Nem tudo é memória

Crítica do espetáculo O miolo da estória, da Santa Ignorância Cia de Artes

24 de junho de 2013 Críticas
Foto: Divulgação.

O saudosismo tradicionalista e sua necessidade de fixar as coisas no tempo. E o medo da perda, que faz pensar que a transformação é unicamente um tipo de morte não desejada. A sociedade dá abrigo aos melancólicos, e isso é bom. Mas os discursos se confundem e muitas vezes o empenho por preservação, torna-se uma tentativa de conservação em modo estático.

Recai sobre os registros e fragmentos do passado este esforço (pessoal e institucional) por “conservação”. O discurso de manutenção da memória está espalhado em muitas instâncias sociais, e na maneira mais estatal lança-se mão do “patrimonialismo” quando algo adquire um valor simbólico e julga-se que deva ser preservado – no Rio de Janeiro, por exemplo, os vendedores de mate da praia são “Patrimônio Cultural e Imaterial da Cidade”. A demanda por patrimonialização, ao que parece, aumenta e alarga suas fronteiras a cada dia. Mas tem duas categorias que tem suas formas de expressão carimbadas como patrimônio histórico, cultural, imaterial, etc., há muito tempo: a arquitetura e as manifestações da “cultura tradicional”.

Na arquitetura, o seu caráter sólido, rígido e construído faz parecer que o processo de conservação é mais fácil, não é. Nem todo prédio velho caindo aos pedaços será patrimonializado, existe um julgamento que precede a seleção. E os questionamentos não se encerram nesta fase. Muitas construções, após serem valoradas passam por um processo que, por eu não conhecer o termo usado para isso, vou chamar de “resgate” do que se perdeu. Tiram-se todas as camadas que foram sobrepostas à primeira fase da construção (pinturas, piso, paredes, etc.) em busca de um suposto prédio “original”, que deverá ser mantido, depois que toda a “memória em excesso” foi parar no lixo, porque talvez, a hierárquica valoração das memórias seja mais importante que a parte sólida do edifício.

Já a “cultura tradicional” – que aqui compreende as manifestações comumente entendidas como folclore – tendem a outro tipo de conservação. Porque são imateriais, e, portanto, a lógica de conservação de um prédio não pode rescindir sobre um tocador de Cavalo Marinho, por exemplo. Mas forçando a aproximação, e a ironia, às vezes parece que a lógica é essa mesma. Assiste-se a uma apresentação hoje relacionada à cultura tradicional, e só porque a manifestação é “tradicional”, a leitura que se faz entende aquilo como algo remanescente de um passado muito remoto, que já morreu. O que é visto é um “esforço” de “manutenção”. Como se a apresentação se desse em outro lugar no tempo, não no presente. Porque parece que tudo o que se transformou e se criou desde este tempo remoto até hoje é subversão, camadas em excesso, que deve ser retirado, para deixar ver o “original”.

É neste ponto que o encontro com o teatro torna-se um problema. Afoitos por terem no teatro mais uma ferramenta para a manutenção, preservação e conservação da memória de uma manifestação que não morreu, se transformou, as pessoas que trabalham imbuídas dessa lógica patrimonialista, desejam que o teatro sirva de vitrine para expor uma manifestação tradicional. Em outras palavras, que faça a mera transposição da manifestação para a cena, funcionando, assim, como um reduto “arqueológico” da tradição. Mas o teatro não é um museu arqueológico, não é um “lugar de preservação”, ao contrário, é de criação, transformação e subversão. Ao teatro interessa:

“fazer fluir, através do entrecruzamento de sucessivas camadas de interpretação, recantos de memória cultural, para neles procurar encontrar valores e expressões que se tornem fontes com as quais dialogar; fontes antigas a serem trabalhadas (reelaboradas ou atualizadas) como manifestações contemporâneas de arte.” (RABETTI: 1999, pg. 5).

De autoria de Beti Rabetti, o trecho citado reitera que, o teatro, ao abordar elementos da cultura tradicional, assume neste ato uma atitude propositiva diante do tema. Cria e descobre sua contemporaneidade na medida em que dialoga e não transpõe para cena a estrutura mimetizada da manifestação escolhida. Eu optei por mencionar as políticas de conservação de memória porque, para falar do espetáculo O miolo da estória, da Santa Ignorância Cia das Artes (MA), é necessário dizer que este espetáculo, que tem como premissa a brincadeira do Boi (conhecida em alguns lugares como Boi Bumbá), não exibe este caráter de homenagem que dá ao folclore um lugar enaltecido, meio “sacro”, que costumamos ver em peças com o mesmo tema. O Boi não é reverenciado (a não ser pelo personagem que é o brincante de Boi) porque ele não está distante e morto, ele é presença viva, que tem história para além da carcaça e das fitas de cetim do objeto Boi. O Boi não é um genérico fixado, o mesmo de Norte a Sul do país. Em cada lugar o Boi é um, e mais, uma mesma cidade pode ser moradia de muitos Bois, São Luís, no Maranhão, tem mais de 300, por exemplo. E é de lá que vem o Boi de O miolo da estória, e o espetáculo não o conserva, mas o expõe em toda a sua beleza e feiura. Do miolo à carcaça.

É conhecido como o “miolo” do Boi o indivíduo que fica embaixo da alegoria “brincando” nas festas, o brincante. O miolo é a parte do Boi que nunca é vista, é um anônimo. A história do Boi, aquela do marido que mata o boi preferido do patrão para pegar a língua e dar para a esposa grávida nós conhecemos. Mas e a história do miolo do Boi? É dessa história que trata o espetáculo. João Miolo (um anônimo qualquer) é funcionário da construção civil, operário de uma cidade que cresce sem infraestrutura (realidade de muitas capitais do país), e que trabalha muito para tentar viver e juntar dinheiro para comprar a fantasia do ano. É de muito suor e afeto de pobre que a cultura popular se cria e não (só) de tentativas de preservação criadas em gabinetes (pense no carnaval carioca).

A perspectiva dramatúrgica é importante porque este João pode até ser qualquer um, mas não é um miolo de qualquer tempo. Ele é um miolo de 2013, prova de que o Boi vive em 2013. E esta contemporaneidade é vista em cena não só pela profissão do miolo, que saiu da zona rural para a urbana, mas também pela atualização do seu material de trabalho, que inclui o seu meio de transporte. A “burrinha” de hoje é a bicicleta, e em uma das cenas de maior apelo estético, são os materiais de trabalho de um pedreiro (peneiras, escada, pá, etc.) que dão materialidade à bicicleta de João a caminho da obra. Uma confluência de significantes que nos permite ver esta construção semiológica bem própria do teatro, quando comprometido com ressignificação de aparente simplicidade, mas que em seu “miolo” tenta dar conta de uma complexidade infinita. A caminho do trabalho João vê um acidente: um carro atropela um operário que morre, no acostamento, em um misto de medo de futuro e ausência de surpresa, João diz que toda semana morre um. Os carros e os prédios invadem a cidade que não os comporta, mas não há o que fazer além de trabalhar.

A hierarquia social que não deixa de ser a discussão mais consistente proposta pelo texto, ganha força quando sai desde terreno mais comum, em que se fala das condições de emprego, e passa para o ambiente hierarquizado dos Bois. O Boi é uma manifestação que em sua estrutura apresenta vários componentes e funções. Para começar o Boi tem dono (ou presidente, com na escola de samba. Faço esta aproximação, porque acredito que pode ajudar na leitura, apesar da óbvia desproporção das duas manifestações). O sonho de João Miolo é ser cantador, mas quem nasceu para empurrar carro alegórico, não vai chegar a cantor de samba enredo. Claro que sem miolo a boiada não existe, porém, na falta de um, procurasse outro. O dono do Boi é enfático em dizer que João já está no lugar que lhe cabe, ademais, os cantadores são letrados (o que talvez não queira dizer que eles sejam possuidores de uma escolarização elevada, mas algum estudo se tem). Triste e bêbado, João começa mais um dia de trabalho, no qual acaba se machucando com pregos, ou vergalhão, não me recordo.

A dramaturgia, mais uma vez, é determinante para expressar a crueldade e secura de recursos da vida do Miolo. Organizada numa estrutura que varia narração, monólogo e música que remete ao cordel e ao repentista, os questionamentos que envolvem a vida de João são abordados em camadas de texto. O narrador conta a vida de João do passado e recupera os acontecimentos presentes, e deste jeito abarca a vidas de muitos operários-miolo. No monólogo João expõe a perspectiva afetiva e angustiante da sua vida. E a música que, inteligentemente, não é usada como trilha, mas como um personagem que comenta, ironiza, julga e dá previsões cruéis, porém óbvias, do rumo do protagonista. A música, que é escuta em off nas transições das cenas, e portanto, não tem corpo, pode ser escutada como um coro, uma voz coral, da sociedade que sabe de cor e em versos o destino de João. Logo o canto, que é o sonho mais genuíno de João, é a voz que não apresenta compaixão, empatia, como que já posta num lugar inalcançável. É a música que diz a João que ele não vai conseguir. A hierarquia materializada em forma dramatúrgica bruta. E é mais interessante quando todas essas vozes, e corpos, são de um só ator em trabalho solo. Lauande Aires também assina dramaturgia e direção.

Sem atendimento de saúde digno, a ferida de João pode fazer-lhe perder a perna. Sua última opção é apelar para o santo, esperar o milagre, e em troca prometer nunca mais deixar de ser miolo de boi, e desistir do sonho de ser cantador. Milagre feito, João retoma seu lugar de miolo não por amor à tradição (ainda que seu “boizinho” seja um conforto), nem em nome da preservação da memória, mas porque não tem escolha, por uma questão de fé. Ele dança embaixo do seu boi-carrinho-de-mão por sobrevivência.

É a história de João Miolo que põe o bumba meu boi em cena e produz um espetáculo teatral, uma obra, não uma transposição. É o miolo que da vida ao Boi nas festas, e é a história do miolo que diz que o Boi está vivo no mundo.

Referência bibliográfica:

RABETTI, Maria de Lourdes. Memória e culturas do “popular” no teatro: o típico e as técnicas. In: O PERCEVEJO N.8, Ano 8, 2000. pg. 3-18.

Mariana Barcelos é atriz, estudante de Artes Cênicas – bacharelado com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO e graduanda em Ciências Sociais da UFRJ.

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