Dramaturgia e cena – potências em tensão

Crítica da peça Onde você estava? dirigida por Sidney Cruz

10 de abril de 2008 Críticas
Atrizes: Cristina Flores e Marcia do Vale. Foto: divulgação.

A feminista Valerie Solanas publicou em 1968 o SCUM Manifesto – Society for cutting up men. Esse manifesto apresenta uma postura radical e contundente, sem disposição para o diálogo, propondo a aniquilação do homem. Solanas, atriz e escritora, foi uma figura incomum, que debateu o capitalismo, mendigou nas ruas e foi bissexual assumida. Porém, a feminista que ficou em nossa memória foi Beth Friedman, que tinha um discurso mais apaziguador, que falava diretamente à dona de casa e acabou tendo como máxima: queimem os sutiãs! Solanas atirou a queima roupa em Andy Warhol no interior da Factory. Warhol nunca se recuperou totalmente. A figura de Solanas e seu manifesto inspiraram a dramaturgia do espetáculo Onde você estava quando eu acordei?, que está em cartaz na Casa do Mercado.

A dramaturgia de Sidnei Cruz, que também assina a direção, foi composta com a técnica do cut-up, em uma nítida associação hilária ao texto de Solanas. Essa técnica propõe uma experimentação física da linguagem, em que a palavra escrita pode se tornar símbolo de qualquer coisa. Foi levada às ultimas conseqüências pelo escritor William Burroughs. Iniciada por Tristan Tzara num encontro surrealista nos anos de 1920, o cut-up tem a intenção de disseminar a colagem, o aleatório e o pensamento sensível.

Do modo como eu vejo, a percepção de um texto teatral se realiza em conjunto com a cena.  O texto de Sidnei no contexto do espetáculo sinaliza que deve ser tomado como um provocador de ruídos para a encenação, um espalhador de boatos que provocam confusão mental.  Creio que é esta perspectiva que a dramaturgia sugere que investiguemos na análise.

A ação se passa em uma espécie de refúgio onde estão duas mulheres que acabaram de desfazer os laços com a vida familiar.  O espaço da Casa do Mercado nos faz livre o suficiente para apreender sentidos possíveis naquele lugar.  A iluminação constrói intimidades, distanciamentos, mas, em alguns momentos, parece marcação antiga de teatro, como no momento em que ilumina as atrizes em seus púlpitos. Na cena final a luz se realiza como dramaturgia,na medida em que Ilumina espaços que não estariam visíveis para nós, dá uma sensação de incompletude, de vazio e estimula possibilidades imaginativas.

A construção da collage pede uma superposição de superfícies díspares, que seja capaz de mostrar temporalidades distintas em simultaneidade. As confusões mentais, os cortes e as colagens estão em cena, mas parecem carecer ainda de alguns elementos que os tornem mais potentes. A meu ver, eles existem apontados, mas não plenamente realizados. A sensação que se imprime em alguns momentos é a de que algumas ações são reiterativas das falas. E creio que isso incide em uma recepção causal da narrativa. Essa é uma questão opaca para mim. E é preciso considerar que a crítica também é uma esfera de experimentação.

O enfrentamento ator/espectador, característica do teatro e aparente no espetáculo, é o que amplia ou retrai a expressão cênica. O espaço da representação está para além do físico, embora realizado por ele, e é composto por elementos psíquicos, filosóficos, intelectuais e espirituais. A questão que surge como relevante aqui, ou seja, em uma cena despojada de elementos e truques cênicos, pode ser a tensão que se estabelece pelo corpo a corpo entre o atuante e o espectador. Como a inspiração do nome da companhia, Leões de circo, ou seja, um lugar de enfrentamento, de exposição, de risco e de humor.

O desregramento que a atualização da inspiração em Solanas sugere parece ser mais plenamente materializado no trabalho da atriz Cristina Flores. Quando digo atualização não me refiro a nenhum tipo de encarnação da feminista em um personagem. Estou falando da construção material da cena que se dá a ver. A dramaturgia tem indícios suficientes de que se trata de um comentário, ao mesmo tempo ácido e bem humorado. De uma fala que parte das referências, mas que garante sua autonomia pelo caráter debochado e onírico. Neste sentido, o corpo ágil e pequeno da atriz torna-se enérgico, engraçado e, às vezes, desajeitado como o corpo de um clown. Essa sensação é favorecida pela falta de transições dramáticas, pela leveza com que as palavras são ditas e, principalmente, por uma espécie de descolamento entre os signos e seus possíveis significados. A fala de um ator torna-se um signo independente dos significados atrelados às palavras. Isto é próprio do espaço simbólico do teatro, o que faz com que o espectador “leia” o conjunto de signos, e não os elementos separados. A idéia de um figurino/roupa ganha dimensão irônica no casaco alguns números maior, que causa a impressão de ter pertencido à sua vítima.

Por outro lado, Márcia do Vale realiza pausas dramáticas, incorre em transições que suscitam um psicologismo que não adere a nenhuma radicalização. Suas falas, quase recitadas, não apontam para novas apreensões, mas reforçam aquelas que já conhecemos dos lugares de mãe, de mulher e de esposa, mesmo que o texto esteja querendo fazer uma suspensão desses papéis. Não sei se esta diferença entre as atrizes tem a intenção de provocar contrapontos que nos façam perceber diferentes sentidos, mas o fato é que, para mim, não é isso o que ocorre.

A cena final do espetáculo confere artifício à instância ritual, materializando nossa relação com os elementos da cultura em uma instância de risco. Um risco onírico, do qual não estamos propriamente certos de seu significado. Nessa cena, os elementos compõem uma imagem simbólica potente, na medida em que o espaço se constrói por ruídos entre texto, atrizes, luz e cenografia. E o imbricamento desses elementos parece ser a potência do espetáculo.

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