Diários do Théâtre du Soleil (3)

Depoimento sobre o processo de seleção e o estágio no Théâtre du Soleil – terceira parte

20 de julho de 2009 Estudos

ENTREVISTA COM ARIANE MNOUCHKINE

Tenho medo do que ela possa pedir. Percebo que tenho bastante dificuldade com improvisação. Chego uma hora antes e Charles-Henri, assistente de Ariane, pergunta se eu quero fazer no grupo anterior, digo que não. Isso acabaria com toda a minha preparação. Percebo novamente que tenho dificuldade com improvisação, talvez seja o caso de trabalhar isso na análise.

Tenho tudo pronto: Meia calça, segunda pele, calça, camisa de manga comprida, meia para a cabeça e sapatilha. Tudo preto.

Meu grupo é chamado. Somos 30. Chegando lá, somos recebidos por Ariane que nos explica como ela não gostaria de estar fazendo aquilo, mas que infelizmente não pode aceitar todas as 2000 e não sei quantas pessoas que se inscreveram para fazer o estágio.  Meu coração bate mais forte. Ela diz que independentemente da resposta, isso não significa nada a nosso respeito e que a única coisa que ela vai tentar observar é se nós sabemos “receber”. Receber do outro. O exercício é de Coro-corifeu. Fico feliz, pois já fiz esse exercício outras vezes, no estágio com Juliana Carneiro da Cunha e na minha companhia. Olho em volta e procuro Juliana, não a vejo. Gostaria que ela estivesse ali e que ela fizesse o Corifeu, mas ela não está e o nosso corifeu será Duccio, outro ator do Soleil. Ariane divide nosso grupo em 3: 2 de mulheres e 1 de homens.

Eu me posiciono logo atrás de Duccio e a música começa.

Elipse.

Acabei de ir ao Soleil tentar saber se já tinham uma resposta. Algumas pessoas que estavam fazendo o estágio do Vassiliev comigo e que tentaram o Soleil já receberam a resposta e eu, até agora, nada. Como estou na Cartoucherie, decido ir até lá pra saber alguma coisa. Conto a Astrid, atriz do Soleil, minha situação e pergunto se ela já sabe de algo. Ela sai e vai falar com Charles-Henri. Volta e diz que ele virá falar comigo. Penso o pior. Depois de algum tempo ela volta e diz que ele está me mandando um email naquele exato momento dizendo que eu passei!!! Estou feliz. 

PRIMEIRO DIA DO ESTÁGIO NO SOLEIL

Primeiro dia do estágio no Soleil. Eu tinha dormido na casa de uma amiga na noite anterior, Janaína, uma brasileira que conheci em circunstâncias estranhas e que agora reencontro em circunstâncias igualmente estranhas. Temos que mudar de linha no metrô e lá finalmente vou conhecer uma outra brasileira de quem eu já ouvi muito falar, Nicole. Ela mora em Paris há 3 anos e trouxe café em uma garrafa térmica para todo mundo. Eu já gosto dela logo de cara. O café influenciou bastante.

Na nossa viagem até Chatêau de Vincennes nós vamos conversando sobre tudo, todas falamos muito, alto e de uma maneira nervosa, todas estamos efetivamente muito nervosas.

Ao chegar na estação final da linha 1 do metrô, onde devo pegar o ônibus até a Cartoucherie, já percebo uma mudança radical entre a semana passada e essa que nos espera. Esse é o mesmo trajeto que fazia para o estágio com Vassiliev, que também era na Cartoucherie. O ônibus está lotado, uma multidão aglomera-se diante do ponto do ônibus 112 e nós decidimos ir andando. Ao longo do caminho começo a perceber o tamanho do que está por vir, a rua está bem mais cheia que de costume e todos vão na mesma direção: Cartoucherie, Théâtre du Soleil.

Chegando lá percebo que a coisa toda é realmente muito maior do que eu tinha imaginado: 420 estagiários de 43 nacionalidades diferentes, entre eles 80 ouvintes e, até onde eu consegui contar, 30 brasileiros.

Entro. Cartão amarelo para os participantes, cartão azul para os ouvintes – durante o estágio muitos ouvintes tentaram se infiltrar sorrateiramente nos grupos. A platéia já está lotada. Pego um cobertor e subo, só encontro lugar lá em cima. Daqui, Ariane parece bem menor e, como o meu francês não é excelente, consigo entender muito pouco do que ela fala. Tudo ainda é um pouco confuso, ainda parece que estou assistindo os filmes do Soleil e que ela, Ariane Mnouchkine, está a léguas de distância de mim. Amanhã chegarei bem cedo. 

O MUNDO MÁGICO DE ARIANE MNOUCHKINE

O que escrever sobre um sonho? O que escrever quando este sonho se realiza? Sobre o espaço entre o sonho e o real? Pra mim é isso, estar aqui no Théâtre du Soleil é a realização de um sonho, talvez por isso seja tão difícil escrever. Está sendo muito diferente do estágio com Vassiliev. Lá eu era ouvinte e no Soleil, apesar de mais ouvir do que fazer, não consigo olhar de fora. Tudo é meio gelatina. A sensação de ainda estar vendo um filme não passou. “Soleil même la nuit” onde eu via Ariane dirigindo, gritando, coçando a cabeça quando algo não vai bem. Acho que este estágio ainda ecoará em mim por muito tempo, quando depois de chegar ao Brasil eu entender que não era um filme, que eu estava lá, naquele espaço que sim parece mágico, parece uma outra dimensão, que abriram uma porta entre um andar e outro de um prédio e que você entra de repente na cabeça de John Malkovich ou, no caso, no mundo mágico de Ariane Mnouchkine.

E de alguma maneira tudo é construído nesse sentido, pra que a gente acredite. Tudo é cheio de rituais que nos encaminham pra isso. A grande sala de ensaio cheia de budas pintados na parede. Há uma lenda de que o primeiro apareceu sozinho. A maneira de abrir a cortina; o lugar onde os atores se vestem para entrar em cena com tantos, tantos figurinos e maquiagens e acessórios capazes de te transportar, de te fazer viajar pra qualquer lugar onde a imaginação permita; o palco, sagrado, cuidado, onde não se pisa de qualquer maneira; a enorme cortina laranja onde nos posicionamos antes de entrar em cena e gritamos em alto e bom som “prêtes” e ouvimos Ariane que diz “oui”, antes de pedir silêncio e aí começa. Tudo pode sair de trás daquela cortina, sob a condição de que se acredite.

SOBRE A CENA DO TAPETE VOADOR

Ontem escrevi sobre essa magia do Soleil. Hoje tivemos uma cena que é um símbolo dessa magia. A cena do tapete voador. Todos os atores com mais alguns felizardos estagiários começam uma improvisação que resulta em todos voando em um tapete. Como explicar? Uma música linda, os panos que balançam, todos na platéia fazendo o som do vento e aquela gente grande que nem gente pequena voando e a gente também, voando e chorando como algo que se perdeu e que de repente se encontra, por alguns instantes. Não importa, chamem do que quiserem. Como Ariane disse ontem, “essa era do desencantamento está acabando”. Não sei, mas assim espero, porque esse lado de cá é muito bom.

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