Acúmulo e destruição/Pesadelo logístico

Textos sobre o processo de criação da peça “Um homem e três janelas”

10 de maio de 2008 Processos

Atriz: Emeileine Zarp. Foto: divulgação.

Acúmulo e destruição
Por Dinah Cesare

A obra é realmente uma coisa cheia de enigmas. Ela tem a particularidade de ser potência de atualização. O que eu quero dizer é que não é uma questão da obra incidir sobre nossa memória pura e simplesmente: ela tem a potência de atualizar nossos afetos durante o evento. E isso acontece por meio das estruturas mentais do indivíduo, que durante aquele determinado tempo funcionam de modo diferenciado dos momentos ordinários. Creio que o trabalho em processo Um homem e três janelas, que está sendo apresentado no Café Cultural, formaliza sua fisionomia na tensão própria ao funcionamento do embrião de uma nova máquina – entre as engrenagens originárias e uma nova tecnologia. A estrutura do jogo da memória que a uma das atrizes desenha à nossa frente é jogo por natureza e máquina por conta de sua destreza tensa.

A fisionomia do trabalho é a modernidade. Walter Benjamin no texto “Experiência e pobreza”, que pertence ao conjunto dos textos escritos nos anos 30, diz que as ações da experiência estão em baixa. Isso porque ela está ligada à durabilidade das coisas, ao que pode ser experimentado ao longo de um determinado tempo, durante o qual pode-se conferir a importância das ações de acordo com seus resultados positivos ou negativos. Os modos de transmissibilidade tradicionais da experiência também ficam impossibilitados. Tanto a experiência, quanto a sua forma habitual de transmissão oral necessitam de um tempo de encontro, de fruição entre as pessoas, que a vida moderna e a especialização do trabalho passam a não mais permitir. Os paradigmas do homem renascentista foram rompidos pela difusão e velocidade das informações, pela figuração das mercadorias com seu valor de troca, pela profusão dos cartazes, pelas descobertas de mídias variadas e pelos mecanismos de auto-anulação que compõem o capitalismo. Nossa apreensão passa a ser barrada, não podemos assimilar tudo de uma vez, e acumulamos o mundo em arquivos. Nossa memória está fora de nós, vai para o computador, para os álbuns e para as fotos. O espetáculo em processo Um homem e três janelas parece se configurar no acúmulo desses arquivos modernos e seu mérito material está justamente em tensionar as comportas dessa represa.

Benjamin ainda nos diz que para flagrar as contradições, é preciso imobilizá-las. A estrutura da encenação, realizada por recortes, por fragmentos que não têm a intenção de se auto-explicar, sinaliza essa imobilidade necessária. A atualização de alguma coisa em cena, a meu ver, se dá pela insistência do texto que se repete. Antes do fim da audição que inicia o espetáculo nós já estamos em um estado de saturação, o que provoca a primeira ruptura. O texto escrito por Emanuel Aragão, que também assina a direção, trata-se de três depoimentos sobre eventos supostamente acontecidos na infância das atrizes. Mas parece não existir lembrança e sim arrombamento. É como o gesto da citação, que destrói o contexto original e potencializa o que veio antes pelo contexto do presente. Essa operação fica patente no trabalho das atrizes, que busca na materialidade de seus corpos e da fala, uma linguagem de atravessamentos. Colaboram diretamente para isso a falta de pausas dramáticas, as diferenças de tempo e ritmo, a repetição e as ações que não reiteram a fábula.

O espaço cenográfico aponta para o acúmulo. Os objetos, as roupas na arara, as cadeiras e os objetos sobre a mesa, parecem fazer parte dos arquivos. Porém, não tomam a forma de ruína após seu uso. Aqui aparece uma questão: qual será a destruição que sinalizam – a do objeto consumido pelo seu valor de troca ou a dos despojos da história? Para mim, esse parece ser um desafio ainda não enfrentado devidamente pela encenação. Não creio que a direção deva tentar elaborar soluções cênicas que construam esteticamente as ruínas do material utilizado pelas atrizes mas talvez, fazer a fotografia dessas marcas.

Acredito que faltam ajustes sutis no trabalho no sentido apontado aqui. A potência de Um homem e três janelas parece ser a de pegar o homem lançado no vazio, num futuro sempre adiado, que faz do presente mero ponto de passagem, e construir com ele uma postura vivificada a partir de sua condição de número de etiqueta. O texto/depoimento não enseja uma volta ao passado. A dramaturgia cênica estruturada pelo rompimento do acúmulo parece querer destruir a mitologia capitalista. A empreitada é devidamente apreciada em sua inutilidade.

Pesadelo logístico
por Emanuel Aragão

Existia a necessidade de fazer uma peça. Algo que fosse um objetivo claro. Um projeto. Parece que é sempre necessário um projeto, um fim, uma finalidade. A permanência em sala de pesquisa sem um objetivo claro fazia-nos girar em torno do vazio. Se não montássemos uma peça, o grupo caminharia para o seu desfazimento. Daí veio a peça. Ou melhor, daí surgiu o texto que gerou a peça. Faço essa distinção pois o texto foi concebido desde o princípio para que funcionasse como impulso gerador de um espetáculo. Porém, o espetáculo não seria uma simples transposição cênica dessa coisa escrita. A idéia não era montar um texto, e sim tentar montar uma peça. E digo que se tratava de uma tentativa, pois se o texto não determinava a montagem, apenas instigava o seu processo, a peça só era sustentada em si mesma, sendo que esse “si mesmo” ainda não existia. Assim, nada era garantido. A única coisa clara era a necessidade de fazer. A estrutura da peça surgiu do seu próprio processo. Ninguém sabia o que estava fazendo a priori. Ela nasceu de si mesma. E o que ela é hoje são os restos desse processo, um processo vivo e profundamente caótico, onde regras eram inventadas e desinventadas como num jogo de vacuidades. Tudo parecia poder ser. Qualquer corte significava a rejeição de um caminho possível. Aquilo a ser cortado não era a princípio um excesso, mas sim a própria coisa. Então, a partir de onde cortar? Como escolher? Tudo que era apresentado pelas atrizes era ao mesmo tempo fundamental e excessivo. Excesso.

Tudo o que trata de um conteúdo de memória vem em excesso. Ou falta ou surge como excesso. Uma lembrança sempre surge como uma espécie de erupção no momento presente. E você que lide com ela. Como recusar uma lembrança? Era esse o desafio do processo de realização do espetáculo. Como formatar os fragmentos de memória de três mulheres que os reconstroem deseperada e simultaneamente? 

Como o personagem do Estrangeiro de Camus, depois de dizer “Hoje, mamãe morreu”, eu parecia dizer, da cadeira de diretor, que “a mim tanto fazia”. Com a estrutura morta a princípio, tudo me parecia igual. Não que eu não me importasse com isso, parecia apenas ser impossível diferenciar. Eu parecia não poder dizer “não, isso não é bom” em relação a nada que me era apresentado pelas atrizes, já que essa mesma coisa poderia ser posteriormente desconstruída pelos caminhos encontrados dentro do próprio desenvolvimento da estrutura. Alguma antítese poderia surgir a partir da combinação entre os pequenos fragmentos que elas construíam e que juntos dariam forma e conteúdo à peça. A forma é o conteúdo, já que não existe nada para além dela. Daí a dificuldade de “editar” esses fragmentos: qualquer alteração formal é uma alteração de conteúdo. Sempre, mas muito claramente nesse caso. Só o que existia eram as possibilidades de combinação desses fragmentos: a peça viria daí. A peça seria essa combinação, ou o que restasse dela.

Até hoje, às vésperas da mostrar o processo, qualquer pequena modificação nos fragmentos gera uma gigantesca alteração nesse jogo de encaixes. Trata-se de um verdadeiro pesadelo logístico; onde o diretor é uma espécie de refém da própria peça que ele permitiu que se criasse, refém atingido pela síndrome de Estocolmo, pois tem um imenso prazer com esse pesadelo.

Desde o dia em que recebemos a visita de Dinah Cesare em nosso processo de ensaio e que ela teceu seus comentários desgraçadamente sensatos e pertinentes, gerando assim mais uma imensa alteração nesse absurdo jogo de encaixes, eu penso: os críticos deveriam ser obrigados a acompanhar o processo de ensaio desde o seu começo. Dessa maneira, seria impossível tamanha sensatez. Mas então me dou conta que, para nós, a figura do crítico funcionou quase como a figura do editor/montador no cinema: um sujeito que não se “contamina” afetivamente pelo processo de produção do filme, e que, sensatamente, tem a função de dar um leve cascudo na cabeça do diretor e lembrá-lo de que aquilo que ele tem em mãos é uma massa concreta que deve ser tratada como tal.  Lembro-me da fala de um exímio montador de cinema, que diz: “a partir de todo o material bruto de um filme, só há, ao contrário do que todos pensam, um filme possível. E é esse que vai passar a existir”.  Só um montador poderia pensar assim. E abençoado seja.

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