A rua como contingência teatral

Crítica da peça O amargo santo da purificação.

10 de abril de 2009 Críticas
Foto: divulgação.

A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz de Porto Alegre se apresentou na Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, no dia 15 do mês de abril às 15h. A direção e o texto do espetáculo O amargo santo da purificação foram criados pelo grupo tendo como mote a trajetória do militante do Partido Comunista Carlos Marighella, que dedicou-se à causa dos trabalhadores, da independência nacional e do socialismo durante o período de maior repressão imposta pelas ditaduras de Getúlio Vargas e militar. O espetáculo assume uma linguagem alegórica para dar conta dessa trajetória e o numeroso elenco determina a estrutura coral. A história de Marighella é contada principalmente em forma de música e o roteiro se fundamenta em marcos históricos da vida do personagem.

A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz é um grupo formado em 1978 que desde o início assume um ímpeto de ocupar o espaço de maneira subversiva. A rua é uma das possibilidades de subversão de um espaço tradicionalmente teatral. O espetáculo O amargo santo da purificação inicia-se simultaneamente em localizações extremas da praça. Um grupo de atores caminha em direção ao outro, sendo um a representação da descendência africana da mãe de Marighella e o outro, a representação das influências da cultura italiana, nacionalidade de seu pai. Com o encontro dos dois grupos materializa-se a miscigenação característica da vida de Marighella e de muitos brasileiros por meio dos figurinos, dos adereços e da música. Em cena estão presentes 25 atores que se utilizam do canto para a construção de uma narrativa constituída de textos e poemas do próprio Marighella musicados. O coro é um elemento recorrente nesta encenação devido à estruturação textual musicada e a escolha espacial para o espetáculo, tendo em vista que a formação coral é muito utilizada em apresentações teatrais realizadas na rua, bem como a formação de uma arena. No entanto, há nessa encenação momentos em que a arena é extrapolada e que o espectador precisa acompanhar o espetáculo na sua extensão espacial que, no caso, seria de uma ponta a outra da Cinelândia. De alguma maneira o espetáculo tem um limite espacial que é a praça, mas torna-se itinerante dentro desse limite.

O espetáculo de rua tem como peculiaridade a transformação de um espaço público que, no caso de O amargo santo da purificação, o local escolhido para a encenação é cotidianamente utilizado como passagem de inúmeros transeuntes. De repente esse lugar se transforma num espaço cênico que sugere imaginariamente ao espectador vários outros espaços como: um terreiro de macumba e o local da prisão do personagem. Ao mesmo tempo em que um espaço imaginário é construído, existe um espaço real. O espaço imaginário já está previamente estabelecido na concepção do espetáculo – podendo sofrer sempre pequenas alterações conforme a particularidade de cada local – enquanto que o espaço real torna-se citação para o espaço imaginário devido à sua realidade presente e ao seu passado histórico. São dois espaços que podem se complementar e interagir simultaneamente. A Cinelândia – nome popular da região do entorno da Praça Floriano – torna-se no momento presente da encenação uma referência espacial para o espetáculo, além de ser uma citação histórica uma vez que a praça já foi palco de algumas importantes manifestações políticas da história do Brasil. A Cinelândia é até hoje o local de muitas manifestações políticas nacionalistas e de esquerda. Em alguma medida, toda essa referência espacial se mistura com a história do personagem que está sendo contada e o espaço real transitoriamente torna-se fictício e vice-versa, estabelecendo um jogo tenso com a realidade e a ficcionalidade dos acontecimentos teatrais e históricos, uma vez que o enredo da peça trata-se de uma ficcionalização da realidade. De alguma maneira o processo espacial do espetáculo de rua se assemelha ao processo temporal. Durante uma hora e vinte minutos de espetáculo, tem-se a impressão de que o tempo foi suspenso para que o evento teatral se realizasse – ao mesmo tempo em que essa suspensão a todo momento se desfaz quando os elementos externos à encenação se sobrepõem. Então há uma tensão entre o tempo  fixo do espetáculo com os seus acontecimentos construídos e as ocorrências reais e casuais do entorno da praça. São dois tempos simultâneos que em alguns momentos são paralelos e em outros se misturam.

O espetáculo realizado na rua viabiliza a formação de platéia mais democrática, ao mesmo tempo em que parece desafiar a fragilidade que a interferência de qualquer elemento externo pode causar à encenação como sons, movimentações e intervenções dos espectadores. A convenção teatral não consegue se impor completamente e a cena encontra-se potencialmente aberta, de tal forma que os atores são obrigados a lidar com o inesperado. Negligenciar o acaso e não integrá-lo ao espetáculo parece ser uma rejeição ao que essa configuração teatral determina como mais potente. Essa forma democrática estabelecida pelo espaço escolhido para a encenação de O amargo santo da purificação se realiza com a falta de critério para a formação de um público. Na platéia estão transeuntes casuais e os fixos que, por condições diversas, têm uma relação de moradia com esse espaço. Um evento desse tipo no meio do espaço “pertencente” a algumas dessas pessoas faz com a recepção da cena teatral seja distinta também. Com isso alguns meninos que estão sempre ali naquele local se relacionaram de maneira íntima com o espetáculo tecendo comentários que interferiam na cena, reproduziam ações feitas pelos atores e inventavam suas próprias ações a respeito do que assistiam. Essa configuração espacial-democrática fala de alguma maneira da democracia que o personagem buscou nas suas incessantes lutas. No entanto, os atores não se relacionavam com esses acontecimentos inusitados e inesperados. De alguma maneira a divisão palco e platéia permanecia ainda bem definida, considerando que a proximidade entre atores e público não tinha a capacidade de alterar o acontecimento teatral, pelo menos no que diz respeito ao que estava previamente ensaiado.

Após o término do espetáculo, o espaço da Cinelândia volta à sua estruturação habitual. A sensação que se tem ao assistir o espetáculo da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz nesse local é que o teatro de rua pode estar muito mais próximo das características performáticas do que as demais configurações espaciais de um evento teatral. De fato, uma apresentação nunca pode ser igual à outra. Durante um momento do espetáculo havia uma mulher pregando a palavra bíblica no entorno da roda ao mesmo tempo em que as cenas aconteciam. Havia então uma sobreposição de falas que se complementavam, uma vez que o espetáculo diz respeito também à purificação do personagem. Inicialmente eu não tive dúvidas de que a pregadora fazia parte da peça. Num dado momento ela se calou e assistiu ao espetáculo como se tivesse sido vencida pela eventualidade da cena teatral, quando pude perceber que tratava-se de mais uma transeunte da praça. Ao final da encenação a mesma retomou o seu discurso e quem pode afirmar que ela não faz parte do espetáculo? Pelo menos naquele dia ela fez.

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