Uma viagem pelo gosto

Crítica da peça A inveja dos anjos

16 de janeiro de 2009 Críticas
Atrizes: Patrícia Selonk, Verônica Rocha, Simone Mazzer e Simone Vianna. Foto: divulgação.

O espetáculo Inveja dos anjos, da Armazém Companhia de Teatro, proporciona uma experiência que contribui para o exercício do olhar crítico, na singularidade que o constitui como um olhar de fora. No espectro que esse olhar descortina, a perspectiva da qual escrevo é a questão do gosto. Esclareço que o olhar a que me refiro não é aquele que não se afeta, mas por ser distinto do olhar de quem age – o artista – está desobrigado em relação aos eventuais objetivos da obra. Portanto, trata-se de um olhar que não procura por familiaridades ou pelo igual, mas devido ao seu desejo de imparcialidade dá passagem para novos sentidos.

Pensar o gosto em relação à Inveja dos anjos se justifica na medida em que a Companhia se dedica a um inteligente e frutífero trabalho de formação de platéia que transita entre a produção de textos próprios, por meio da parceria entre Paulo de Moraes e Maurício de Arruda Mendonça e a encenação de textos clássicos. Neste movimento estão em jogo subjetividade e memória cultural, ou seja, as disposições individuais e culturais que criamos para gostar das coisas. Aqui começa propriamente meu exercício crítico.

O espetáculo dá a ver a história de personagens cujo presente é assolado pelo passado, o que nos sugere uma possibilidade de identificação, na medida em que somos formados pela memória, pelos nossos afetos e pela articulação das nossas ações. Porém, do modo como vejo, nesses personagens está reunida uma série de clichês como, por exemplo, do escritor frustrado que se dedica à venda de livros, da garçonete que teve um romance de juventude interrompido e que se vê novamente às voltas com ele, da criança que procura seu pai e passa dificuldades com a mãe dependente química e do carteiro que se acha com o direito de abrir as cartas dos moradores da cidade e manipular suas vidas. Não digo que o espetáculo esteja reduzido a isso, mas começo a pensar a respeito do que tem sido partilhado culturalmente e está formando as subjetividades. Não está em jogo aqui nenhuma questão puramente filosófica – se é que isso existe – mas sim um ajuizamento livre que procura ver o que não parece tão evidente. Os personagens assim, mais fechados e previsíveis, oferecem menos margem para nossa imaginação e são construídos por uma carga de dramaticidade de certo modo já conhecida.

Talvez o hábito nacional de assistir novelas de televisão concorra para a formação de um gosto que se aproxima mais das imagens que a história dos personagens suscita. Mas não se fala de conteúdo sem forma. A dramaturgia é um tecido fragmentado que oferece o desenvolvimento das histórias dos personagens que se dão a ver mais por traços, porém, não deixam de formar o sentido de um todo ao final. Essa operação dramatúrgica produz imagens que não se desgastam quando encontram certas suspensões temporais, quando os atores estão em cena mais com a sua presença do que com gestos carregados de uma espécie de teatralidade. Neste sentido é que acredito que existe uma tensão nova na pesquisa da Companhia, pois Patrícia Selonk nos oferece momentos delicados nos quais se abandona à nossa visão e se despe de uma espécie de fala que procura escandir as palavras e de um registro de interpretação de certo modo mais teatral. Por essa perspectiva, os momentos em que Simone Mazzer não valoriza demais as palavras e os gestos, deixam vazar uma estranha beleza corporal que nos desconforta e que não sabemos nomear. Do modo contrário, as falas um tanto gritadas em muitos momentos acabam enfraquecendo nossa percepção para possíveis nuances dos eventos, o que acontece, por exemplo, com o personagem do escritor e com o da menina.  Acredito que o tom da fala seja o maior problema da encenação na medida em que não suaviza nem esgarça os sentidos mais fixos do que existe de a priori nos personagens.

Um exemplo de ruptura com nossos hábitos de gosto é o trabalho de Simone Vianna que surpreende pelo modo preciso e ao mesmo tempo delicado com o qual constrói a imagem de uma memória que nos remete às múltimas possibilidades de um psiquismo mutilado. A atriz consegue promover foco para nosso olhar em meio ao amplo espaço da sala: construção de uma materialidade diáfana que permeia o apurado trabalho de pesquisa da Armazém. Do modo como percebo, a cenografia, ou melhor, o espaço cenográfico, materializa essa tensão entre o formal/anteparo e o translúcido, do caminho a seguir – a linha do trem – e sua bifurcação, nossas imprevistas escolhas e o acaso. A cena final da garçonete com o carteiro é um belo apuramento dessas questões que a direção opera com cuidado.

A luz do espetáculo produz dramaturgia no mesmo sentido do espaço – revela lugares, às vezes nos cega e produz zonas de sombreamento que queremos perscrutar. O interessante é que o desenho de luz consegue promover certos silêncios que a insistência de um fundo musical não permite. Novamente gosto e cultura se defrontam.

O apuro estético – intelectivo – de Inveja dos anjos em contraponto com o que se pode pensar como hábito ou gosto gera o desejo por um pensamento crítico.  É evidente que as possibilidades desse texto crítico não são conclusivas, mas sim, apontamentos que a obra suscita e que contribuem para a formação e o entendimento histórico da linguagem teatral.

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