Sem surpresas

Crítica da peça Ensina-me a viver

10 de outubro de 2008 Críticas
Atores: Arlindo Lopes e Glória Menezes. Foto: Divulgação.

É, de certa forma, um desafio abordar um espetáculo como Ensina-me a viver, dirigido por João Falcão, que está atualmente em cartaz no Teatro do Leblon.  Muita coisa está em jogo quando se vai assistir a um espetáculo economicamente bem-sucedido. A platéia está cheia; a crítica jornalística é, via de regra, favorável; a divulgação maciça agrega status de evento à peça; os nomes famosos na ficha técnica dão um toque de glamour ao entretenimento; há uma atmosfera de sucesso em torno da peça: tudo isso contribui para induzir o espectador a ficar satisfeito com a ida ao teatro, quase independentemente do seu juízo sincero sobre o espetáculo.

Ensina-me a viver tem uma combinação praticamente infalível de elementos para proporcionar bom entretenimento para o público do Teatro do Leblon: o texto é adaptado de um filme conhecido e, com isso, o título da peça já tem um peso de texto clássico; o elenco é encabeçado por Glória Menezes, atriz famosa e respeitada, com uma longa trajetória na TV; um dos personagens femininos é interpretado por uma comediante, Ilana Kaplan; em suma, o espectador sabe o que vai encontrar, não vai ter nenhuma grande surpresa. Com uma história já conhecida, um toque de glamour e risadas garantidas, o frequentador dos teatros caros da zona sul pode ficar tranquilo na hora de comprar seu ingresso.

Preconceitos assumidos, vamos à análise do espetáculo. Se a história contada no texto de Collin Higgins foi o que motivou o ator Arlindo Lopes a levar adiante o projeto de montar a peça, considero importante observar se a fábula é, de fato, o foco da montagem. Ao assistir a peça, determinados elementos me aproximavam, outros me afastavam do envolvimento com a história.

O primeiro dado de estranheza surgiu logo na primeira fala: o efeito do microfone deixa a fala dos atores um tanto chapada, o que aliena um pouco o público. Ao final da peça, uma breve falha no microfone de Glória Menezes nos permitiu escutar a sua voz natural, perfeitamente audível e muito mais confortável. Tive a impressão de que sem o microfone os atores teriam que dar uma dimensão diferente aos personagens, talvez mais natural.

Em contrapartida, o microfone favorece algumas cenas com Augusto Madeira: a do Tio Vitor (na qual o microfone lhe permite fazer com discrição os efeitos sonoros do braço mecânico) e a cena em que se encontram três personagens feitos por este mesmo ator (com o auxílio do elenco de apoio, da dinâmica de movimentação da cena e do microfone, alcança-se o efeito de que cada personagem é feito por um ator diferente). A propósito, as cenas com Augusto Madeira exploram um tipo de comicidade que não força a barra do riso, mas o provoca com certa destreza. O elemento cômico não diminui necessariamente a seriedade ou a densidade de uma peça. Mas é um equilíbrio delicado: a vontade de fazer rir às vezes vira protagonista. É o que parece acontecer nas cenas com a mãe do personagem Harold, Helena Chasen (Ilana Kaplan), e com as suas três pretendentes, interpretadas por Fernanda de Freitas.

Não se trata de um deslize, mas de uma escolha nítida da direção. E as duas atrizes executam bem a proposta. Questiono apenas se esta é realmente a melhor opção para contar a história do encontro entre Harold e Maude. As cenas que envolvem estas personagens são cômicas por natureza, mas não exclusivamente. A aplicação desse tipo de comicidade mais expansiva opera na direção contrária ao envolvimento do público com a trama, pois os personagens ficam chapados, sem nuances. E na mesma medida em que a relação com a mãe influencia o comportamento de Harold, a construção do personagem de Arlindo Lopes é afetada pelas atuações de Ilana Kaplan e Fernanda de Freitas. Elas podem investir o máximo numa composição caricata e unilateral, mas ele precisa atuar em outro registro, bastante diferente, para fazer as cenas com Maude; ele tem que partir para outra linguagem. Acredito que isso seja um pouco prejudicial para a construção de Harold.

Com o chamado elenco de apoio, a direção constrói uma dinâmica lúdica e criativa para costurar as cenas. A cenografia de Sérgio Marimba apresenta elementos sugestivos para o cenário, sem saturar a visualidade do espetáculo. Isso me parece ser pouco comum em espetáculos que têm recursos financeiros para grandes cenários. Essa sugestividade traz um refinamento para a peça, tanto no que diz respeito à materialidade da cena, quanto no seu potencial de estimular o espectador a colocar em jogo a sua percepção das coisas. Os objetos de cena recebem tratamento de objetos de arte (como a representação do nu da personagem Maude, na foto abaixo) ou de brinquedo (a máquina que produz bolhas de sabão). Já as projeções são mais literais, na contramão da concisão da cenografia de Marimba e da iluminação de Renato Machado. Talvez fosse interessante se tal sugestividade, se essa habilidade para desencadear imagens com apenas alguns traços, vazasse para o trabalho dos atores, que geralmente procuram preencher seu espaço de atuação com todas as tintas possíveis.

Uma observação que pode ser feita para a produção da peça com relação à cenografia é que esta foi concebida tendo em vista uma relação exclusivamente frontal. Por isso, o espectador que fica na lateral e, especialmente, na lateral do balcão, perde muito do espetáculo. É justo informar a platéia sobre esse desfalque e seria o caso até de cobrar um valor menor pelo ingresso.

Há ainda um dado de dissonância produtiva na direção do espetáculo: a trilha sonora de Rodrigo Penna me parece ser um agente de contraponto para um certo modo de atuar que, apesar de condizente com a encenação de um texto como este, corre sempre o risco de resultar antigo, piegas ou de escorregar para certa canastrice. Fazer o casal romântico de uma peça é delicado e difícil, está sempre perto de não dar certo. Contudo, esse texto dá aos atores a oportunidade de fazer um casal sem que eles tenham que fazer papéis de galã – trata-se de um casal improvável, o que os protege um pouco de cair nos lugares comuns. Na atuação de Glória Menezes, é como se ela partisse do pressuposto de que precisava fazer uma composição marcante de corpo e de voz para Maude. Acredito que a aposta na simplicidade resultaria numa atuação mais envolvente. Arlindo Lopes às vezes tende a infantilizar o personagem, talvez na tentativa de marcar uma composição. É nesse aspecto que penso que a trilha sonora produz uma quebra. Se, nas cenas de encontro entre Harold e Maude, tocasse uma música para sublinhar os sentimentos dos personagens, os atores ficariam vendidos, expostos aos clichês das cenas românticas. Com uma trilha também improvável, Penna atua sobre o trabalho dos atores, dando-lhes uma espécie de proteção.

O que pode ser frustrante para quem não está acostumado a frequentar peças de apelo comercial é que não há surpresas. Há, embora nem sempre, um padrão identificável de qualidade para o grande público, mas esse padrão pode ser bastante restritivo. Na peça Ensina-me a viver, há elementos de ordem conservadora, como os que mencionei anteriormente, mas o principal deles me parece ser o registro de atuação, que geralmente não traz surpresas. No entanto, identifico a trilha de Rodrigo Penna e o trabalho de Augusto Madeira como elementos díspares, que contrariam essa tendência. Estão bem inseridos no contexto, mas apontam para noções de teatro mais abertas.

Vol. I, nº 8, outubro de 2008

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