Palestra-performance, crítica de artista

29 de dezembro de 2020 Estudos
Vol. XII nº 71, junho a dezembro de 2020

Nota: Esse texto foi elaborado como uma palestra, apresentada na segunda edição da Complexo Sul – Plataforma de Intercâmbio Internacional, em 9 de novembro de 2020 no Palco Virtual do Itaú Cultural.

Eu estou aqui hoje para fazer uma palestra sobre a linguagem da palestra-performance, dentro de uma programação que se dedica quase inteiramente a essa linguagem e à sua prática no ambiente virtual. Nessa programação, cada artista ou palestrante vai colocar a sua perspectiva sobre o assunto e, acredito, nenhum de nós vai esgotar o tema. Cada um vai falar do lugar de onde vê e tentar dar alguns contornos àquilo que enxerga.

O que eu me proponho a fazer é olhar para essa linguagem com os olhos de quem se dedica à crítica de teatro e pensa sobre formas possíveis de mediação, identificando na palestra-performance uma forma de crítica de artista. A crítica a que me refiro nesse contexto não é necessariamente a escrita de um texto sobre uma peça de teatro, por exemplo. Eu me refiro aqui à elaboração crítica com relação às coisas do mundo, feita com as metodologias e os caminhos da criação artística. E quando digo “as coisas do mundo”, não estou excluindo os assuntos que se referem às artes. Muitas vezes, mesmo que indiretamente, a palestra-performance se dedica a fazer considerações sobre a linguagem ou a cultura. E isso não faz dessa categoria uma prática artística endógena. Pelo contrário até. Pode ser uma forma de aproximação. Nessa formulação, entra também o ensaio como forma da crítica, como forma da crítica de artista, como aspecto da escritura cênica da palestra-performance.

Além disso, estou aqui hoje para representar a Complexo Sul – Plataforma de Intercâmbio Internacional nesse ciclo de encontros que é um complexo de coisas. Eu sou uma das diretoras do Complexo Duplo, um agrupamento poroso de artistas de teatro do Rio de Janeiro. Escolhemos essa palavra, “complexo”, para nomear esses dois projetos… o Complexo Duplo (o grupo) e a Complexo Sul (a plataforma). Não é por acaso. Essa palavra é muito significativa. Eu vejo a prática artística, por exemplo, como um complexo: o mundo da arte é feito de muitas práticas, bastante diversas, que se complementam, não necessariamente de maneira simples ou harmônica. E vejo também o universo da crítica como um complexo, algo que pode ser abordado por diferentes perspectivas, e que precisa ter várias partes ativas para que tenha ressonância.

Em algum dicionário, consultado rapidamente na Internet, encontro a definição de “complexo” como um conjunto, tomado como um todo mais ou menos coerente, cujos componentes funcionam entre si em numerosas relações de interdependência ou de subordinação. “Complexo” pode ser um adjetivo que qualifica algo como sendo de difícil apreensão pelo intelecto, e que geralmente apresenta diversos aspectos. Mas também pode ser uma construção, no sentido arquitetônico, composta de numerosos elementos interligados e que funcionam como um todo.

Complexo também é o nome dado a determinados compostos químicos. A vitamina B, por exemplo, é um complexo. Na verdade, os complexos têm enorme importância na química: praticamente todas as enzimas são complexos de íons metálicos.  As enzimas são grupos de substâncias orgânicas que têm funções catalisadoras, elas desencadeiam reações químicas que, sem a sua presença, não aconteceriam. Então eu me pergunto se as práticas artísticas podem ser consideradas enzimas.

E me pergunto também se uma crítica pode ser uma espécie de enzima dos afetos. Por exemplo, você pode ser intolerante a um determinado procedimento de linguagem do teatro ou da dança. Mas, com aquela enzima, aquela crítica que você leu antes ou depois da peça, uma palestra ou uma conversa que você ouviu, você não só consegue digerir a peça, mas pode até apreciar melhor o sabor.

Na química, os complexos contêm substâncias que são chamadas de “ligantes”. Eu fiquei interessada nessa palavra: ligante. Mas, de qualquer modo, podemos manter em mente aqui a ideia de desencadear reações químicas – enquanto propriedade de alguns complexos.

O número, provavelmente o conceito mais simples da matemática, também pode ser complexo. Um número complexo é um número que pode ser escrito na forma

z = x + yi

sendo x e y números reais,

enquanto i denota a unidade imaginária.

Então, z é um número complexo, porque ele tem uma parte real e uma parte imaginária. Podemos pensar que z é igual a tudo na vida. Mas, no fim das contas, ficamos com a ideia de que até os números são tornados complexos pela imaginação.

A palestra-performance é um número complexo, uma equação que contém componentes de natureza x e y, mas também, necessariamente, eu diria, a presença constante de componentes i. De imaginação. O que mais me interessa nessa prática artística-reflexiva é o seu duplo estatuto de pesquisa e invenção, de produção de saber e abertura ao não saber, de formação e deformação, de rigor e delírio.

Uso essa expressão como tradução do inglês, lecture-performance. Foi no contexto das artes da performance e da arte conceitual nos EUA nos anos 1960 que essa prática ganhou seu nome. Essa categoria, que é bastante aberta, é uma espécie de convergência, de sobreposição ou composição de modos diversos de exposição de ideias, de poéticas da fala, de articulação de referências, de repertórios e de arquivos – que podem ser de qualquer natureza, não necessariamente material. Há uma referência evidente à ideia de palestra como forma do discurso acadêmico. A componente “performance” entra como a distorção, no melhor dos sentidos, da austeridade que pode vir junto com o lugar da academia em um sentido tradicional, do conhecimento emoldurado em um formato reconhecido e aceito em um contexto mais rígido de racionalidade científica.

A noção de palestra-performance que aparece, por exemplo, em Descolonizando o conhecimento, da escritora portuguesa Grada Kilomba[1], abre uma reflexão sobre o lugar da palestra acadêmica como forma de exposição de um conhecimento que precisa ser descolonizado. Ela enfatiza a necessidade de se experienciar o conhecimento de maneira mais vívida, contrapondo-se a uma ideia de saber que parece ficar presa na cabeça, sem conexão com o corpo. Essa ideia, segundo a Grada Kilomba, está ligada à imagem de um homem branco que fala, geralmente atrás de uma mesa, ou seja, que a gente só vê daqui pra cima. Ela se refere a um tipo de conhecimento que não pode ser atuado, não pode ser performado, pois não há acesso emocional a ele. E, por isso, ela pensa que o conhecimento precisa necessariamente estar conectado à biografia – e esse é um dado importante para o que eu estou querendo dizer. Ela diz: “Eu preciso conhecer o que eu estou dizendo e eu tenho que me posicionar, sabendo o porquê da importância do que eu estou dizendo, sabendo o que é isso que eu quero dizer”. Ela diz muitas coisas importantes nessa palestra-performance, mas vamos ficar com essa ideia por enquanto, de um conhecimento que passa necessariamente por quem fala, pelo corpo, pelos afetos. Um saber na primeira pessoa, que pode ser performado.

E assim penso que a palestra-performance é um modo possível de experimentar o que seria atuar os processos do conhecer – o que tem relação intrínseca com a escrita ensaística. Então, não é só o conteúdo do conhecimento que está em questão na palestra-performance, mas principalmente os modos de conhecer e os dispositivos de apresentação daquilo que se conhece. Esses modos de conhecer e dispositivos de apresentação do conhecimento podem ser “desenquadrados” por uma fala implicada pelo corpo e pelos afetos de uma primeira pessoa que se coloca e que coloca os seus próprios procedimentos em questão.

Me pergunto se, na verdade, essa não seria mais uma questão de ênfase, porque as ideias de neutralidade e objetividade são construções frágeis. São construções perversas e historicamente sedimentadas, mas conceitualmente frágeis, não resistem a uma reflexão crítica mais demorada. O conhecimento pode até ser tomado como uma espécie de acúmulo de saberes adquiridos por estudos, mas sempre passa pelo corpo e sempre passa pelos afetos – afetos no sentido amplo, não estou me referindo à afetuosidade. Afeto não é só calor: paixão, entusiasmo, raiva. Apatia e indiferença são afetos. A presunção de neutralidade é um afeto. A presunção de se pensar como uma cabeça, sem um corpo, é um afeto. Nenhum corpo é uma moldura transparente.

Eu acho que a palestra-performance pode ser sobre isso também, embora não tenha “surgido” dessa provocação especificamente. E é nesse sentido que eu identifico nessa prática uma atitude crítica com relação às formas de conhecer: quem fala coloca em evidência seus corpos, cores, língua, sotaques, tanto quanto os repertórios. O que está sendo enunciado não está descolado daquele que enuncia.

É bastante frequente na bibliografia sobre o tema (pelo menos na bibliografia que eu consegui alcançar até agora) e nas palestras-performances que eu cheguei a assistir,  que essa prática muitas vezes se dedica a refletir sobre questões da arte, dedicando-se a uma espécie de crítica institucional, que nos provoca a olhar criticamente para o que está dado como ponto pacífico em determinadas práticas artísticas, propondo uma revisão dos dispositivos da representação, uma decupagem e uma desconstrução dos dispositivos inerentes a cada campo de práticas e saberes. Daí o caráter autorreflexivo da escrita cênica desse formato, e o seu papel mediador. Uma peça em forma de palestra pode ser como uma peça-mediação. Uma engrenagem-enzima, um componente “ligante” desse complexo que é o sistema das artes, que pode aproximar os espectadores e espectadoras não apenas do fazer da cena, mas do pensar da arte, ou até mesmo das relações sociais, econômicas e culturais do setor.

Para dar um exemplo bem-humorado de palestra-performance que comenta as práticas de realização de projetos patrocinados no Brasil, lembro de Edital[2], um trabalho de Fábio Osório Monteiro, do Dimenti, de Salvador, em que ele faz uma palestra-performance a partir de um edital que ele mesmo lançou para dar conta da demanda de fazer um projeto autoral.

Outra forma possível de palestra-performance que discute a linguagem do teatro é a desmontagem. As desmontagens narram e mostram os caminhos e descaminhos de um processo criativo, decupando as escolhas de uma encenação, dos registros de atuação, dos elementos da cena, das direções tomadas diante dos impasses e das dúvidas. Minha primeira referência de desmontagem é Evocando os mortos[3], da Tânia Farias, do grupo Ói Nóis Aqui Traveiz, do Rio Grande do Sul. Em cena, a Tânia contextualiza os espetáculos de acordo com a sua experiência pessoal e mostra um repertório de cenas que, nesse caso, passam literalmente pelo seu corpo. Ela relata e mostra as cenas que comenta, não com documentos e registros externos, mas usando o próprio corpo, fazendo a sua parte de cada cena.

Outro exemplo possível de palestra-performance que investe na autorreflexividade sobre o próprio campo de criação são as apresentações que se dão também como compartilhamento de processo – e que nem por isso deixam de ter um contorno mais ou menos elaborado de encenação.

A criação mais recente do Complexo Duplo, realizada no segundo semestre de 2020 pelo Zoom, é um desdobramento da pesquisa do nosso grupo sobre o teatro documentário contemporâneo, que começou com a criação de uma peça de teatro a partir de um disco de rock. Em 2016, o grupo criou a peça Cabeça – Um documentário cênico, a partir do “Cabeça Dinossauro” dos Titãs, lançado 30 anos antes, em 1986. E, agora, o grupo parte de outro disco do mesmo ano: Dois, da Legião Urbana, criando um episódio a partir de cada canção do Lado A, neste projeto chamado Dois (Mundos)[4]. Além de apresentar as canções como documentos de ontem e de hoje, atravessados por seus corpos, subjetividades e recursos disponíveis no momento, os artistas trazem para a cena alguns textos seus, depoimentos pessoais, registros em vídeo de peças do passado, fotografias e outros itens do arquivo pessoal de cada um, mas também compartilham momentos-chave dos percursos, das possibilidades de abordagem das canções, expondo as dinâmicas de conversas dos ensaios, as sugestões e especulações trazidas por cada um. Assim aparece ali uma escritura cênica responsiva aos procedimentos da pesquisa, o que eu percebo como uma característica da palestra-performance e da escrita ensaística, como já apontei antes.

Penso por exemplo, nas tentativas de Vera Mantero em Os serrenhos do Caldeirão – Exercícios em antropologia ficcional[5], para por em cena o silêncio, o vazio, a sensação de “ter ido à Serra e não ter visto nada”, como ela mesma diz, de tentar criar, em cena, um grande buraco no seu corpo. No pensar-fazer da arte, a ficção não é o oposto da verdade, mas um dispositivo de apresentação de ideias, de proposições, um elemento de um jogo de elaboração crítica. Ficção não é mentira. Ficção não é fake. Às vezes o componente i, de imaginação, aparece na forma da ficção. A expressão “antropologia ficcional” no subtítulo desse trabalho funciona como uma pista de metodologia de abordagem para quem vai assistir: ela planta uma semente de desconfiança que pode funcionar como uma abertura.

Usamos o mesmo procedimento em Há mais futuro que passado – Um documentário de ficção[6], que dirigi em 2017, em que as três atrizes criadoras, Clarisse Zarvos, Cris Larin e Tainah Longras, apresentavam uma série de documentos, reais e ficcionais, para chamar atenção para determinadas ausências na historiografia da arte eurocentrada. Como é o caso da maior parte das palestras-performances que conheço, essa peça é motivada por uma pergunta: Qual é o lugar da mulher latino-americana na história da arte? Considero este um aspecto relevante dessa linguagem: uma criação artística fundamentada por uma pergunta ou uma série de perguntas, uma obra que se detém sobre um problema.

Nesse sentido, o trabalho da Joana Craveiro, do Teatro do Vestido, de Portugal, é uma referência importante. Um museu vivo de memórias pequenas e esquecidas[7] é uma palestra-performance que se dedica a enfrentar perguntas cruciais sobre a história do seu país, sobre a longevidade da ditadura, a falta de inscrição dessa memória no espaço público, a mentalidade dos portugueses na lida com a história e a política. O que ela apresenta, em uma palestra-performance de longa duração, são cerca de cinco horas de exposição de uma expedição, uma empreitada árdua de enfrentamento de perguntas cujas respostas possíveis são realmente complexas. Nesse caso, embora a artista faça uso de imagens projetadas e impressas, os arquivos também são ativados pelo corpo dela: ela decora e performa os depoimentos que cita, tanto os reais quanto os ficcionais, de modo que não sabemos o que é factual ou imaginado, mas intuímos que não importa. As hipóteses da sua investigação e a ética das suas proposições são coerentes. O museu que nos apresenta está vivo, não apenas porque é animado no corpo e na voz da artista, mas porque está atento aos seus dispositivos de apresentação. Poderia ser também um “museu crítico”.

Mas o que me parece mais interessante nisso tudo não é uma espetacularização da processualidade do fazer, mas a possibilidade de apresentar a criação artística como um fazer que vai sempre se deparar com um não saber. Uma pesquisadora alemã chamada Pirkko Husemann[8] escreve em um ensaio, que a palestra-performance é uma declaração artística de não saber. Este não saber não representa uma falta, no sentido de uma deficiência, mas, como eu entendo, uma abertura à invenção de saberes e experiências imprevistas, inauditas. Ela também vai dizer que na medida em que artistas questionam o seu fazer e compartilham as perguntas que se fizeram, isso pode convidar o público a fazer esse mesmo movimento, interno, de se por em dúvida diante das suas possibilidades e escolhas. E aqui chegamos ao que eu considero um dos aspectos mais instigantes da palestra-performance que é a sua possibilidade – não estou falando em garantias – de estimular o gosto pelo pensamento crítico, pela dúvida, pela curiosidade, pelo trabalho que dá encarar o enfrentamento com os vazios.

Penso também em uma obra do grupo colombiano Mapa Teatro, Testemunho das ruínas – um arquivo vivo[9], a que assisti por um registro em vídeo, no qual um dos diretores do grupo, Rolf Abderhalden, conta sobre um projeto de teatro realizado em um bairro periférico de Bogotá, que estava sendo destruído para dar lugar a um parque. Enquanto ele fala, vemos imagens de um trabalho do grupo feito no bairro, enquanto este se transforma em ruínas. Em cena, ao vivo, está também o prefeito da cidade daquela época assistindo aos vídeos e uma mulher que prepara uma comida, e que depois sabemos que foi a última moradora daquele bairro. Os dois estão ali como arquivos daquela história. Me chama a atenção o subtítulo: “um arquivo vivo”. O que me lembra que a palestra-performance é uma forma de encantar arquivos, de fazer falar os documentos, as narrativas, as experiências, os objetos, os repertórios, uma forma de dançar com eles, tirando-os de suas molduras, brincando com os seus estatutos e escutando o que os arquivos têm a dizer quando são ativados.

Assim aparece também a criação artística como trabalho – não como revelação súbita de uma potência criativa do gênio – e a natureza desse trabalho, que pode se assemelhar à vocação científica, que tanto demanda pesquisa, experimentação, tentativa e erro, inventividade, imaginação e mão na massa: a expressão “de artista” em “crítica de artista” se refere então a uma epistemologia, um modo de pensar-fazer da arte.

Então se eu estou aqui para pensar essa linguagem como uma forma de crítica de artista, é importante falar sobre o ensaio. O ensaio é um modo interessante para o exercício de uma crítica, não apenas por ser uma forma que convida à elaboração criativa da escrita, mas pelo modo mesmo como o pensamento caminha no ensaio. Proponho que a gente pense a palestra-performance como uma linguagem que pode se estruturar por uma dramaturgia ensaística, que pode se dar como um ensaio encenado. Um ensaio em pé, digamos assim. Não porque quem o apresenta deve estar de pé, mas porque não é feito só de tinta no papel, mas de carne no espaço. De corpo, de som, de tempo, deslocamento, imagens.

Uma das minhas referências de palestra-performance é o ator, diretor e dramaturgo libanês Rabih Mroué. Ele se refere aos seus trabalhos solos mais recentes como palestra não acadêmica. Ele diz que não se trata, nesses casos, de se referir à performance (embora essas palestras se deem como apresentações, como performances) porque ele não se dedica especificamente à relação com o espaço, algo que ele considera muito importante para a sua ideia de teatro, no sentido de não estabelecer um estatuto diferente entre o espaço que ele ocupa com a fala e o espaço que o público ocupa com a escuta. Ele vai estar na nossa programação, no dia 23 de novembro, e nós podemos conversar melhor com ele sobre isso, mas o que eu quero enfatizar aqui é a qualidade “não acadêmica”, que funciona como uma deixa para falarmos do ensaio. Ele diz que suas palestras não são acadêmicas porque não obedecem a determinadas regras, por exemplo, elas não contêm citações e referências, a pessoalidade se mistura aos fatos, o real se mistura com a ficção.

O ensaio é considerado uma forma distinta da escrita acadêmica mais tradicional, que até mesmo rivaliza com ela de certo modo. Mas aqui vamos tratar o ensaio não como uma forma, mas, como propõe o pesquisador espanhol Jorge Larossa[10], como uma operação. E eu acho que a palestra-performance opera de maneira análoga à operação do ensaio.

Para dar uma imagem da operação do ensaio, Larossa recorre à ideia de razão poética, da escritora espanhola Maria Zambrano, que seria uma “razão mais perto da vida”, que não exige que a vida seja violentada para se enquadrar nos moldes da razão, e que geralmente se encontra em gêneros da filosofia ou da literatura que são considerados “menores”, “impuros”, “híbridos”, tudo isso entre aspas, como se as formas tomadas como “puras” da escrita tivessem uma espécie de pedigree – pedigree é uma palavra que eu mesma acrescento. Essa discussão parece distante, mas não é. Nas artes, especificamente no teatro, há ainda a defesa de territórios seguros, previamente definidos, em que se pode conferir uma lista de pré-requisitos para validar ou não o que é ou não é teatro. A palestra-performance não se encaixa exatamente nos pré-requisitos necessários, o teatro feito pela internet, menos ainda. E, ao longo de 12 anos fazendo a Questão de Crítica, ouvi diversas vezes que o que lá fazemos não é crítica – até mesmo como se isso fosse um elogio. De peças que estão no âmbito da palestra-performance também já ouvi falar, elogiosamente, que elas nem são mais teatro. E essa conversa sobre as categorias me interessa porque eu entendo as categorias das artes como complexos, e complexos tão orgânicos e camaleônicos que continuam funcionando mesmo quando um ou outro fundamento da sua estrutura é subtraído ou subvertido.

O ensaio é uma forma da escrita filosófica, da escrita reflexiva, digamos, que desconsidera a separação entre filosofia e literatura, entre reflexão e ficção, entre escrita pensante e escrita poética. O Larossa diz que o ensaio confunde ou atravessa a distinção entre, de um lado ciência, conhecimento, objetividade e racionalidade, e de outro, arte, imaginação, subjetividade e irracionalidade. Ou, como diz a Maria Zambrano, razão poética. Ou ainda, como uma vez li em um artigo da socióloga argentina Zulma Palermo, sentipensamiento. Colocando as fronteiras entre as categorias em questão, o ensaio evidencia o quanto essas fronteiras são usadas como meios de exclusão. Assim, quem, na pintura ou na poesia experimentou jogar com as fronteiras dessas categorias, em algum momento ouviu “isso não é pintura”, “isso não é poesia”. E a partir daí, ampliou-se a cultura da pintura, o entendimento do que é poesia. O hábito de se referir a determinadas linguagens como híbridas sinaliza que consideramos determinadas categorias “originais”, “matrizes”, quando na verdade elas são apenas construções culturais, e ninguém deveria ser cobrado de prestar fidelidade a elas.

Agora, sobre as operações do ensaio, sobre o que acontece ao pensamento, à escrita e à vida, quando se ensaia, o Larossa vai colocar essas operações sempre como enfrentamentos, como problemas, e vai falar em ensaiar como ensaiar-se, sendo o ensaio uma das linguagens da experiência. Eu acho que isso tem muito a ver com a palestra-performance, que também entendo como uma linguagem da experiência de alguma coisa, do embate com alguma coisa. Ele também diz que o ensaio é o modo experimental de uma vida que não renuncia a uma constante reflexão sobre si mesma. Uma escrita da vida. Acho que é importante guardar isso.

Uma das características do ensaio seria que cada ensaísta tem a sua noção de ensaio, cada ensaio tem a sua poética. Não existe um padrão. Cada pessoa que escreve vai tornar o ensaio habitável à sua maneira. Além disso, o ensaio é uma escrita no presente, uma escrita da experiência no presente. Ele diz: “A questão do ensaio é o que nos acontece agora, quem somos agora, o que podemos pensar e o que podemos dizer e o que podemos experimentar agora, neste exato momento da história.” Só que esse eu e esse agora são tomados de alguma distância, uma distância mediadora, uma distância crítica, uma distância-aproximação, que nos indispõe com o presente, que desconjunta, desnaturaliza, descontinua o presente, fazendo do presente um problema a enfrentar, um objeto a que perguntamos: o que você tem a dizer, além do que já se diz sobre você?

O ensaio é, também, um pensamento em primeira pessoa, mas não se trata de um “eu” inteiro, cheio de si, mas um “eu” na sua precariedade, na sua contingência. Se a primeira pessoa for no plural, maior o problema a enfrentar. Essa primeira pessoa é uma posição discursiva, não um tema. Não se trata de uma performance de si, mas de um performar sobre si, um fazer algo sobre si enquanto ensaia. A verdade da subjetividade desse “eu” não é uma verdade exterior, mas uma verdade que se encontra no ato mesmo de escrever o ensaio, de ensaiar. Não se apoia em nenhuma autoridade ou convenção, mas na relação que tem com o seu mundo, e que se põe à prova, se inventa e se transforma nesse percurso atravessado pelo ensaio. E esse percurso de risco, no embate com o mundo, com o que é estranho, é o que forja essa subjetividade, que não está dada, não é anterior, é um experimento de si. Quem fala, no ensaio, é alguém que padece de uma experiência.

Larossa vai afirmar, como muitos, que o ensaio é o gênero da crítica porque é o gênero da crise, crise de uma certa forma de pensar, de falar, de viver, de um momento presente em crise, em mutação. O ensaio aparece, ele diz, quando os critérios estão suspensos, quando não há segurança teórica nem prática, quando os saberes estão em forma de perguntas. A crítica no ensaio é imanente, parcial, provisória, experimental, reflexiva, tateante, autocrítica, que testa seus próprios limites, que é um exercício criativo, de exposição, de expografia, quem sabe. O ensaio é um caminho desviante, de exploração, que se adapta aos acidentes do terreno e ao humor do caminhante. O autor diz ainda que a forma da escrita não poderia estar dissociada da forma do pensamento e, assim, o ensaio seria uma experiência simultânea de escrita e pensamento.

Ele também vai dizer que o ensaísta é um leitor que escreve e um escritor que lê, alguém que lê com um lápis na mão, que escreve em uma mesa cheia de livros, alguém para quem a leitura e a escrita são lugares de experiência, que está sempre aprendendo a escrever e a ler, “que ensaia a própria escrita a cada vez que escreve e que ensaia as próprias modalidades de leitura a cada vez que lê”.

Podemos pensar então, que, na palestra-performance, cada artista tem a sua noção dessa linguagem, e torna essa linguagem habitável à sua maneira. Esse formato também diz respeito à experiência de cada artista no seu momento histórico, no seu lugar social do ponto de vista do agora, na sua biografia agora, encarando o presente como um problema, um objeto que precisa ser desenquadrado para ser visto além do que já está aceito, além das evidências banais do que aparenta. A primeira pessoa da palestra-performance é condição de possibilidade do pensamento, e não um solipsismo. Um “eu” que padece de uma experiência-escrita que não é sobre si, mas que passa necessariamente por si e, nessa passagem, se reposiciona, se atualiza, se transforma, se remaneja. A fala ou a cena na palestra-performance é uma cena-pensamento, uma experiência simultânea de fazer e pensar. O encenar é, como a leitura e a escrita, um lugar de experiência, que se explora e se reaprende sempre ao se fazer.

E então que noção de crítica é essa que aparece na palestra-performance? Como todas essas implicações das operações do ensaio desenham uma crítica de artista nessa linguagem? Como essas observações sobre escrever a partir de si, colocar-se na primeira pessoa incidem sobre essa ideia de crítica? Uma das questões mais óbvias é a ênfase na indissolução entre o pensar e o fazer, que fica evidente na formulação de Maria Zambrano, “razão poética”. Pensar é fazer, fazer é pensar. A separação, na cadeia produtiva das artes, entre a prática teórica, reflexiva, crítica, e a prática da criação das obras é uma armadilha que precisamos aprender a desarmar. E talvez seja preciso também ensinar a desarmar.

Entendo que essa crítica de artista, para além do que antes coloquei como uma crítica feita com os saberes e não saberes do pensar-fazer das artes, com as roupas e as armas da imaginação, é também um posicionamento desse “eu” que assume enfrentamentos, desse “eu” que fala a partir da sua biografia, como diz a Grada Kilomba. Não é neutro, nem “traz verdades” sobre o mundo. Mas traz alguma verdade consigo, uma verdade complexa, que, como a experiência e a escrita, só se verifica com o fazer-dizer.

Em uma palestra-performance recente intitulada Stabat Mater[11], a atriz, dramaturga e diretora brasileira Janaina Leite situa a sua fala como parresia: uma verdade que diz respeito a um vínculo profundo entre quem diz e o que está sendo dito, que precisa necessariamente de escuta, e que pressupõe um risco. Depois de assistir a esse trabalho, comecei a pesquisar e a tentar entender melhor o conceito de parresia. A parresia é uma forma da fala franca, da coragem da verdade.

Essa forma da “fala franca” foi trabalhada por Michel Foucault[12] em seus últimos anos de vida, nos quais ele pesquisou as formas de “dizer a verdade” na Grécia Antiga, bem como as formas do governo de si e dos outros. Na crítica, a ideia de “dizer a verdade” é problemática porque muitas vezes se toma isso por uma pressuposição de que aquele que se posiciona sobre alguma coisa, se acha ou é tomado como o dono da verdade sobre essa coisa. Mas, na parresia, como na escrita do ensaio, e também como na crítica de artista, a relação não passa por aí. Não é disso que se trata.

Então eu comecei, nos últimos meses, bem aos poucos, a tentar pensar a crítica de artista – e aqui podemos pensar também na crítica de espetáculos, na crítica de obra de artes – como uma forma de parresia, de fala franca. A parresia, como diz o Foucault, é uma prática de si. E ele vai dizer do ensaio, que ele é “experiência modificadora de si no jogo da verdade” – como nos conta Larossa.

Aquela tão conhecida frase do oráculo que diz “conhece-te a ti mesmo” quer dizer, na verdade, “cuida de ti mesmo”, “ocupa-te de ti mesmo”. Acho importante fazer a ressalva que as práticas de si não são narcisismo. Pelo contrário. O narcisista é aquele que não faz nenhum trabalho sobre si. Então a crítica nesse âmbito das práticas de si não é uma egotrip, mas o cuidado prévio indispensável, do governo de si, anterior, de certo modo, à lida com os outros. A prática da crítica demanda necessariamente a escuta, a interlocução. E envolve riscos. Não um risco de morte como, por exemplo, na coragem da verdade de Sócrates que, depois de um longo percurso de cuidado de si e dos outros, chega a dizer a verdade que causa a sua morte. São outros riscos. Por falar em Sócrates, o que Foucault diz a respeito da parresia socrática, da coragem da verdade de Sócrates, é que ele adia a morte para se dedicar ao cuidado dos outros, e o cuidar dos outros é lembrar-lhes que eles precisam cuidar de si.

Um artista que se dedica ao exercício crítico e torna isso público de algum modo é um artista que coloca à prova o seu pensamento sobre arte. Que se arrisca a uma experiência modificadora do seu próprio projeto de artista. Esse pensamento não é ensimesmado, ele se dá no encontro com outros projetos artísticos, outros fazeres, outras práticas. É um percurso. Um percurso de buscas, de embates e de cuidados. Nesse sentido, a crítica de artista pode ser um modo de ocupar-se do seu projeto de artista, de cuidar do seu projeto de artista, na medida em que pratica o cuidado com os projetos de artista dos seus contemporâneos. E, ao enfrentar criticamente estes projetos provoca o auto-enfrentamento de quem escuta.

Eu disse anteriormente que um dos aspectos mais instigantes da palestra-performance para mim é a possibilidade de estimular, em quem assiste, o gosto pelo pensamento crítico. Isso vem da minha experiência como espectadora, quando me sinto movida a me mover, quando sinto que eu preciso ler com o lápis na mão, quando me sinto convocada a me tornar uma leitora que escreve, quando diante de uma apresentação artística, me sinto como diante de um oráculo, que diz, sem chance de me dar paz: “Ensaia-te a ti mesma.”

 

A palestra está disponível na íntegra em: https://youtu.be/MuXU6y46Rig

 

Notas e referências

[1] Disponível na íntegra, em inglês, em: https://vimeo.com/164629108

[2] Teaser de Edital disponível em: https://www.facebook.com/watch/?v=3298236096940144

[3] Teaser de Evocando os mortos disponível em https://www.youtube.com/watch?v=xbcNdwlI0jQ

[4] O primeiro episódio de Dois (Mundos) está disponível no canal do Complexo Duplo no YouTube: https://youtu.be/mn8zwrsPm7g

[5] Teaser disponível em: https://vimeo.com/246251522

[6] A peça está disponível na íntegra, com legendas em inglês, no Vimeo: https://vimeo.com/210527894

[7] Teaser disponível em: https://vimeo.com/103911152

[8] HUSEMANN, Pirkko. The Absent Presence of Artistic Working Processes. The Lecture as Format of Performance. Lecture Performance, Frankfurt, 8/05/2004 (versão para o inglês, atualizada em 2005). Disponível em: http://www.unfriendly-takeover.de/downloads/f14_husemann_engl.pdf

[9] Vídeo na íntegra, em espanhol e inglês, disponível em: https://vimeo.com/59204458 No canal do grupo no Vimeo, há outras versões disponíveis.

[10] As referências a seguir são de dois textos do autor:
LAROSSA, Jorge. “A operação ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida” em Educação & Realidade. Vol. 29 n.1 2004. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/25417/14743

LAROSSA, Jorge. “O ensaio e a escrita acadêmica” em Educação & Realidade. Vol. 28 n.2 2003. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/25643/14981

[11] Trechos de Stabat Mater e entrevista com Janaina Leite no Programa Arte1: https://www.youtube.com/watch?v=k52bGqM-XTc

[12] FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade. O governo de si e dos outros II. Curso no Collège de France (1983-1984). São Paulo: Edito WMF Martins Fontes, 2011.

 

Daniele Avila Small é crítica e curadora de teatro, editora da revista Questão de Crítica.

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores