Precisão e cálculo no percurso da Armazém
Crítica da peça Inveja dos anjos

A estrada de ferro, principal elemento da cenografia de Paulo de Moraes e Carla Berri, atravessa a pequena cidade que ambienta Inveja dos Anjos. Mas há uma bifurcação na estrada, que parece seguir por um atalho, terminando logo após. Os personagens do novo espetáculo da Armazém Companhia de Teatro “acumulam” estes dois direcionamentos. Por um lado, têm algo de fim de linha, no sentido de portadores de vidas irrealizadas, distantes da concretização de seus sonhos, encasteladas, em alguma medida, em lembranças luminosas. Por outro, são afetados por surpresas capazes de apontar para uma imprevista continuidade.
Parceiros habituais na construção dramatúrgica, Maurício e Paulo sublinham, aqui, que não existe propriamente reconstituição de acontecimentos reais. Os fatos são evocados por meio de acréscimos e subtrações, de acordo com o modo como foram vivenciados e apropriados. É como se a memória transformasse a realidade em ficção. Os protagonistas de Inveja dos Anjos interpretam suas histórias, enquanto sinalizam ter apenas uns aos outros. À medida que inesperados acontecimentos começam a desestabilizá-los, descobrem que as relações podem continuar na distância. E sobrevivem conectados por uma espécie de fio invisível, mas bastante resistente.
O diretor Paulo de Moraes segue neste trabalho as principais diretrizes norteadoras da Armazém Companhia. Uma delas é a produção de uma dramaturgia própria, já comprovada em montagens bem-sucedidas como Da Arte de Subir em Telhados, retomada depois de experiências recentes com obras de Bertolt Brecht (Mãe Coragem e seus Filhos) e Nelson Rodrigues (Toda Nudez será Castigada). Eventuais restrições – a impressão de que os personagens principais são um pouco mais interessantes que os circunstanciais, acarretando uma certa irregularidade no desenvolvimento do texto – não ameaçam a qualidade do todo.
A outra característica do grupo, reeditada em Inveja dos Anjos, é o registro interpretativo do elenco, que persegue uma atuação expandida, projetada, “visível” ao espectador, valorizando o desfile de um repertório de emoções expostas com intensidade. Os recursos empregados – a utilização da respiração e as vogais esticadas, no caso de Patricia Selonk, o emprego contundente da palavra, no de Simone Mazzer – são devidamente evidenciados diante do público. Não se pode negar precisão, mas talvez haja um tanto de cálculo na interpretação dos atores.
Seja como for, Inveja dos Anjos sobressai pelo profissionalismo e pelo aproveitamento dos recursos que compõem a cena. Um bom exemplo está na integração entre a iluminação de Maneco Quinderé e as já citadas soluções cenográficas de Paulo de Moraes e Carla Berri. A luz delimita áreas de ação no amplo espaço da Fundição Progresso e valoriza de forma expressiva a parede de tijolos ao fundo do palco, elemento determinante na produção de uma geografia afetiva desoladora, registrada com carinho nesta nova viagem da Armazém.