em situação de risco frente ao improvável quando se trata de criar um contato afetivo com o público estimulando-o a doação de memórias pessoais.

Na performance (posteriormente batizada de Homem sem memória aceita memórias alheias), Bertazzo se posicionava sobre um tapete branco durante um tempo pré-determinado usando fones de ouvido ligados a um microfone instalado a alguma distância sem que ele pudesse saber quem confidenciava memórias. Os transeuntes podiam doar suas memórias falando livremente ao microfone. Não havia na performance a diferenciação entre ator e personagem. O que as pessoas diziam nos microfones eram lembranças íntimas doadas àquele homem que pedia por elas. A linha divisória entre realidade e ficção era atenuada e criava um território em que ator e espectador desfrutavam de um espaco cuja relação entre eles se fortalecia pela intimidade vivenciada. Estes conceitos foram retrabalhados na montagem Homem Piano – uma instalação para a memória.

Realizar a performance como parte do processo de criação foi decisivo porque desdobrou o a pesquisa Narrativas Urbanas em uma ação cênica na rua e iniciou uma nova perspectiva para a criação do espetáculo. O material criado durante a pesquisa inicial foi transformado em uma Performance sobre Memória que, independente de ter sido construída como parte do processo criativo, tornou-se uma obra em si que atualmente faz parte do repertório da Companhia.

No processo de criação do Homem Piano, a performance transformou-se na principal referência conceitual do espetáculo. Isso porque ela representava uma síntese da pesquisa do intérprete em corporificar o fato real veiculado pela mídia, ao mesmo tempo em que estabelecia espaços de relação entre Teatro e Instalação e criava vínculos entre ator e espectador.

Para a montagem realizamos um procedimento que incluiu tradução poética da performance em um espetáculo teatral no espaço da Sede da CiaSenhas (1). Percebemos que o diálogo entre Teatro e Instalação exigia que reelaborássemos o espaço real e concreto das salas da sede em potências dramatúrgicas, em percurso de esquecimento e criação de memórias. Para tanto nomeamos o trajeto do espectador, que era também do personagem, em 1-Embarque, 2- Estação esquecimento, 3- Estação lembranças. As escadas entre um andar e outro serviam como espaços de transição entre uma estação e outra.

Como o corpo do intérprete já trazia os contornos de um ser fictício (personagem Homem Piano) elaborado anteriormente, começamos a realizar uma série de exercícios de improvisação nos quais explorávamos a relação entre corpo e espaço a partir das possibilidades reais das salas. Destas experiências, surgiu a primeira partiturização de ações que projetavam situações em que o ato performático e a ação dramática se misturavam. Tínhamos como objetivo criar uma malha incerta – entre verdade e ficção – sobre a qual os participantes pudessem transitar de uma sala a outra e nesse caminhar acessassem suas lembranças pessoais. O espectador era convidado a entrar no jogo de lembrar e de esquecer e de doar ao homem sem memórias, suas mais íntimas lembranças, assim como acontecia na performance.

Foto: Elenize Dezgeniski

O texto escrito foi introduzido após obtermos certa intimidade com o espaço físico. A ele cabia a função de propor lugares de jogo teatral que conduzisse a platéia às suas próprias memórias e à construção de vínculos entre ator-espectador e espectador-espectador através da experiência de lembrar e da ação de doar.

Por fim, investigamos possibilidades do texto falado como um dos elementos condutores da participação da platéia ao universo de suas lembranças. Na escrita do texto optei por trabalhar com estruturas poéticas e épicas em um corpo textual líquido, fluido, cujo encadeamento deveria se manter diretamente ligado ao jogo do ator com o espectador. O texto foi criado enquanto articulação – entre o personagem Homem Piano e o performer Luiz Bertazzo – de modo a revelar tensões entre a situação concreta e real da Instalação Cênica e o universo fictício do personagem.

Na encenação, que começa na rua em frente à sede da CiaSenhas, O Homem Piano enfrenta o seu esquecimento e se debate diante da ausência de identidade: “o ser sem lembranças padece de dores agudas” e ao mesmo tempo, tenta resgatar suas próprias memórias “alguém poderia lembrar alguma coisa boba sobre mim mesmo. Afinal, alguma coisa sobre mim mesmo eu devo saber”.

Nota:

(1) A sede está localizada em uma rua muito estreita na região central da cidade de Curitiba, tem três andares com salas de 40m2 cada uma, sendo que no  térreo fica a administração e a cozinha.

Foto: Elenize Dezgeniski

CiaSenhas de Teatro

Homem Piano – uma Instalação para a memória

Criação Compartilhada: Luiz Bertazzo e Sueli Araujo

Intérprete: Luiz Bertazzo

Texto e Direção: Sueli Araujo

Preparação corporal: Cinthia kunifas/ Mônica Infante

Sonoplastia: Ary Giordani

Figurino e consultoria : Amabilis de Jesus

Cenário/instalação: Paulo Vinícius

Consultoria de vídeo: Luciana Barone

Iluminação: Fábia Regina/Vitor Sabag

Fotos: Elenize Dezgeniski

Produtora: Marcia Moraes

Estreia: Julho/2010

Informações sobre o trabalho do grupo no site http://www.ciasenhas.art.br/

Leia também a crítica de Luciana Romagnolli: http://www.questaodecritica.com.br/2010/07/rendendo-as-redeas-ao-espectador/

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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