Anotações de viagem: FIAC 2015

Crítica da edição de 2015 do Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia

24 de dezembro de 2015 Críticas e

Vol. VIII n° 66 dezembro de 2015 :: Baixar edição completa em pdf

English version: http://www.questaodecritica.com.br/2016/04/notes-along-the-way-fiac-2015/

Resumo: O texto tece considerações sobre o pensamento curatorial que estrutura o festival, realizando uma análise dos espetáculos a partir de cinco categorias transversais: cartografia, corpo, musicalidade, mostra baiana e espectador. Tais categorias representam possíveis recortes na programação do evento, podendo ser lidos de maneira autônoma, sem pretensão de esgotamento das relações entre os trabalhos artísticos.

Palavras-chave: FIAC Bahia 2015, cartografia, corpo, musicalidades, espectador

Abstract: Remarks about the curatorial thought of FIAC, Bahia’s international festival of theater arts and performance. For the 2015 edition, the text analyses the works through a series of five horizontal concepts: cartography, body, musicality, local plays and spectator. These categories represent different and independent ways of looking at the festival’s program, without exhausting other possibilities of critical thinking among the works assembled.

Keywords: FIAC Bahia 2015, cartography, body, musicality, spectator

 

Durante os dez intensos dias do Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia – FIAC 2015, assistimos a dezoito trabalhos de artes cênicas oriundos de cinco estados brasileiros – Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Distrito Federal – e de quatro outros países além do nosso – França, Espanha, Bélgica e Itália. A quantidade de obras somada a esta abrangência geográfica foram desafiadoras desde o início para a escrita deste texto.

Frente ao programa impresso do evento, circulamos à caneta, na tentativa de abarcar toda a programação, a rotina dos nossos próximos dias. Ainda assim, dois trabalhos não puderam ser vistos – Biomashup (de Cristian Duarte, SP), devido à sobreposição de horários e Clean Room – 2nd Season (de Juan Dominguez, Espanha), por razões que serão esclarecidas mais à frente.

Ao final dos primeiros dias, fazíamos anotações sobre todos os trabalhos vistos em sequência nas últimas horas. Parecia tudo muito distinto para tentar uma aproximação forçada no momento da escrita. Ocorreu neste ano, então, a 2ª edição do Seminário Internacional de Curadoria e Mediação em Artes Cênicas, que faz parte da programação do festival, e reuniu artistas para dialogarem (“conversa direta e informal com o público”) sobre suas experiências em seus processos de criação. Embora a maioria das falas não remetesse à curadoria (o que seria a proposta do seminário), foi a partir daí que nossa ideia de texto começou a ser elaborada.

Pela primeira vez estivemos em um festival sem a demanda de escrever uma crítica por espetáculo; o texto viria ao término de todo o evento. Pensamos que esta particularidade poderia ser o nosso ponto de partida e que deveríamos usá-la de maneira que isto ficasse claro. Quais as diferenças entre escrever uma crítica por obra e um texto sobre um festival? A resposta já embutida na pergunta, repetimos aqui para dar ênfase: é um texto sobre o festival, não sobre os trabalhos isoladamente. Poder passar por todo o FIAC nos permitiu olhar para o próprio FIAC, e, portanto, tomá-lo como objeto.

É difícil falar da edição de 2015 a partir da unicidade de um evento anual. Em interlocução com Felipe de Assis, que assina a curadoria geral do evento junto a Ricardo Libório, vimos que o FIAC surge de um trabalho continuado de pesquisa, interlocução e formação que envolve toda uma comunidade de pessoas, as quais assumem posições diversas de engajamento, unindo-se pelo desejo de proximidade com as artes, mais especificamente com as artes cênicas.

Felipe de Assis esboçou uma intrincada rede que se forma a partir de oficinas de diversas naturezas, projetos de capacitação de professores, assessoria pedagógica, atividades de fruição de espetáculo e de conhecimento de equipamentos culturais, enfim práticas que diluem de certa forma a acepção de comunidade artística como organismo no mais das vezes apartado do público em geral. O FIAC, então, surge como coroamento de todo um trabalho que se alonga durante os anos, agregando pessoas que não são meros participantes do festival, mas sim, em maior ou menor medida, deflagradores do mesmo.

Dito isto, retomamos a curadoria. Felipe de Assis explica que seu pensamento de curadoria passa pela ideia de “não-curadoria”, em oposição ao valorizado lugar do “curador-autor”. A curadoria é pensada por ele como um princípio disparador para se relacionar com o evento, não como uma leitura pré-moldada. O festival não se espelha numa exposição museológica e, em vista disso, a ideia é criar um ambiente para a troca de experiência com o público. Felipe pensa, sobretudo, no papel do festival dentro da cidade e como ele pode alcançar sua geografia em diversas partes, do centro à periferia, simbólica e material.

Assim, abordar as temáticas e recortes possíveis do FIAC 2015 é falar não tanto de escolhas pontuais e de temas da edição, pensados pela curadoria, mas acompanhar desdobramentos de um fluxo de trabalho que já se encontra no seu oitavo ano. De maneira sintomática, Felipe nos fala do conceito de mediação, que engloba amplamente as atividades mencionadas que culminam no FIAC, possibilitando o que ele chama de “ambientes disparadores”: questões e interlocuções, envolvendo conceitos artísticos e/ou relações pessoais, que vão paulatinamente sendo incorporados ao festival. Dessa forma, a acepção tradicional de curadoria se esgarça, abarcando elementos subjetivos e circunstanciais, como os contatos afetivos e profissionais entre artistas e organizadores, na mesma medida em que se canaliza uma diretriz difusa (porém potente) de perceber alteridades e revitalizações no panorama cultural da cidade.

Nessa perspectiva, leituras “pós-festival” se tornam importantes: uma vez que cada edição do FIAC surge quase como um organismo vivo, que assume configurações diversas de acordo com os movimentos constantes dos núcleos envolvidos. Um ambiente que dispara diálogos, partimos desta premissa e, ao observar nossa experiência enquanto público, identificamos cinco possibilidades de conceitos que atravessam a programação e que colocaremos aqui como eixos desta escrita. São eles: cartografia, corpo, musicalidade, peças baianas e espectador. Estes recortes são a nossa forma de diálogo, e representam mais um dentre os vários agenciamentos possíveis nessa rede de realizadores, artistas, críticos e espectadores.

 

Nota: os textos a seguir foram elaborados de maneira a facilitar a leitura independente, como pequenos núcleos que abrangem determinados conjuntos de peças e propõem uma questão que incide sobre elas. Uma leitura de fôlego que percorra todos esses pontos de uma vez pode achar alguns dados reiterados, mas certamente verá que eles também podem muitas vezes complementar uns aos outros.

 

Como (re)conhecer um espaço

As apresentações aconteceram em oito edifícios teatrais, espaços na rua que iam de avenidas a viadutos, um solar no Pelourinho, um espaço de companhia e um lugar desconhecido, ao qual não tivemos acesso. A identidade visual da programação de longe se assemelha a um mapa, de perto traça linhas que atravessadas coordenam o fluxo das atividades. Em dez dias, criou-se um intenso processo de intimidade com a geografia local.

A cartografia já seria tema por isso, mas além da materialidade geográfica, ela também aparece como objeto de algumas peças. Aqui mencionaremos os trabalhos nos quais este tema despontou, e de como, indiretamente, um pensamento sobre espaço foi sendo alinhavado no decorrer das encenações. A começar pelo binômio dentro/fora, independente de onde, o palco é em todo lugar. Boa parte das apresentações ocorreu em locais externos, e nem por isso foram chamados de teatro de rua. O primeiro pensamento sobre espaço traz o simbolismo de apagar as fronteiras das adjetivações.

Em seguida temos a forma de se relacionar com este espaço, no qual se identifica outra relação dialética: o conhecido/local, a sensação de pertencimento que as peças baianas transmitiram; e a estrangeiridade, o estranhamento de quem percorre os caminhos pela primeira vez. A geografia é indissociável dos vínculos, nas encenações dois foram determinantes: o do nativo e o do estrangeiro.

O trabalho marcante de O Castelo da Torre (Vilavox, BA), por exemplo, encenado no Solar São Dâmaso, no Pelourinho, faz uma articulação histórica com a arquitetura do século XVII. Ao trazer narrativas sobre o tratamento violento e indigno dado aos escravos pelos membros da família Garcia d’Ávila, o espetáculo provoca um confinamento no passado, e ao mesmo tempo abre frestas para pensar as reminiscências escravistas no presente. Sendo os narradores e personagens fantasmas dos mortos do casarão, O Castelo da Torre constrói um labirinto histórico por meio da estrutura arquitetônica de um período doloroso. A geografia marca temporalidades e, neste sentido, não se pode desvencilhar a história local dos edifícios. O casarão, o Pelourinho, as ruas de pedra, tudo dá forma à cartografia que não se apresenta apenas numa dimensão horizontal, visual, mas também vertical, histórica. Cartografia é tempo.

Outra experiência que articula história e arquitetura é a montagem A bunda de Simone (Teatro Base, BA). Chamado de Espaço Cultural da Barroquinha, o teatro tem a forma de corredor e fica no espaço da torre de uma igreja secular. A temática da peça, que trata de liberdade sexual, liberdade feminina, a redescoberta do corpo sem pecado, não sacrílego, confronta a simbologia do próprio edifício. Os atores encenam nus banhados pela água do cenário, que é um retângulo, com o chão coberto por uma lona, e por cima, arestas formadas por um encanamento hidráulico que formam raias verticais e horizontais (um mapa). Pequenos registros podem ser acionados e a água cai de todos os canos, como chuva. “É preciso lavar o corpo”, frase recorrente no espetáculo, fazendo alusão ao batismo, porém a um novo, libertador. A arquitetura perde sua condição de lugar de reverência, dadas suas características históricas, e passa a ser desafiada. Não existe passividade diante da cartografia.

Da ida ao passado de capitania ao mapeamento do atual bairro Politeama, da região central e em aparente decadência de Salvador, Ruína de Anjos (A outra cia. de teatro, BA) traz às ruas do bairro personagens que chamamos de “cartográficos”, personagens que seriam reconhecidos nas ruas de qualquer bairro com as mesmas características. Tem o pastor que prega em espaços públicos, a malabarista de sinal de trânsito, a velha moradora de rua irreconhecível embaixo de pilhas de panos com sua carroça, o cadeirante trabalhador informal vendendo café e o jovem que gosta de briga e tem um relacionamento escondido com a travesti. À noite, caminhando pelas ruas do bairro, a encenação transcorre no tempo de vida dos personagens, saindo da sede da companhia e retornando ao mesmo local uma hora depois. A peça apresenta uma noção mais forte de mapeamento, fixando uma espécie de planta baixa na medida em que os personagens dialogam com os espaços que seriam de suas vivências cotidianas. A travesti sonha com o casamento escolhendo um vestido de noiva curto e cheio de brilho na vitrine de uma loja de galeria de rua, mais tarde apanha do namorado na porta da igreja. A malabarista se diz ludibriada por um empresário que prometeu emprego na porta de uma empresa conhecida por promover projetos culturais. Num flashback, o rapaz cadeirante revela que seu sonho era ser jogador de futebol, porém, um dia jogando bola nos intervalos do sinal de trânsito, levou um tiro de bala perdida. O mapeamento geográfico ocorre junto, portanto, de um mapeamento humano. As ruas e seus frequentadores mais clichês não são separáveis.

Ruína de Anjos aponta ainda para o lado da rua que não costuma ser percebido, aponta para invisibilidades. Da rua como lugar de passagem e não de assimilação. Nesta perspectiva, tem outros três trabalhos que praticamente nos obrigam a olhar o lado “de fora”. Galeria Urbana Homo sem Cabeça (de Lucas Valentim, Lucas Moreira e Isabela Silveira, BA) investe na intervenção por meio do choque. Na saída do Túnel Teodoro Sampaio e do Viaduto São Raimundo, artistas se encontravam para ocupar e caminhar pelo espaço com vestimentas fora do contexto (correntes, máscaras que escondem a cabeça, palavras escritas pelo corpo etc.), com o intuito de provocar uma ruptura no olhar de quem só encontra nesses espaços uma via de acesso. Já Cosme e Damião/Duo (de Gilles Pastor, França) apresentado no Passeio Público, prende o olhar para o entorno por meio de outro recurso: a contemplação. Propositalmente pensado para ser encenado ao pôr do sol no mirante do Passeio, as imagens simétricas produzidas pelos dois atores, na contra luz, criam um ambiente ideal para a apreciação, a pausa, o ato de reparar.

Unindo dois pontos da cidade, História sob Rocha (de Daniel Guerra, BA) é produto de um processo de imersão de artistas no periférico e desprivilegiado bairro de Cajazeiras. Durante meses morando numa residência do bairro, o centro produtivo e criativo do trabalho foi deslocado para a periferia normalmente ignorada. Do tempo de “convivência” atividades e ações foram surgindo, atravessamentos entre artistas do centro e a população distante. O movimento se dá em direção à alteridade, e dele surge o que chamam de “acontecimento cênico”. Uma infinidade de objetos dos moradores de Cajazeiras dispostos no chão da Praça Municipal, com os quais o público deveria, ao seu modo, tecer interações, “conviver”. São objetos dotados de memória e geografia, mas que diante dos novos usufruidores, ressignificam-se ao mesmo tempo em que convergem pontos distantes do mapa da cidade – e do mundo. Como no menino negro, que envolto numa manta com estampa de onça e usando uma coroa carnavalesca, era o “rei” entre as crianças e puxava o coro, ao microfone, de um cântico para Iemanjá.

É para ver o abandono e o abandonado, e também o bonito. Os elementos estéticos apontados na cartografia não se prendem somente à denuncia do descaso, é antes tentativa primeira de dizer “repara nisso aqui”. É quando a condição nativa, que tem que fazer um esforço para conseguir enxergar o que é familiar, deve permitir se encantar pela qualidade do olhar do estrangeiro. Os nativos falam com domínio dos seus lugares de pertencimento, o estrangeiro, com espanto.

Orgia ou de como os corpos podem substituir as ideias (Teatro Kunyn, São Paulo) comporta a essência do olhar estrangeiro. A peça se dá em três espaços, o primeiro, numa casa comum escolhida pelos artistas dias antes da apresentação no centro de Salvador, na qual o protagonista argentino da peça encena momentos íntimos de familiaridade com seus “amigos” (o público) dias antes de fazer uma viagem para outro país – o deslocamento aqui é também ficcional. Ao se despedir da mulher e colocar a mala nas costas, os três atores (que fazem o mesmo personagem), dividem o público que os acompanha pelas ruas, da saída de casa até chegar ao Largo do Campo Grande. O público, então, com fones de ouvido ligados a um aparelho de mp3 dado pela produção, recebe a instrução para dar o play. O personagem caminha pelo Largo, seus pensamentos ao chegar ao outro país ouvimos pelo fone, a saber, Brasil, mais especificamente, Recife. Tudo é espanto, errância, e a constatação de que aquele lugar cheio de história, para ele, era um branco sem memória. O espaço é público, impessoal e sem afeto. É a chance de inaugurar o mapeamento a partir do nada.

O estrangeiro vem lembrar que a cartografia não se esgota nos restos de passado. O último espaço, numa sala do Instituto Goethe, representa o período de confinamento e tortura pelo qual o personagem passou. Um lugar muito pequeno e no início com pouca visibilidade devido à fumaça. A cartografia presente no espetáculo perpassa dramaturgia e encenação – da Argentina ao Brasil; da casa, rua, Largo à sala de estudos do Instituto. O personagem sai de seu íntimo familiar e vai até a outra ponta, quando se torna um desconhecido torturado por engano. A cartografia marca os corpos dos sujeitos, os rastros do nativo são diferentes do forasteiro – podem livrá-lo do equívoco de ser confundido.

Cosme, personagem central de Caranguejo Overdrive (Aquela cia. de teatro, RJ) vive um conflito sobre a sua identidade geográfica. Convocado e enviado para participar da Guerra do Paraguai (1864-1870), ao retornar ao Rio de Janeiro, sua terra natal, já não reconhece a geografia da cidade após obras grandiosas que se iniciaram durante sua ausência e aterraram o mangue onde trabalhava. Torna-se nativo e estrangeiro ao mesmo tempo, uma condição sem volta. Neste espetáculo a cartografia é radicalmente o objeto. A remodelação da cidade ignora o indivíduo como seu principal componente, e para não ficar ainda mais perdido, é ironicamente uma imigrante paraguaia que reconta toda a história do Rio e do país para Cosme (até os dias atuais). É sobre um mapa, desses de escola, que um caranguejo se mexe com dificuldade, sem mangue, portanto, sem casa, denunciando como a política influencia e modifica a cartografia urbana sem entendê-la como um organismo, mas meramente como formas de concreto que geram dinheiro, ignorando nativos (e estrangeiros).

Faz parte da cartografia, ainda, os pontos cegos. Faz parte da geografia não saber a direção exata a seguir. Produção emblemática do festival, Clean Room – 2º Season (de Juan Dominguez, Espanha), apresentou em três dias seis episódios de uma experiência que não poderia ser vista por ninguém além dos participantes que iniciaram no processo semanas antes do início do FIAC. As apresentações estavam na programação, tinham data e hora, mas não tinha o local (apenas os participantes recebiam a informação por email). Confidencial para poucos e indisponível para todo o resto. Alguns endereços nunca serão encontrados.

A bunda de  Simone. Foto Leonardo Pastor.
A bunda de Simone. Foto Leonardo Pastor.

O que pode um corpo?

Na cena, o corpo se desmembra e se refaz. Desnuda-se e logo em seguida se traveste. No entanto, a evolução do corpo assume novas possibilidades quando se percebe que outros corpos (espectadores, por exemplo) estão presentes, e que o espaço estabelece tensões com o corpo em ação. O FIAC levou a Salvador uma série de espetáculos que refletem sobre essas novas configurações corporais: seja a circunvolução do corpo que desdobra novas formas orgânicas; seja o lançamento deste corpo em direção a outros corpos e a outros espaços, que o agregam ou o repelem.

Inicialmente, cabe falar de trabalhos que demandam a atenção e a contemplação para a técnica do ator, na medida em que nos mostram as conquistas sólidas que as artes do corpo exibiram ao longo do século XX. Se não há uma tendência ao virtuosismo em espetáculos como Mundomudo (Companhia Azul Celeste, SP), Cosme e Damião / Duo (de Gilles Pastor, França) e nii – nada novo sob o sol (de Neemias Santana, BA), é certo que estamos diante de práticas que reconhecem a potência de um legado histórico, atualizando-o. O exercício sensível e meticuloso da técnica do clown em Mundomudo reverbera uma tradição das artes cênicas que pede um olhar detido para traços da fisionomia, para a fina execução de gestos e rotinas, numa experiência de imersão na atmosfera algo beckettiana de seus personagens. Por outro lado, a performance Cosme e Damião / Duo agencia efeitos sonoros e paisagísticos como forma de criar o espaço propício para a prática de dois atores, que ecoam a temática do duplo subjacente às figuras dos santos celebrados na religiosidade popular. Nesse sentido, os procedimentos formais manejados por Gilles Pastor – de resto, formadores da tradição da performance que se delineia a partir da década de 60 – se emparelham aos movimentos de nii: espetáculo que suaviza nossas expectativas com o subtítulo “nada novo sob o sol”, mostrando-nos um exercício de elaboração cênica sobre um quase vocabulário de movimentos da dança contemporânea.

Se os espetáculos mencionados acima demandam uma percepção voltada ao trabalho do corpo, cujos procedimentos reconhecíveis nos fazem atentar para o treino e para a técnica, é igualmente certo que o FIAC também voltou seu olhar para tentativas que realizam uma espécie de desconstrução destes mesmos procedimentos e técnicas, na direção ora de um transbordamento da mise-en-scène, ora de um esfarelamento dela. Falamos especificamente, no primeiro caso, de Um corpo que causa (de Jorge Alencar, BA), espetáculo de concepção, criação e “causação” (conforme o programa). Nele, as operações de travestimento e encenação melodramática de fantasias pessoais acrescentam camadas e mais camadas à cena, intensificando a teatralidade e resvalando para a estética camp e drag. No extremo oposto dessa estratégia, Hamlet, processo de revelação (Coletivo Irmãos Guimarães, DF) confia na rarefação da técnica tradicional do ator para narrar a tragédia de Shakespeare. Emanuel Aragão, ator que também assina a dramaturgia, tenta uma abordagem didática (mas não professoral) do tradicional texto inglês, buscando uma revelação da sua singularidade por meio da abertura corporal à conversa, à discussão aberta com o público.

Interessante perceber que os extremos do travestimento e do desnudamento da atividade do ator não são sempre irreconciliáveis. A conciliação se daria, por exemplo, nos casos em que o processo criativo do ator se torna a própria matéria de um espetáculo. Nesse sentido, a redução da cena a exercícios ou treinos corporais daria margem para uma profunda diluição da teatralidade, que ganha, no entanto, camadas expressivas na medida em que o treino enseja possibilidades inauditas de experimentação. Tal ideia fica mais clara quando nos deparamos com trabalhos como o de Denise Stutz, que dirige uma das seis peças que compõem 6 modelos para jogar (de Alex Cassal e Dani Lima, RJ). Trata-se de um mosaico de seis peças-procedimento, cada uma idealizada por diretores diferentes. Presente no FIAC deste ano, o trabalho de Stutz traz à cena sequências marcadas de forma precisa, como num exercício minimalista executado pelos atores. O minimalismo da encenação, no entanto, resvala gradualmente para improvisações que constroem novas imagens do corpo em evolução, com peculiares sonoridades e uma total refiguração da relação do ator com o público.

6 modelos para jogar transforma em dramaturgia a experimentação com o corpo que caracteriza muitos dos processos criativos contemporâneos. Estes investem pesadamente no trabalho do ator para atingir níveis outros de materialização corporal, alcançando na cena, por exemplo, hibridações interessantes como as de Caranguejo Overdrive (Aquela cia. de teatro, RJ) e It’s going to get worse and worse and worse, my friend (Voetvolk, Bélgica). No primeiro trabalho, a direção de Marco André Nunes conduz o corpo metamórfico de Matheus Macena e o seu devir homem-caranguejo, bem como a resistência psicofísica da performance de Fellipe Marques. Na mesma medida, o espetáculo de dança da companhia Voetvolk traz o “corpo-cavalo” de Lisbeth Gruwez, imagem que arremata a rigidez e a disciplina de seus movimentos “militares”, assim como a fisionomia dura e a potência física de seus saltos.

Importante perceber que tanto Caranguejo… como It’s going to get worse… são trabalhos que elaboram fisiologias híbridas, atravessamentos biológicos que se inserem em inegáveis contextos de crítica política. A fome e as iniquidades do processo de urbanização carioca ocupam as atenções da dramaturgia de Caranguejo… (assinada por Pedro Kosovski), da mesma forma que o trabalho de Lisbeth Gruwez parte da retórica dos discursos políticos, que não raro resvalam para violências simbólicas e até mesmo mais imediatas. Trata-se de um pensamento do corpo que cria tensões com a biopolítica (conforme pensamento de Michel Foucault), configurando uma diretriz corporal que frequenta em maior ou menor medida muitos dos espetáculos deste ano.

A bunda de Simone (Teatro Base, BA) é talvez um dos trabalhos do FIAC que concentraria de forma mais aguda essa consciência política. A dramaturgia aquática do espetáculo propõe um duplo sentido para uma operação de lavagem do corpo: a assepsia neurótica dos hábitos de higiene contemporâneos, concomitante a um esforço de “lavagem” dos discursos que se sobrepõem ao corpo (principalmente o feminino). Nesse sentido, a erosão da água abre caminhos alternativos de enunciação, em que textos autobiográficos refletem sobre os cerceamentos a que o corpo está submetido na atualidade, na medida em que ocorre uma tentativa de desnudamento e recuperação da materialidade dos corpos e da sexualidade.

O tema aquático e sua relação com o feminino parece ser também a preocupação principal de OFÉLIA: sete saltos para se afogar (de Raiça Bonfim, BA). No entanto, ao contrário da diretriz de presentificação corporal em A bunda de Simone, esse trabalho parece apostar no esvanecimento do corpo feminino, por meio de projeções de vídeo, das texturas criadas pela luz, pelo belo canto da atriz, ao longo da sucessão dos “saltos” (que são como que estágios de investigação cênica sobre a imagem da personagem shakespeariana). A Ofélia de Raiça Bonfim, dessa maneira, conforma um feminino que assume ares fantasmagóricos, qual uma sereia que enfeitiça pelo seu canto e mergulha nas águas profundas de seu próprio devaneio infantil.

É importante ressaltar que o corpo que perde seus contornos não necessariamente esgota sua materialidade. Ou seja, a evanescência não é um traço de virtualização da imagem corporal, e sim um fator que tensiona a presença física do corpo com sua inegável dimensão histórica. Se o monólogo sobre Ofélia dialoga inevitavelmente com o peso histórico do teatro de Shakespeare, vemos que fantasmas do passado irrompem de maneira ainda mais contundente em trabalhos como O Castelo da Torre (Vilavox, BA). Recuperando um importante núcleo da história colonial baiana, o espetáculo busca dar voz e corpo à saga dos Garcia d’Ávila, família que concentrou uma das maiores propriedades de terra no Brasil do século XVII. Mais especificamente, o grupo Vilavox busca retomar a narrativa dos excluídos da historiografia, que forneceram a força de trabalho e sacrificaram seus próprios corpos para a edificação do poder latifundiário. Corpos negros e indígenas que, na cena, surgem como “fantasmagorias orgânicas” de um passado histórico marcado pelo trabalho escravo, por mortes violentas e pelo estupro. Apresentada no Solar São Dâmaso, antigo casarão do século do século XVII no Centro Histórico de Salvador, a peça constrói uma espécie de claustro ou sepulcro, revirando valas e túmulos e ressuscitando homens e mulheres violentamente soterrados pela narrativa dos vencedores. O corpo do ator, nesse sentido, cria um forte ponto de tensão: presença física que relembra dolorosamente uma história de massacres, mas que ao mesmo tempo se funda teatralmente no hoje, inquirindo politicamente o presente. Uma das cenas finais dramatiza de forma aguda essa dualidade: uma atriz, negra, vestindo andrajos, andando e entoando um canto-lamento pela rua que cruza a entrada do Solar, enquanto a observamos das janelas do sobrado. A sua presença fantasmagórica naquele espaço, em meio à indiferença dos passantes e dos policiais da delegacia próxima, intensifica o questionamento que o próprio espetáculo nos faz: “Olhai para o passado, o que vedes? Olhai para o presente, o que vedes?”.

O Castelo da Torre propõe uma noção de corpo que inegavelmente pressupõe a sua inserção no espaço, a saber, um casarão no Pelourinho que reverbera a memória de um sistema socioeconômico brutal e injusto. Pode-se identificar neste trabalho um pensamento do corpo que dialoga com diversas espacialidades, em que a presença física do ator e a pesquisa cênica passam a considerar as injunções que os espaços públicos e/ou privados provocam na dramaturgia.

Nessa perspectiva, nota-se que muitos dos trabalhos do FIAC 2015 pensam a relação corpo e cidade. Ruína de Anjos (A outra companhia de teatro, BA), por exemplo, parece seguir uma diretriz paralela a O Castelo da Torre. Ambos os espetáculos partem de espaços e contextos históricos locais, sendo que o grupo Vilavox discute a sobrevivência de estruturas sociais arcaicas, ao passo que o trabalho d’A outra companhia busca intervenção e diálogo junto a uma história e uma geografia mais recentes. Mais especificamente, trata-se do processo de urbanização (frequentemente perverso) do Politeama, bairro em que se localiza a sede d’A outra companhia. Na dramaturgia de Vinícius Lírio e Luiz Antônio Sena Jr., a temática da invisibilidade social dialoga com o espaço urbano relegado à marginalidade, numa peça itinerante que circula pelas ruas do bairro atualmente pouco valorizado no mapa social da capital baiana. Como num teatro de moralidades contemporâneo e pagão, os personagens encarnam tipos alegóricos, cuja ressonância coletiva é produto de uma amplificação estética do corpo social enraizado naquele bairro, naquela comunidade. Os quadros ficcionais se desenrolam no espaço mesmo da rua ou em galerias de comércio popular e, através desses quadros, os tipos alegóricos remetem ao processo de degradação social e urbana do Politeama, que ocorre a olhos vistos.

Um dos lugares de experimentação mais interessantes do FIAC deste ano, a teatralidade do corpo em tensão com o espaço público também se torna um procedimento determinante para Galeria Urbana Homo sem Cabeça (de Lucas Valentim, Lucas Moreira e Isabel Silveira, BA) e História sob Rocha (de Daniel Guerra, BA). Nestes trabalhos de cunho performático, a interação e o atrito do corpo estético do ator com o passante na rua ou o espectador são a base para experiências teatrais cuja duração e efeito dependem exclusivamente dos fluxos do espaço público, a partir dos quais o jogo teatral agrega novos espectadores e possíveis agentes/atores, deflagrando diversos graus e formas de interação. Em Galeria urbana…, performers de cabeças cobertas se tornam corpos sem metafísica, cuja fisicalidade e figurino se tornam fatores de estranhamento em espaços destinados exclusivamente à passagem de pedestres, como os passeios públicos. Por outro lado, na performance coletiva de Daniel Guerra, os atores realizam verdadeiros exercícios de convivência com os sujeitos envolvidos, fornecendo situações lúdicas, objetos cenográficos e a própria disponibilidade dos atores à interação espontânea com o público.

Por fim, dentre as diversas possibilidades que o festival forneceu para o pensamento sobre o corpo no teatro, cabe registrar a complexidade e a diversidade de Orgia (Teatro Kunyn, SP). Com o subtítulo sugestivo “de como os corpos podem substituir as ideias”, a peça se inspira na autobiografia homônima de Túlio Carella e se insere na linha geral dos trabalhos teatrais em espaços urbanos. O diário de Carella narra suas experiências em viagem ao Recife, onde se entrega a encontros furtivos com outros rapazes em lugares públicos. Em livre adaptação do livro, o Kunyn constrói uma dramaturgia que reelabora esteticamente esse universo erótico, descortinando três fases de experimentação a partir do corpo do ator: na primeira, o corpo cotidiano de Luis Gustavo Jahjah, Paulo Arcuri e Ronaldo Serruya conduzem lentamente o espectador ao entrecho biográfico de Carella. Em seguida, os atores empreendem uma dramaturgia itinerante em meio ao Largo do Campo Grande, em Salvador, remetendo aos sentimentos de clandestinidade, errância e inequívoca liberdade vivenciados por Carella. Por fim, após o “frisson da caça” no parque público, a peça propõe uma experiência de confinamento e desespero, em que reelabora cenicamente o fato biográfico da prisão de Carella, detido por ter sido erroneamente acusado de subversão pelo governo militar.

De todos os espetáculos assistidos, Orgia ou de como os corpos podem substituir as ideias é o que parece ilustrar de maneira mais pungente uma “ventura” do corpo, espécie de destino ou ímpeto que parece, contudo, frequentar cada um dos trabalhos brevemente comentados. De fato, em todos eles, a presença física do ator parece ser um elemento significativo das dramaturgias, indicando que a recepção destas deva realmente levar em conta o corpo em atrito com a alteridade, como fator a ser considerado junto à apreciação intelectual de uma obra de arte. Trata-se de perceber como os corpos na cena podem (e devem) substituir as ideias. Perceber e sentir, enfim, o que pode um corpo.

Galeria urbana homo sem cabeça. Foto: Leonardo Pastor.
Galeria urbana homo sem cabeça. Foto: Leonardo Pastor.

 

It's going to get worse and worse and worse, my friend. Foto: Divulgação.
It’s going to get worse and worse and worse, my friend. Foto: Divulgação.

“Nós, por exemplo”: assumir e tomar o local

Na dialética entre o local e o universal, o FIAC almeja uma projeção cultural ampla que compreenda produções nacionais e estrangeiras, pressupondo também a mediação por entre circuitos e produções locais. Nesse sentido, parte fundamental da proposta “internacionalizante” do festival parece ser precisamente o seu enraizamento na Bahia, promovendo a circulação de um diversificado capital humano pela geografia de Salvador, e o intercâmbio intelectual, cultural e artístico entre os vários agentes que o evento agrega.

Fato de grande interesse é que o FIAC 2015 tenha contado com uma equipe especial de curadores, com o objetivo de lançar um olhar, paralelo à curadoria geral, atento ao que acontece na cena local. Para a mostra baiana, portanto, juntaram-se aos curadores gerais Felipe de Assis e Ricardo Libório, Celso Júnior, Gilsamara Moura, Joceval Santana, Maiara Cerqueira, Ruy Filho e Thiago Andrade. O resultado desse esforço pode ser observado no conjunto dos trabalhos contemplados pelo festival, transparecendo uma atenção para jovens autores e diretores, bem como para o diálogo com as geografias locais, mais especificamente as tensões com o meio urbano.

Escavadores (COOXIA – Coletivo teatral, BA) e nii – nada novo sob o sol (de Neemias Santana, BA) parecem ser espetáculos que remetem a um contexto de formação acadêmica, desenvolvendo-se em pesquisas derivadas da Escola de Belas Artes e da Companhia de teatro da UFBA (no caso do primeiro espetáculo), bem como na estreia de um jovem diretor em projeto de experimentação em dança (no caso do último espetáculo). Dessa forma, apesar de a esperançosa alegoria político-filosófica de Escavadores divergir do ambiente pós-utópico e obscuro da dramaturgia de nii, encontramos nesses dois espetáculos a presença de uma juventude atuante na cena teatral baiana, o que caracteriza muitos dos espetáculos baianos que comentaremos a seguir.

Os monólogos Um corpo que causa (de Jorge Alencar, BA) e OFÉLIA: sete saltos para se afogar (de Raiça Bonfim, BA) se conectam a contextos da cultura baiana em chaves distintas, mas estabelecendo aberturas mais amplas para outras possibilidades de leitura. O cabaré de Jorge Alencar traz retalhos de cultura pop, drag e camp, mas sem deixar de fincar raízes em redutos conhecidos da noite alternativa de Salvador, como a casa de shows Âncora do Marujo, tornado inclusive lugar de relevância para a comunidade teatral local. Por outro lado, nos momentos mais intensamente líricos do espetáculo de Raiça Bonfim, o canto e o simbolismo aquático remontam a uma temática cara ao imaginário soteropolitano: a relação com o mar. Em muitos momentos, a performance vocal da atriz inclusive subsume elementos de canto ritual dos orixás, realizando um interessante diálogo entre a heroína trágica e Iemanjá, a divindade das águas.

Cabe dar destaque também a uma parcela significativa da mostra baiana que corresponde a trabalhos imediatamente ligados a contradições sociais e a espaços específicos da topografia urbana. O Castelo da Torre (Vilavox, BA), por exemplo, ao mergulhar no passado violento e vergonhoso da colonização brasileira, busca provocar tensões com o presente histórico-geográfico, na medida em que o espetáculo se instala no Solar São Dâmaso, antigo casarão situado no Pelourinho, área da capital que imiscui turismo, vida noturna e resquícios de história colonial.

Seguindo a mesma diretriz, porém mais objetivamente ligados às contradições e desigualdades do processo de urbanização de Salvador, História sob Rocha (de Daniel Guerra, BA) e Ruína de Anjos (A outra companhia de teatro, BA) imergem no cotidiano e na comunidade dos bairros de Cajazeiras e Politeama, respectivamente, tornando-os local e objeto de pesquisa para a construção de suas dramaturgias. O trabalho de Daniel Guerra utiliza a convivência com moradores de um dos bairros mais populosos da cidade como matéria para performances e instalações públicas, compondo os vários módulos cênico-experimentais que constituem História sob Rocha. Na mesma medida, A outra companhia de teatro também busca apoiar a dramaturgia de sua peça itinerante a partir do diálogo com agentes locais, estabelecendo dinâmicas com moradores e buscando entender a realidade do Politeama, bairro em que se localiza a sede da companhia desde 2013.

Ressaltemos, por fim, a capacidade destes trabalhos – especialmente os que se fundam em espaços urbanos – de provocar estranhamentos e resistências aos fluxos alienantes da cidade e da cultura locais, estabelecendo posturas de questionamento e de reflexão sobre os rumos da arte e dos aglomerados socioambientais contemporâneos. Em alguns casos, como o de Galeria Urbana Homo sem Cabeça (de Lucas Valentim, Lucas Moreira e Isabel Silveira, BA) e A bunda de Simone (Teatro Base, BA), trata-se praticamente de uma operação de intervenção e choque, a partir de refigurações e deformações do corpo que impressionam os passantes da rua (em Galeria…), ou repurificando a nudez dentro de um espaço como a Igreja da Barroquinha (em A bunda…).

Assim, pensando com a canção de Gilberto Gil esses trabalhos, vemos que eles são apenas “exemplos”, “vozes da voz”, mas que parecem imbuídos da tarefa de assumir a singularidade do local diante do mundo. Não para superá-lo ou divulgá-lo alhures, e sim para reapropriar-se dessa localidade. Assumir o lugar baiano para tomá-lo. Ocupar e, talvez, transformar.

 

Dramaturgias sonoras, escritas-ritmo

Da música para a musicalidade: trata-se de pensar não tanto um acompanhamento ou ambientação sonora, mas uma música que concorre para o acontecimento cênico, sendo às vezes um dos elementos fundamentais da dramaturgia. Nesse sentido, a “trilha” a ser seguida é a de trabalhos que investem nas potencialidades e nos atravessamentos que melodias, batidas e cantos ocasionam na tessitura do espetáculo.

Um corpo que causa (de Jorge Alencar, BA) e OFÉLIA: sete saltos para se afogar (de Raiça Bonfim, BA) apostam na capacidade cênica do canto. A “causação” de Jorge Alencar se inaugura na possibilidade de escolher e de cantar um repertório pessoal de canções, buscando identificar e encenar o lugar da música numa paisagem sonora, crítica e biográfica. Por outro lado, para além de um repertório musical reconhecível, a Ofélia de Raiça Bonfim procura vibrações mais profundas e sutis, em que sua voz reverbera cantos de sereia ou de Iemanjá, potencializando a ambiência aquática de sua peça com seu inequívoco magnetismo vocal.

No entanto, não é somente com a voz que o corpo de um ator pode produzir musicalidade. Em 6 modelos para jogar (de Alex Cassal e Dani Lima, RJ), no “modelo” dirigido por Denise Stutz – dentre os seis que compõem o trabalho, cada um dirigido por um artista diferente –, o corpo surge frequentemente como produtor de sons (guturais, ou de pele com pele, ou de pele com objetos), abrindo espaço para improvisações de canto e de dança. Numa chave próxima, porém numa perspectiva bem mais minimalista, Untitled_I Will be there when you die (de Alessandro Sciarroni, Itália) também propõe uma aproximação entre corpo e som. No espetáculo italiano, uma dramaturgia tênue reveste a performance circense, criando um efeito rítmico na medida em que os malabares em queda se chocam com as mãos dos atores, provocando sucessivos baques surdos que reverberam uns nos outros, e despertando nossos sentidos para o aspecto gravitacional dos objetos e para a tenacidade dos atores.

Vale lembrar que nem só de sons peculiares e sutis se fazem as musicalidades contemporâneas. O grupo Vilavox (BA), por exemplo, funda a sua pesquisa cênica na relação entre teatro e música, diretriz que determina todos os trabalhos da companhia. No seu mais recente trabalho, O Castelo da Torre – que inclusive conta com a direção musical de Jarbas Bittencourt ao lado da direção de Meran Vargens –, o grupo busca intensificar a dramaturgia com o canto coral, para narrar a sangrenta história dos Garcia d’Ávila na perspectiva dos excluídos – negros e índios escravizados. Nesse sentido, o canto coral atualiza as vozes espectrais daqueles que foram violentamente explorados pelo histórico clã, possibilitando ora a irrupção do trágico pela emanação arcaica do coro, ora a irrupção do épico e do lírico no canto e na narrativa dos personagens.

Caranguejo Overdrive (Aquela cia. de teatro, RJ), por sua vez, cria sonoridades tão fortes quanto às de O Castelo da Torre, mas num registro totalmente diferente: em vez do canto coral, a força das batidas e das guitarras do manguebeat, entrecortados por narrativas épicas que nos contam a história de Cosme, soldado que retorna da Guerra do Paraguai e encontra um Rio de Janeiro totalmente refigurado por um processo perverso de urbanização. As lembranças da guerra e as contradições político-sociais do presente são incorporadas no fluxo musical, ditado pela banda que toca ao vivo (Felipe Storino, Maurício Chiari e Samuel Vieira), garantindo assim a própria pulsação do espetáculo.

Por fim, vale lembrar que devemos considerar o poder da música de atravessar corpos e sujeitos, possibilitando encontros e partilhas que de certa forma reatam existências cindidas e isoladas. Nesse sentido, a música pode ser o catalisador de novas configurações entre atores e espectadores, criando outras relações e posições possíveis entre aqueles envolvidos numa ação teatral ou performática. Em História sob Rocha (de Daniel Guerra, BA), por exemplo, a invasão e a instalação do elenco na Praça Municipal de Salvador cria um ambiente propício à interação espontânea, mediada pela trilha sonora incidental mixada na hora (sob responsabilidade de João Millet Meirelles), e principalmente pelos microfones que circulam livremente entre os sujeitos performáticos (tanto atores como o público).

A música como meio para criar atravessamentos entre indivíduos de estatutos diversos (espectadores, atores, passantes, observadores etc.) pode também ser vista em Orgia ou de como os corpos podem substituir as ideias (Teatro Kunyn, SP). Em dado momento da peça, a canção “Fera ferida” arremata de maneira singular a trajetória biográfica do personagem Tulio Carella, sendo quase um resumo musical da dramaturgia. Nessa perspectiva, a vivência erótico-existencial do protagonista se torna a dos próprios espectadores, pois, na medida em que partilham do áudio da música de Roberto Carlos, incorporam teatralmente a alegria dionisíaca da “orgia”.

Seguindo, assim, todas essas “trilhas sonoras”, ou seja, os caminhos urdidos pelo som nestes espetáculos, confirma-se a tese de uma musicalidade que está para além de um recurso de fundo nas dramaturgias, concorrendo, na verdade, como fator fundamental para a construção das mesmas. Portanto, a música se torna elemento de elaboração estética, escrita em sentido amplo, espécie de fator-ritmo que contribui com vibrações outras para os sentidos, provocando (re)conexões entre o artista e o público.

O Castelo da Torre. Foto: Divulgação.
O Castelo da Torre. Foto: Divulgação.

O espectador que age

O palco e a plateia, o ator e o público, inseparáveis e ao mesmo tempo isolados, condicionantes da experiência teatral, que, ao longo dos tempos, geraram inúmeras maneiras de configurar esta relação. Nem todo público é o que sentado no conforto da luz apagada espera passivamente pelo final do espetáculo. Nem todo público apenas assiste. Muitos trabalhos apresentados no FIAC 2015 propuseram ao espectador um posicionamento não tradicional, muitas vezes, fora da cadeira, outras, dentro do palco.

Desdobrado em muitos outros, o público ganhou camadas, complexidade e (por que não?) dramaturgia própria diante de espetáculos que exigiam movimento do corpo, necessidade de fala e, enfim, ação. O limite entre o ator e o espectador foi algumas vezes tensionado e interessa a este texto expor um pouco dessas experiências, uma vez que propostas mostraram que esta ontológica relação não está superada em suas possibilidades.

Público reduzido e pequenas cenas com a plateia foram recorrentes nas apresentações, as escolhas que serão mencionadas aqui, no entanto, dizem respeito a outras abordagens fora desses outros caminhos comuns. Nas apresentações na rua, por exemplo, nos trabalhos que ficavam num ponto fixo, como Galeria Urbana Homo sem Cabeça (de Lucas Valentim, Lucas Moreira e Isabela Silveira, BA) e História sob Rocha (de Daniel Guerra, BA), era possível identificar algumas modalidades de público: 1) o que estava acompanhando o festival e, portanto, se deslocava até o local programado, como faria se fosse comprar um ingresso de peça para o teatro; 2) um espectador en passant, que via da cena os instantes da sua passagem – e este, além de ser elemento da “ambientação”, poderia ter vários instantes como espectador, pois, o “ir e vir” o fazia repassar algumas vezes frente ao ato; 3) e o que chamamos de “espectador em segundo plano”: o que assiste ao espectador de primeiro plano fazendo parte da cena, e o assiste a partir da sobreposição: a cena do público dentro da cena do ator. O ato de assistir ao primeiro público assistindo ao espetáculo. Dobras.

Na rua, estas camadas de público poderiam ser percebidas pela própria distância física entre um grupo de pessoas e outro. Um público que vê o outro, que por sua vez vê o outro e assim seguidamente, pois, dependendo da rua, outros públicos poderiam ainda ser visualizados, como, por exemplo, os moradores do local, que ficavam do alto dos prédios, nas janelas, vendo tudo a distância, do início ao fim, de cima para baixo, sem a exata dimensão do que se tratava; assim como os trabalhadores dos comércios; os frequentadores da praça; os motoristas dos carros e toda a população local que, nem estavam de passagem, nem eram um público espontâneo, que parou para ver; eles simplesmente estavam lá na hora e olhavam quando interessava. “Espectadores expandidos”.

Esta divisão de público foi criticamente abordada em Ruína de Anjos (A outra companhia, BA) quando o público do festival (que tinha ingresso) recebia uma pulseira VIP para colocar no pulso e, ao acompanhar os atores pelo bairro Politeama, em dois momentos a pulseira fez valer o privilégio que resguardava. Ao entrar num edifício de galerias, para passar pelo portão de grades, apenas “os VIPs” tinham autorização do segurança; o restante do público, que se juntou ao grupo durante a encenação (mais gente do que os que tinham pulseira), assistia do lado de fora. Numa cena posterior, em que há a simulação de um trio elétrico mambembe, os VIPs ficavam dentro da corda, os outros na “pipoca”. Após a percepção de que seria necessário limitar o número de espectadores que poderiam entrar na galeria, a dramaturgia toma esta condição como possibilidade de questionar as estruturas hierárquicas sofridas pelos públicos cotidianamente – do carnaval à igreja. “Você quer ganhar uma pulseirinha, irmão?” – dizia o personagem pastor de dentro da galeria para os que ficaram do outro lado. Sobre este público tematizado, que se torna personagem de si mesmo, trataremos a partir daqui.

Ainda no espetáculo Ruína de Anjos, o público era constantemente encaixado no seu papel de público cotidiano. O público que segue o trio, o público do pastor, o que assiste às brigas de rua, à malabarista do sinal, o próprio público do teatro; aqueles espectadores eram carregados de tipologias de públicos possíveis e os personagens conversavam com este personagem “o público” como uma alegoria incluída no texto. O público-personagem multiplica as camadas de recepção crítica quando faz de você um público que, cotidianamente, você não seria.

Em Orgia ou de como os corpos podem substituir as ideias (Teatro Kunyn, SP), o público passa por duas operações antagônicas. No primeiro momento, tratados como conhecidos íntimos do personagem principal, numa casa de bairro, todos os espectadores são recebidos como amigos. Tem vinho para brindar o encontro da amizade, pessoas do público fazem comida na cozinha, o personagem diz coisas como “lembra naquele dia, a gente dançando…”. Arrisca-se uma ficcionalização da intimidade que, no dia em que participamos, todos aceitaram, inclusive relatando histórias não reais com o personagem, isto porque a cena mantinha uma instância de improviso em que caberia ao público falar o que quisesse, mesmo memórias inventadas. No segundo momento, o público parte com o personagem rumo a outro país, vagando pelas ruas da cidade, até chegar ao Largo do Campo Grande. Este público antes amigo, agora com fones de ouvido, vira voyeur do protagonista, que toma muita distância dos espectadores, até quase sumir na perspectiva. Os diálogos ouvidos pelo fone têm um tom de clandestinidade, são pornográficos, obscenos, e fazem dos olhos do espectador uma câmera escondida. Não é possível ver detalhes dos rostos dos atores, e curiosamente, atrás desse público oficial voyeur, um outro público pergunta quem são as pessoas dos fones, e pouco distinguem a cena da vida normal do Largo. O público está mais visível que a cena.

Dentro do teatro, mesmo nas cadeiras, o público teve protagonismo em Hamlet – Processo de revelação (Coletivo Irmãos Guimarães, DF). Com a luz de plateia acesa, o espectador intervindo sempre que quisesse e respondendo às perguntas do ator sobre questões advindas da história shakespeariana, o espectador compartilha da execução/revelação da narrativa. De alguma maneira, o espectador tem também, caso o ator não se dedique a isto, o controle do tempo do espetáculo. No espetáculo de dança 6 modelos para jogar (de Alex Cassal e Dani Lima, RJ) com direção de Denise Stutz, o espectador é convocado para adentrar o palco, enquanto os bailarinos tocam, cantam e tomam cerveja na plateia. A parcela do público que senta no palco é assistida pela que permaneceu na plateia, a cartografia cênica é alterada por isso, e a fronteira palco/plateia é diluída, todo espaço é um só lugar de ver e fazer. Esta, então, parece ser a característica espacial com a transformação mais aguda apontada pelos trabalhos, embora aqui se mantenham os limites entre espectador e bailarinos.

Algo que História sob Rocha (de Daniel Guerra, BA) consegue transcender, aqui, retornando à cena de rua, o trabalho chamado pelos artistas de “acontecimento cênico”, cria um espaço de “convivência” em frente ao Elevador Lacerda. Muitos objetos espalhados por uma ampla área com o objetivo de interagir com eles e com a música manipulada ao vivo. Mal existe a categoria espectador com o passar das longas horas que o trabalho dura, todos os que desejam permanecer “adentram” o espaço de convivência, não se distingue artistas de espectadores, os demais são transeuntes. O trabalho tem duração de tempo de vida, não de apresentação cênica.

Não fosse Clean Room – 2nd Season (de Juan Dominguez, Espanha), seria o trabalho com a menor distância entre ator-espectador. O trabalho do artista espanhol não pode ser visto, pois, os únicos espectadores autorizados a participar já estavam envolvidos com o processo um mês antes de início do festival. Num jogo de coordenadas, estas pessoas dividiram uma casa (num endereço desconhecido) e seus afazeres por quase dois meses, com o tempo que se prolongou posteriormente ao término do festival. O que viviam ali só eles sabiam e viam. Para esta presença Juan Dominguez deu o nome de “espectator”. Palco e plateia no mesmo espaço, ator e espectador no mesmo corpo, não tem um olhar de fora, direcionado ao que se faz, mas há ação. A inspiração do artista vem dos reality shows, mas sem o “to show”, sem mostrar. Tem dramaturgia e tem reality, tem ação de pessoas atuando e se assistindo. O espectador passou para o outro lado, inverso aos personagens de Krum (companhia brasileira de teatro, PR).

Encerrando o festival, Krum provoca a plateia (tradicional de um teatro italiano) quando posiciona os personagens como espectadores passivos de si mesmos. Sentados em cadeiras de espera eles assistem ao tempo passar. O ventilador que gira sem força, a imobilidade das histórias de vida, a desistência. Uma fileira de cadeiras vazias está posicionada à frente das fileiras da plateia. Na última cena, todos se sentam e olham para o palco vazio, o palco-apartamento em que todos se encontravam sem sair do lugar. Sentar junto da plateia para assistir à própria vida é como renunciar. Os personagens sentam, olham para frente, sobra uma cadeira. Quem quer ser este espectador?

Orgia ou de como os corpos podem substituir as ideias. Foto: Divulgação.
Orgia ou de como os corpos podem substituir as ideias. Foto: Divulgação.

Para saber mais sobre o festival acesse:

http://www.fiacbahia.com.br/

Leia também na Questão de Crítica textos sobre peças que participaram do festival:

Caranguejo Overdrive, da Aquela Cia. de Teatro, RJ.

http://www.questaodecritica.com.br/2015/08/caranguejo-overdrive/

http://www.questaodecritica.com.br/2014/12/para-alem-do-caranguejo/

Krum, da companhia brasileira de teatro, PR.

http://www.questaodecritica.com.br/2015/08/krum/

http://www.questaodecritica.com.br/2015/08/krum-hebdomadario-do-processo/

 

Mariana Barcelos é atriz, teórica do teatro pela UNIRIO e graduanda de Ciências Sociais pela UFRJ.

Renan Ji é Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Colaborador regular da Revista Questão de Crítica e membro das comissões julgadoras dos Prêmios Questão de Crítica e Yan Michalski.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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