Moscou é aqui

Impressões sobre Irina, com texto, atuação e direção de Raquel Iantas

26 de janeiro de 2018 Críticas
Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Quando estava a caminho do Glauce Rocha, sem saber do que se tratava, contei a um amigo que eu estava indo ver uma peça provavelmente inspirada em Tchekhov, na Irina de As três irmãs. No ônibus, enquanto olhava sem ver a paisagem passando em velocidade de filme mudo – revi ontem O garoto, do Chaplin, e meu filho perguntou por que tudo parecia mais rápido do que na “vida real” – comecei a imaginar uma peça que aproximaria a frustração da caçula de As três irmãs, por não conseguir recuperar o paraíso perdido, e a situação de tantas mulheres que ficaram pelo caminho porque não tinham condições materiais mínimas para realizar os seus desejos, ou, nas palavras de Virginia Woolf, porque não tinham “um teto todo seu” – como tantos artistas na nossa cidade neo-evangélica.

Assim que a peça começou, no entanto, vi o quanto as imagens prévias que havia construído tinham pouco a ver com o espetáculo, que não se propunha de forma alguma a um diálogo explícito com Tchekhov. Ainda que, no caso de Irina, a palavra “espetáculo” pareça justamente contradizer a proposta da atriz, dramaturga e diretora (em parceria com a co-diretora Mariah Valeiras e com outros quatro interlocutores: Aderbal Freire-Filho, Bruno Lara Resende, Eleonora Fabião e Marcio Abreu).

Num palco com apenas um banco e uma garrafa d’água, sem nenhum efeito de luz e com breves intervenções sonoras que apenas marcavam a passagem de um fragmento da vida da Irina para outro, como se fossem títulos de pequenos contos, ou melhor, como se fossem os títulos dos capítulos de um romance novecentista, a narradora (Raquel Iantas) começou a contar a história de uma outra Irina, dos seis aos dezoito – como a Ana daquele antigo filme do Nikita Mikhalkov. Exatamente pelo absoluto despojamento cênico – à exceção de algumas mudanças de luz que me pareceram desnecessárias – e pelo tom antes épico que dramático da narrativa – muito gostoso ver uma atriz que, mesmo em um monólogo, resiste à tentação de imitar/representar as vozes e gestos dos personagens que evoca –, desde a primeira das nove histórias, em que a menina Irina confunde o som de um porco sendo abatido com o da voz de sua mãe brigando com uma vizinha, até a última, em que ela fica à espera da carona de um avião dos correios para alcançar um desconhecido Rio de Janeiro, sua história me capturou totalmente. Fiquei realmente grato pelo fato de a narradora ter optado por não me manipular emocionalmente e ter deixado o campo livre para que eu construísse minhas próprias imagens. Mostra de um respeito pelo espectador que é raro em propostas mais espetaculares, ou “teatrais”.

À medida que os fragmentos da vida dessa filha de uma família operária, sem um teto todo seu, com uma mãe periodicamente internada em manicômios, além de um pai e de cinco irmãos que pouco diminuíam a sua solidão, ia sendo contada, sempre em terceira pessoa, tornando um passatempo supérfluo (ainda que sedutor) imaginar até que ponto o romance de formação de Irina encontraria lastro nas experiências autobiográficas da própria atriz e autora, minha empatia com a personagem só aumentava. Se a empatia muitas vezes serve para manipular emocionalmente o espectador e deixá-lo a mercê de truques, efeitos cênicos, marcações diretoriais e histrionismos muitas vezes confundidos com a própria definição de “teatro”, foi uma alegria ouvir essa existência sendo construída aos poucos, por meio de imagens feitas de palavras, sem peripécias ou golpes de teatro (na tradução francesa do termo aristotélico), isto é, sem apelação.

Neste ponto, além da sobriedade da cena e do registro de atuação, vale ressaltar a delicadeza da construção da dramaturgia. Quando as histórias da vida de Irina ameaçavam roçar o melodrama, a narradora simplesmente as interrompia. Esses cortes, feitos sempre no ponto certo, são possivelmente o principal fundamento da força do texto.

Em meio à felicidade de estar vendo uma personagem que eu gostaria de conhecer pessoalmente nascer diante dos meus olhos, e desaparecer aos dezoito anos, com a vida toda pela frente e a promessa de infinitos desdobramentos para sua história, característica maior das personagens bem urdidas, fiquei pensando nas nossas expectativas habituais com relação a uma “peça de teatro”.

Afinal, em Irina, o que vemos concretamente é uma pessoa contando uma história – que se torna sua no momento da contação, mas que não precisa ser sua no sentido da autobiografia para nos engajar (outra opção dramatúrgica que me pareceu interessante foi a recusa à autoficção explícita, um dos avatares do narcisismo contemporâneo e da cultura de feicibuque) – que, talvez, pudesse ser lida em casa, em voz baixa. Para mim, antes de ser uma experiência teatral, no sentido vulgar já aludido, trata-se em Irina de uma experiência literária. Vem, então, a pergunta: qual o sentido de trazer a literatura tão literalmente para o palco?

(Como Aderbal foi um dos interlocutores de Raquel no processo, é inevitável lembrar de seus “romances em cena”. Mas a associação não procede: em relação ao despojamento radical da cena em Irina, os romances em cena são ainda muito mais imediatamente percebidos como “teatro”. Além, é claro, do fato de terem nascido de releituras de obras “clássicas”, e não de um texto original como o que Raquel Iantas escreveu.)

Repito a questão que mais me intrigou ao longo de Irina: o que a literatura ganha ao ser transposta tão pouco espetacularmente para o palco? O que o teatro ganha ao renunciar às formas mais tradicionais de espetacularidade? O que uma atriz ganha ao recusar a construção dramática dos personagens e se aproximar da figura mais distanciada dos antigos rapsodos?

Não sei responder a essas perguntas, mas sei que uma “quase leitura” que evoca os homens-livro de Ray Bradbury (em Fahrenheit 451) aponta para um alargamento da noção de teatro que me interessa.

Num tempo marcado por uma percepção formatada por vivências virtuais no isolamento de uma tela de computador, em que a nossa atenção tende a se tornar cada vez mais fragmentária e individual, a recepção coletiva e com começo-meio-e-fim – as nove histórias de Irina são narradas em ordem cronológica – facultada por uma “peça de teatro em sentido alargado” nos faz lembrar, sem saudosismo, que uma outra Moscou ainda é possível. A Irina de Raquel Iantas, ao contrário da Irina de Tchekhov, habita essa Moscou, onde ainda podemos nos dar o luxo de ouvir calma e atentamente o outro, sem que ele precise se valer de truques espetaculares para aparecer como uma mercadoria atraente, como a mais nova “novidade”. E o melhor é que a Moscou de Raquel Iantas, apesar de tudo, se chama Rio de Janeiro.

Patrick Pessoa é professor do Departamento de Filosofia da UFF, crítico e dramaturgo.

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