O movimento vivo da repetição

Crítica da peça Balanço, de Samuel Beckett, no Festival Resta Pouco a Dizer

15 de março de 2008 Críticas
Atriz: Vera Holtz. Foto: divulgação.

Entre as características centrais da dramaturgia de Samuel Beckett está o aproveitamento da repetição – mas não como um elemento cristalizador que impede a transformação. Esperando Godot, seu texto mais conhecido, é marcado por uma estrutura circular que, porém, admite alterações (simbolizadas, por exemplo, pelo surgimento de folhas na árvore ressecada, conforme anuncia a rubrica no início do segundo ato). Em Balanço, encenada por Adriano e Fernando Guimarães dentro da programação formada por peças curtas e performances (reunidas sob o título Resta Pouco a Dizer), também vem à tona a sensação de uma repetição não-viciada, que vai se modificando em meio à impossibilidade de ser interrompida.

Não há propriamente um início em Balanço ou talvez se possa dizer que o início se dá em reticências, no sentido da continuação de numa espécie de cantilena eternizada ao longo do tempo (“o balanço onde a mãe balançava, todos os anos”) que só findará com a morte. Sentada na cadeira de balanço, Vera Holtz surge vestida de preto, possivelmente num luto que antecipa a própria morte, trazendo à tona uma idéia de espelhamento (“Uma outra como ela”). “Mais” é a primeira palavra dita pela atriz, palavra que será repetida no começo de cada nova parte do texto, que, por sua vez, renasce sucessivas vezes após a impressão de fim deixada ao término da parte anterior. “Hora de parar, hora de parar”, repete Vera Holtz, sem conseguir frear a repetição, interromper o fluxo contínuo.

Um fluxo contínuo que, contudo, vai se revelando mais frágil à medida que Balanço avança. A voz da atriz se torna mais suave a cada repetição e a gesticulação das palavras, mais mastigada e mais perceptível ao público. O “efeito” é menos exasperante que hipnótico e redimensiona o entendimento de informação no teatro de Samuel Beckett – não tão relacionado a um conteúdo a ser extraído de uma determinada obra, mas também ao modo como o ritmo e a proposta estética reverberam no espectador.

No primeiro caso, a montagem de Balanço evidencia não apenas um andamento descendente na maneira como Vera Holtz diz o texto como o descompasso entre o tom grave com que a atriz profere a única palavra em cena (“Mais”) e uma certa docilidade que marca toda a narração em off. No decorrer da apresentação, este descompasso diminui a partir do momento em que a fala ao vivo se fragiliza. Seja como for, a perspectiva do descolamento é importante na obra de Beckett, valendo evocar a desarticulação entre fala e pensamento, norteadora em Eu não. No que diz respeito à proposta estética, Balanço, como as demais peças curtas do dramaturgo, recebeu indicações rigorosas e Adriano e Fernando Guimarães parecem tê-las obedecido: “luz suave sobre a cadeira, o resto do palco no escuro”. Freqüentemente em Beckett, os personagens surgem aprisionados dentro de um espaço delimitado, ainda que em peças como Balanço esta “restrição” seja algo indefinida pela amplidão da própria escuridão.

Vol. I, nº 1, março de 2008

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