Por novos finais felizes

Crítica da peça O príncipe desencantado, da Bacana Produções Artísticas, de São Paulo

18 de outubro de 2021 Críticas

Em 2017, a exposição Queermuseu foi censurada em Porto Alegre por denúncias de “pedofilia” e “uso inapropriado de imagens de menores”. Dentre as obras acusadas de conteúdo impróprio estavam as telas de Bia Leite da série Criança Viada. As pinturas foram inspiradas no Tumblr de mesmo nome que reunia, desde 2014, fotos enviadas por pessoas LGBTQIA+ quando crianças e que continham indícios de “viadagem”. No centro de toda a discussão que culminou na censura à mostra estava o pensamento de que não se deve associar crianças a discussões de gênero e sexualidade. Mas como provam as fotos do Tumblr em questão (enviadas pelos próprios fotografados, já adultos), todo LGBTQIA+ foi criança um dia, e parte deste grupo se reconhece como o que se convencionou chamar popularmente de criança viada.

Originalmente usados de forma pejorativa, termos como “viado”, “bicha”, “cacura” e outros vêm sendo apropriados e ressignificados nos últimos tempos por membros da comunidade LGBTQIA+. “Ressignificar”, inclusive, tem sido uma palavra-chave para muitos dos procedimentos utilizados por grupos minorizados em busca de visibilidade, aceitação e ocupação de espaços. “Ressignificar” também parece ser a palavra que norteia a criação do espetáculo infantojuvenil O príncipe desencantado, da Bacana Produções Artísticas, de São Paulo. Tendo sua estreia acontecido, coincidentemente, no mesmo ano em que Queermuseu era censurada, a peça retornou no mês de junho (mês da visibilidade LGBTQIA+) de 2021 para uma temporada online, com pequenas adaptações para tempos de pandemia. Livremente inspirada no romance inglês Koning en Koning (Rei & Rei), de Linda de Haan e Stern Nijland, e em experiências pessoais do autor Rodrigo Alfer (que também dirige a obra), a trama é conduzida pelos atores Davi Novaes, Cicero de Andrade, Manu Littiéry, Lindsay Lohanne, Marcella Piccin, Silvano Vieira e Vanessa Rodrigues e pelos músicos Clara Dum, Diana Bueno e Diego Albuquerque.

O espetáculo narra a história do Príncipe Vick, que tem que lidar com as pressões de sua mãe para suceder ao trono após o desaparecimento do rei. Para isso, a rainha pretende promover um baile onde o príncipe encontrará a candidata ideal para estar ao seu lado à frente do reino. A princípio, o espetáculo poderia apenas inverter os papéis de gênero comuns nos contos de fadas, propondo o deslocamento da centralidade da trama de uma princesa para um príncipe. O que já é por si só um grande feito em uma sociedade que ainda divide crianças entre rosa e azul e entende contos de fadas como histórias indicadas para meninas. Mas a trama não gira em torno disso, e sim do fato de que Vick não tem interesse de encontrar uma esposa, pois gosta de rapazes! A partir desta premissa, O príncipe desencantado começa a brincar com uma série de elementos comuns aos contos de fadas. Está tudo lá: o baile, os animais companheiros, a maçã envenenada, a fada madrinha… Grande parte dos clichês do gênero são colocados em cena, mas tudo um pouco fora de lugar, posto para ser visto a partir de outros ângulos.

Uma das coisas que mais chama atenção no musical é a postura do próprio Vick diante de sua homossexualidade. Em nenhum momento o personagem de Davi Novaes transparece ter questões com sua própria sexualidade. Os conflitos sobre sair do armário existem, mas, neste caso, não passam pelo lugar do homossexual que precisa se aceitar, ou que tenta esconder da sociedade sua identidade secreta, tal qual um super-herói (este, sim, um gênero tido como próprio para meninos). Pelo contrário, durante toda a primeira parte do espetáculo, de forma bem-humorada, diversas canções se utilizam de rimas e recursos linguísticos para que o público complete mentalmente as frustradas tentativas do príncipe de concluir suas frases, sempre interrompidas, e contar para a rainha que ele é gay. Ou viado mesmo. Esse deslocamento da velha questão sobre sair do armário expõe um conflito geracional, mostrando que as novas gerações lidam com discussões de gênero e sexualidade de forma um tanto quanto mais natural do que suas antecessoras, resultado de uma série de lutas travadas há décadas pelas pessoas LGBTQIA+.

Foto: divulgação.
Foto: divulgação.

Mesmo que lidando com um assunto ainda visto como tabu por uma parcela expressiva da população brasileira, o espetáculo não se limita ao conflito central e explora diversas camadas vizinhas ao seu tema. Ainda que não se aprofunde em todas as portas que abre, o texto passeia por questões como travestilidade, novas composições familiares e feminismo, entre outras. Mesmo que pintado com as tintas de militância que o espetáculo já carrega por si só, a direção de Rodrigo Alfer faz com que todos esses assuntos surjam imbuídos de um encantamento que não nos deixa esquecer que, sim, estamos diante de um conto de fadas. Mas um conto de fadas que não parou no tempo e responde a questões contemporâneas, algo que já vem sendo experimentado em novas apostas do gênero, seja no teatro, no cinema ou na literatura. Essa atualização é percebida mais literalmente nas escolhas dos figurinos assinados por Luma Yoshioka e do cenário do próprio Alfer. Luma opta por não distanciar temporalmente o espectador da trama, e ao invés de conduzi-lo a um universo de vestidos suntuosos e fardas, utiliza bermudas, camisas e outras roupas comuns sem, no entanto, perder de vista este universo de realeza medieval trazido na escolha das cores e tecidos. Ao assinar a cenografia minimalista, o autor e diretor adensa as pesquisas, não apenas nos conduzindo a uma ambientação contemporânea formada por luzes como, ainda, ressignificando (novamente!) um símbolo de dor. Manipuladas pelo elenco, seis lâmpadas fluorescentes deslizam pelo palco. Num delicado casamento entre cenografia e iluminação, o objeto que em 2010 foi usado para agredir um jovem gay em São Paulo, aqui cria climas, efeitos e volumes para embalar o romance de um rapaz que contraria as convenções e luta pelo direito à felicidade.

Mais importante do que a criação de personagens gays, é fundamental a forma como estes são representados. Falando em primeira pessoa, como alguém que já foi uma criança viada um dia, devo dizer que cresci me vendo nas telas e palcos quase que exclusivamente em duas vertentes: a de personagens cômicos e caricatos ou a de histórias que tratavam de homofobia ou AIDS e terminavam de forma trágica. Estes últimos, é claro, são assuntos pertinentes e necessários, porém, nossa existência não pode – e não deve! – se limitar às mesmas narrativas. Num cenário em que as portas do armário muitas vezes são trancadas à chave pelo lado de fora por parentes e familiares, torna-se cada vez mais necessário o debate, e que ele já comece nas faixas etárias mais baixas. Pensando ainda nas questões educativas do teatro infantojuvenil, a obra pode ser uma oportunidade para que famílias deem um primeiro passo no diálogo sobre o tema. É muito bem-vindo um conto de fadas em que um príncipe saia do lugar de inexpressivo e salvador da donzela indefesa (um dos principais clichês do gênero que vem sendo repensado pelo alto teor de machismo) e assuma o protagonismo da própria história. Sem contar que, para as crianças viadas de hoje, é um grande avanço poder enxergar, diferente daquelas da minha geração, que é possível um jovem gay ocupar um espaço de liderança sem que para isso, precise se anular, se esconder ou abrir mão do seu final feliz.

Leandro Fazolla é ator, produtor teatral e crítico de arte. Doutorando em Artes Cênicas pela Unirio. Pós-graduado em História do Teatro Moderno e Ocidental (CAL). Mestre em Arte e Cultura Contemporânea. Bacharel em História da Arte (UERJ). Diretor, produtor e membro fundador da Cia. Cerne. Idealizador e diretor do Festival Cenáculo de Teatro. Articulador da Rede Baixada em Cena, vencedora do Prêmio Shell 2017 na Categoria Inovação, e da Rede Frente Teatro RJ. Criador o projeto “Cadernos Cênicos”, pelo qual comenta espetáculos teatrais em seu canal no YouTube.

Vol. XIII nº 72, setembro a novembro de 2021

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