Laura quer vida eterna ou A tragédia reside em nós

Crítica do espetáculo A marca da água, do Armazém Companhia de Teatro

23 de fevereiro de 2013 Críticas
Foto: Divulgação.

O Armazém completou 25 anos em 2012. A marca da água, o último espetáculo estreado em agosto, apresentou ao público cativo da Cia. as particularidades da linguagem cênica criada e consolidada ao longo de tantos anos de história. Quem acompanha o trabalho desses artistas, sabe que suas encenações se ocupam de explorar as relações humanas por meio de uma perspectiva singular, na qual o lirismo e a narrativa são abundantes e fluentes como se fossem próprios ao gênero dramático. E as vidas de suas personagens, geralmente, carregam muito passado, e, por isso, muita memória e muito afeto. Não foi diferente desta vez, porém, com 25 anos, a redescoberta de si parece ser o caminho para a renovação, e nas palavras do diretor Paulo de Moraes: “Não podemos ter medo de morrer afogados”.

A marca da água conta a história de Laura, que aos 40 anos começa a sentir os sintomas de uma doença neurológica que teve, pela primeira vez, na infância. Uma água está a inundar o seu cérebro, e as consequências disso é uma música interna interrupta e uma morte iminente. Laura precisa fazer uma cirurgia para tentar sobreviver, mas não quer. Enquanto o marido tenta convencê-la do contrário, cenas da infância de Laura entrecortam a história tornando-a um universo descontínuo que confunde sonho e loucura (frutos da cabeça alagada de Laura).

A dramaturgia de Maurício Arruda de Mendonça e Paulo de Moraescontém uma instância trágica. Laura está num beco sem saída. A música que ela escuta e tenta materializar tornou-se sua razão de viver, sua euforia, sua fuga da apatia cotidiana. Mas a música mesma é também sua sentença de morte. Ao escolher a música Laura traça o seu destino trágico. O que há, neste caso, de diferente às antigas tragédias clássicas? Esta comparação me parece pertinente, pois, pode revelar a natureza de uma condição contemporânea da tragédia. Nas tragédias antigas, o Destino, à revelia de suas presas, era previamente anunciado e inevitável. Encarando seus anátemas (maldição; penitência a pagar pelo pecado cometido por um consanguíneo antecessor) com coragem, ou ignorantes de sua própria sina, os protagonistas destes mitos nunca foram salvos.

Mais de dois milênios depois da época dos grandes festivais de tragédias, que se começaram nos cultos em homenagem a Dionísio, e, ainda, mais de um século depois do chamamos de Modernidade, a tragédia não pode mais se justificar na maldição que atravessa gerações de uma mesma família. Por quê? Porque na Modernidade nos tornamos indivíduos, e desde então somos os únicos responsáveis pelos nossos atos. E ao contrário do que ocorria antes, quando o Destino era exterior ao corpo, e até mesmo à vontade do sujeito, hoje, quando há tragédia, “se” houver tragédia, esse fado se inicia e termina para um, e “dentro” de um só indivíduo. A tragédia sofre um processo de interiorização. Laura, por exemplo, tem o seu Destino acusado em seu próprio cérebro. Antes perdíamos para os outros, agora perdemos para nós mesmos.

A tragédia ainda surge, pois, mesmo que se tenha pensado, um dia, que a Razão seria soberana em todas as categorias de relações interpessoais possíveis (não é), o corpo, nossa biologia, continua sendo um deus não muito dominável. Nem a ciência, discípula primeira dos métodos racionais, pode negar isto. O corpo é o nosso inimigo, o cume do Destino trágico. Laura aceitou seu prognóstico. Entregou-se ao seu fim sem resistência, mas não por covardia, e sim por um sonho de liberdade possível. A música, a tragédia anunciada, é a vida potencializada.

“A alegria metafísica com o trágico é uma transposição da sabedoria dionisíaca instintivamente inconsciente para a linguagem das imagens: o herói, a mais elevada aparição da vontade, é, para o nosso prazer, negado, porque é apenas aparência, e a vida eterna da vontade não é tocada de modo nenhum pelo seu aniquilamento. “Nós acreditamos na vida eterna”, assim exclama a tragédia; enquanto a música é a ideia imediata dessa vida.” (NIETZSCHE, 1992, p. 99).

Nietzsche, em O nascimento da tragédia, centra seu discurso na dicotomia e na complementariedade das noções de apolíneo e dionisíaco. O apolínio, referente ao deus Apolo, representa a forma, a regra, o sonho, e o princípio individual. O dionisíaco, seu oposto complementar, refere-se a Dionísio, e representa a liberdade, o caos, a embriaguez, e o princípio universal. A escultura seria um exemplo de arte apolínea, a música de arte dionisíaca. O apolínio é o único recurso viável para que o instinto dionisíaco desça a terra. Quando o caótico universo dionisíaco se faz presente (por meio de Apolo), é possível sentir alegria diante da vida. A isto, Nietzsche caracteriza como sendo a essência do mito trágico. Este breve resumo me ajuda a dizer que, Laura só pode ser alegre e vivenciar uma forma elevada de existência se ouvir a música dionisíaca. Instintiva, inconsciente, oriunda da embriaguez de seu cérebro, e que só vem à tona pelo processo apolínio de tentar materializá-la.

E a decisão de “escolher” a música, que parece ser uma atitude racionalizada, não é. Laura a escolhe porque tem vontade. E a Vontade (Nietzsche usa a conceituação de Schopenhauer) é uma excitação do corpo, não uma forma consciente de afirmação. É um instinto animalesco que não demanda conhecimento. Quando Laura se submete ao seu corpo, que é a objetivação da Vontade, Apolo e Dionísio se unem. E Laura pode permitir-se o encontro com a liberdade, enquanto a vida eterna, no mundo de Dionísio, não chega. A determinação da Vontade, aqui, é importante porque elimina a possibilidade de Laura ser um personagem dramático, uma vez que estes realmente racionalizam sobre suas decisões. Depois que tem contato com Dionísio, o mesmo deus que deu origem aos festivais das tragédias, Laura só pode seguir, como um bicho, os demandos do corpo.

Suponho que tenha ficado claro que esta crítica propôs um pensamento mais aproximado da dramaturgia, entretanto, sem me alongar muito, gostaria de mencionar o cenário, também do Paulo de Moraes. Uma parede de fundo, retangular, um chão na mesma proporção, retangular. Na parede, vídeos de Rico Vilarouca e Renato Vilarouca exibem as imagens subaquáticas surgidas no cérebro de Laura. No chão, a piscina que o casal tem no quintal. Muitas cenas acontecem dentro da piscina, e por conta disso, o cenário, como o cérebro, é alagado durante a encenação. O que há de sólido e geométrico, claro, é apolínio. A água (da piscina e dos vídeos) é dionisíaca. Dionísio vence.

No início deste texto, citei uma frase do Paulo de Moraes, que está no programa do espetáculo, dizendo que o “Armazém” não pode ter medo de morrer afogado. Concordo. Mas em todo caso, se um dia vier a se afogar, isto não é exatamente um problema. Pode ser uma tragédia, mas não é um problema.

Acabei de lembrar que não falei do escafandrista, tem um escafandrista na cabeça de Laura… É a lembrança/imagem do seu pai já morto (em um acidente no mar). Esta memória surge junto com a música, e a incentiva a se permitir seguir o som. O escafandrista é como uma voz que legitima o inconsciente, e o que leva Laura a considerá-la é a sensação de que seu pai foi libertado depois que morreu. Ele é o guia para o mundo dionisíaco.

Referências bibliográficas:

NIETZSCHE, F. A visão dionisíaca do mundo. Trad. M. S. Pereira Fernandes e M. C. dos Santos de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

______. O nascimento da Tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

Mariana Barcelos é atriz, estudante de Artes Cênicas – bacharelado com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO e graduanda em Ciências Sociais da UFRJ.

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