Histórias do corpo. Entrevista com Marilza Oliveira

20 de dezembro de 2020 Conversas

A série de entrevistas Histórias do Corpo é um projeto de conversas sobre histórias do corpo no Brasil, assim no plural, porque são muitas as suas versões, e muitos também os caminhos para onde apontam. Sem perder de vista as contaminações de outras culturas, a colonização, as insurgências e lutas nelas implicadas, as histórias são contadas por artistas, pesquisadores, e artistas-pesquisadores, porém sem uma preocupação com a história cronológica de causa e efeito, no sentido do que vem antes e o que deveria vir depois. Buscamos ouvir algumas experiências com certo recuo no tempo, para deslocar e colocar em perspectiva acontecimentos do passado que ressoam no presente.

O projeto é concebido por Ivana Menna Barreto em parceria com Daniele Avila Small para a Revista Questão de Crítica.

 

Marilza, obrigada pela disponibilidade em dar esta entrevista. Vamos conversar um pouco sobre a sua pesquisa teórica e prática das danças afro-brasileiras. O samba se originou em comunidades afrodescendentes, primeiro num contexto rural na Bahia, no Recôncavo, no séc. XIX, e depois no Rio de Janeiro, num contexto urbano, mantendo uma característica comunitária. Tia Ciata, por exemplo, foi uma das “tias” baianas que saíram de Salvador para o Rio fugindo das perseguições policiais ao Candomblé, para se instalarem na Praça Onze, na Cidade Nova. A casa de Tia Ciata foi celeiro de grandes compositores e, ao mesmo tempo, lugar de divulgação de sambas novos. A história do samba é uma história de resistência comunitária?

Agradeço imensamente o convite, considerando a pertinência da criação de espaços que nos possibilitem refletir e colaborar com temas tão relevantes sobre as influências artístico-culturais afrodiaspóricas e seus contextos, em território brasileiro.

Respondendo à sua pergunta, sim. Ainda considero a história do samba como uma manifestação de resistência comunitária. Digo isto, por saber que no Recôncavo Baiano esta expressão artística se originou e, mesmo adquirindo novas paisagens e contornos em outros territórios, sobrevive e traz o lugar da tradição da roda como um espaço que valoriza a coletividade. E pensar coletividade, neste âmbito, é reconhecer um dos princípios básicos da tradição africana dos povos, principalmente da região subsaariana.

De maneira geral, as pesquisas indicam que se presenciou em algumas regiões de Angola uma dança que se formava em roda, com muitos/as participantes, mas que só se dirigia ao centro para executar passos de dança, com uma única pessoa que, após terminar sua apresentação, escolhia outra que estava na roda para dar uma umbigada, indicando que deveria ir ao centro dançar. Este movimento se chamava semba e, acredita-se, desta forma o samba se originou.

Considero, a partir de algumas leituras, que quando o samba se desenvolveu no Rio de Janeiro, exportado da Bahia com a participação de Tia Ciata e outras mulheres, traduzia uma expressão musical coletiva e espontânea. Por volta de 1930, os debates sobre a sua origem se intensificaram no sentido de atestar se havia se originado no morro ou se era patrimônio do Rio de Janeiro, de exclusividade carioca, já que estar na zona urbana, conferia a quem olhasse para o morro a possibilidade de apropriação no sentido da busca e direcionamento para outros meios, em especial, da indústria cultural e as influências estrangeiras.

As músicas começaram a ser direcionadas para o rádio e, três décadas depois, para a televisão, sendo distanciadas da sua origem social e passando pelo mecanismo de dominação cultural que gerou, segundo estudiosos no assunto como, José Ramos Tinhorão e Muniz Sodré, o fenômeno da expropriação do samba pela classe média.

Importante ressaltar a importância do negro na formação do samba, que representa uma resistência cultural ao mercado de produção dominante e comercialização do samba na sociedade carioca no início do século XX, mesmo não estando mais reunidos num espaço social próprio.

Ainda refletindo sobre o aspecto da expropriação cultural dos saberes e fazeres da população negra, cabe comentar sobre a condição das Escolas de Samba, acompanhadas dos desfiles carnavalescos que confirmam a ideia de que o processo de branqueamento e da apropriação cultural em torno desta população é permanente, mesmo que reconheçamos a resiliência da negritude, quando lançamos o olhar para as favelas.

 

Você estudou o trabalho e as práticas de ensino da bailarina e coreógrafa Mercedes Baptista. O encontro entre ela e o ator e diretor Abdias do Nascimento, no Teatro Experimental Negro (1944), foi uma aliança possível naquele momento para a dança negra resistir? Que mediações e trocas aconteciam no TEN, entre as diferentes esferas artísticas e políticas, para as ações e o pensamento do movimento negro encontrarem seus espaços?

Compreendo que a dança negra, no Brasil, existe desde que os negros escravizados aqui chegaram.

No período colonial, apesar da repressão sofrida por parte da igreja e do Estado, a comunidade afrodiaspórica expressava, através da dança, suas memórias ancestrais e de pertencimento. Assim, considero que Mercedes Baptista, mulher negra, nascida em uma família humilde do interior do Rio de Janeiro, vítima da política do subemprego, encontrou na dança a sua forma de resistir e existir.

Por isso, vou dar um passo atrás para rememorar que, por volta dos anos de 1920/1930, os intelectuais brasileiros apontaram um novo modo de pensar a sociedade. A diversidade étnico-cultural deixou de ser considerada como um problema para a construção da identidade nacional e, na semana de Arte Moderna, em 1922, a reunião desses intelectuais e artistas, engajados neste movimento, contribuiu para que esta identidade nacional se firmasse na união de diferentes culturas. Neste sentido, o movimento artístico modernista também buscou expressar o nacionalismo brasileiro com base no olhar crítico sobre o nosso passado histórico-cultural, reconhecendo e valorizando as nossas riquezas, incluindo nas pautas de discussões temas referentes às realidades das culturas subalternizadas que impulsionaram a inovação no campo da arte e da cultura, englobando as manifestações populares indígenas e africanas na formação de uma cultura moderna brasileira, integrando-as ao projeto de um estado nacional.

Foi neste curso, tratando especificamente de pesquisas relacionadas à criação de concepções em dança, que atendessem ao panorama artístico-cultural proposto, que o surgimento da dança afro, como uma dança moderna brasileira, se deu. Não era a dança que acontecia nos rituais religiosos e nas festas populares, mas a que se elaborou para ser projetada no palco, numa relação com a produção radiofônica e outras esferas artísticas. Por isso, tornou-se relevante organizar modos de releitura e ressignificação das manifestações oriundas das culturas indígenas e afro-brasileiras que satisfizessem a estes objetivos.

A Escola de Danças Clássicas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, oficializada como a primeira do país, teve Eros Volúsia no corpo de baile e, mais tarde, como referência nacional da dança, por propor a união do balé clássico aos ritmos brasileiros. Além da formação clássica, Eros era uma mulher branca que pesquisava as danças populares provenientes da cultura indígena, negra e, claro, europeia. Como o balé era percebido como arte erudita, via-se na função de transportar com seu primor as danças populares, para serem apresentadas em palcos majestosos, como o Theatro Municipal. Por isso, sua dança só foi atestada porque a estilização do popular era evidente e o projeto nacionalista que percebia na arte erudita um lugar de superioridade a colocava como representante da dança, pelo conhecimento e domínios técnicos que não deixavam brechas para que o estilo adotado fosse banalizado.

Eros Volúsia também atuou como diretora do curso de ballet do Serviço Nacional do Teatro, órgão público que tinha como finalidade incentivar e difundir a cultura nacional, onde Mercedes Baptista foi aceita para ingressar no curso de balé clássico e dança folclórica. Não durou muito para que subisse ao palco se apresentando, atestando sua aptidão para a dança e, mesmo fazendo papel de serviçal, o que era de se esperar, foi muito aplaudida. Mesmo assim, era recorrente a desvalorização e discriminação que Mercedes sofria por parte de Eros, ficando evidente que a participação do elenco negro se limitava a tocar atabaques e fazer papel de serviçal. Ressalto aqui que, nos mais variados espaços culturais que a elite frenquentava, as apresentações artísticas com temas relacionados à africanidade eram muito solicitadas e admiradas; o problema é que a presença do corpo negro nestes ambientes era boicotada, sendo negada a sua atuação.

Com este relato é possível perceber que, enquanto artista branca, Eros, mesmo se utilizando da riqueza da cultura negra para possibilitar as suas danças, sempre se colocava, nas suas montagens coreográficas, no lugar da superioridade, subalternizando o corpo negro.

Por conta desta problemática, Mercedes foi em busca de outra escola onde pudesse dar continuidade à sua formação profissional, tendo a oportunidade de estudar na Escola de Danças do Theatro Municipal e sendo escolhida, em uma das montagens, para fazer a personagem principal no “Grande Espetáculo de Bailados”. Nessa ocasião, Abdias do Nascimento se fazia presente na plateia, presumo, por já acompanhar a sua trajetória. Pouco tempo depois aconteceu o concurso público para o ingresso de estudantes do curso de danças no Corpo de Baile do Theatro Municipal, onde ela recebeu aprovação. Infelizmente, mais uma vez, Mercedes se sentiu excluída das coreografias.

Vou destacar aqui a importância das mediações e trocas que aconteciam, estimuladas e promovidas pelo Teatro Experimental Negro – TEN, entre as diferentes esferas artísticas e políticas, especialmente no que dizia respeito à dança, com recorte na trajetória de Mercedes Baptista, para que as ações e o pensamento do movimento negro encontrassem seus espaços e mobilizassem outros territórios, em prol de uma luta coletiva que garantisse direitos e oportunidades à população negra brasileira.

Foi neste mesmo período que Mercedes Baptista participou do concurso promovido pelo Teatro Experimental do Negro – TEN, sendo eleita a “Rainha das Mulatas”. Importante esclarecer que o objetivo desse concurso era ampliar a autoestima da mulher negra brasileira, promovendo sua beleza. Naquele momento se iniciava a relação de amizade entre Mercedes Baptista e Abdias do Nascimento, fundador do TEN, que a convidou a integrar a entidade como bailarina, coreógrafa e colaboradora. Começa para Mercedes, então, sua luta pela imposição do negro como bailarino profissional e seu trabalho de valorização da dança afro-brasileira.

O Teatro Experimental do Negro, a partir de suas perspectivas de valorização e reconhecimento da identidade social e cultural brasileira, se interessava em combater o racismo através do movimento de educação, arte e cultura, promovendo publicamente os valores dos afrodescendentes. Propunha ações articuladas, que pudessem conquistar o apoio de artistas e intelectuais, formando e colocando no mercado artistas negros/as.

Foi assim com Mercedes Baptista, que, a partir desta iniciativa, começou a conquistar espaços para a sua atuação como dançarina, professora e coreógrafa.

Aconteceu que, no 1º Congresso do Negro Brasileiro, promovido pelo TEN, com foco em discussões e estudos concernentes às questões da população negra, foram oferecidas atividades que garantissem a troca de conhecimentos entre a cultura negra e a norte-americana, culminando com a presença de profissionais e pesquisadores de diversas áreas, dentre estes, Katherine Dunham, antropóloga, artista da dança e ativista social, defensora dos direitos do povo negro que realizou, neste evento, diversas ações. Uma delas foi ministrar aulas para dançarinos/as, com o intuito de oferecer uma bolsa de estudos, possibilitando a atuação em seu grupo, em Nova York. Mercedes, por estar envolvida com o movimento negro e contando com o total apoio de Abdias do Nascimento, foi a escolhida. Quando retornou ao Brasil, compreendendo que o trabalho a ser desenvolvido não deveria ter nenhuma relação com o balé clássico, diante das invisibilizações que sofreu, Mercedes buscou possibilidades que apontassem para a descoberta de um estilo que considerasse a sua afrodescedência. Através do seu encontro com Joãozinho da Goméia, que muito popularizou a religião do candomblé, apresentando os orixás em espaços públicos, Mercedes, mesmo não sendo adepta da religião, se aproximou, percebendo a possibilidade de trabalhar com a dança dos orixás. E assim foi; desenvolveu sua pesquisa a partir do que conheceu sobre os rituais do candomblé, ouvindo o ritmo e o movimento das divindades africanas que, combinados aos conhecimentos da dança moderna, adquiridos na sua trajetória, fizeram surgir a dança que ela denominou de afro-brasileira.

A crença na força da cultura afrodescendente fez com que Mercedes se tornasse expoente para que muitos dos seus adeptos dessem continuidade ao seu fazer artístico, disseminando o seu estilo, que esteve presente em diversos espaços artístico-culturais. O seu exemplo de luta, resistência, talento e determinação contra uma sociedade racista e excludente lhe rendeu, por meio da dança, o reconhecimento pelo seu trabalho, se tornando modelo para que outros profissionais engajados com as questões referentes à cultura negra, no âmbito da dança afro, propagassem os seus ensinamentos.

 

Mercedes Baptista teve essa experiência importante com a Companhia de Katherine Dunham e, fora do Brasil, conheceu as danças haitianas e outras expressões das diásporas negras. É importante (ainda hoje) sair do Brasil para criar outros vínculos e ter mais nítida a consciência da própria negritude, e da segregação racial, muito arraigada nas instituições brasileiras? Por outro lado, observando que Mercedes Baptista foi coreógrafa com atuação no cinema, em escolas de samba, no teatro e na televisão, podemos dizer que houve maior abertura para seu trabalho fora das instituições oficiais de dança?

Certamente, quando um/uma artista das danças afrodiaspóricas sai do Brasil para viver da sua arte, na maioria dos casos, é para atuar no mercado hoteleiro, ou em companhias de dança que buscam folclorizar e estereotipar a nossa cultura, transformando-a em algo exótico. Percebo este movimento aqui em Salvador, que, mesmo sendo espaço de referência do fomento às danças afro-brasileiras, não possibilita que seus/suas artistas, por conta da desvalorização destas danças e por falta de políticas públicas, consigam sobreviver profissionalmente, tendo que partir em busca de possibilidades outras que garantam a sua continuidade nesta área.

Considero muito complexo falar sobre a consciência da negritude de determinado sujeito, pois compreendo a violência e opressão com que o racismo estrutural subalterniza e exclui cotidianamente a população negra, fazendo com que muitos não se reconheçam como tal. Além disto, a história contada sobre nossos corpos, a partir da perspectiva da branquitude, tenta apagar perversamente todas as nossas lutas, conquistas, resistências, e a riqueza do nosso legado sócio-histórico-cultural.

Conheço artistas da dança negra que tiveram a oportunidade de viajar para outros países e que conseguiram afirmar suas identidades negras, prezando pela manutenção e respeito em relação à sua cultura. Já outros/as, como a própria Mercedes Baptista, tiveram que sair do seu país, para que percebessem a grandiosidade do patrimônio africano em solo brasileiro, e retornassem objetivando dedicar sua atividade profissional a este campo.

Compreendo que a notoriedade das concepções artísticas de Mercedes Baptista estavam diretamente ligadas ao apoio e encorajamento do TEN, que muito colaborou no sentido de conscientizá-la acerca de sua negritude e possibilitou que ela percebesse a potência das suas proposições artísticas, nunca valorizadas pelas instituições oficiais de dança, justamente por se tratar de uma estética oriunda da cultura negra, mas que garantiu sua inserção em outros espaços, onde sua arte pudesse ser disseminada.

 

O surgimento dos blocos afro em Salvador, a partir dos anos 1970, nasce de uma relação com a forte atuação política dos movimentos negros na cidade. Que grupos surgiram neste período? Havia neles um vínculo com os princípios religiosos do candomblé, numa aproximação entre ancestralidade e urgências sociais, que ecoa ainda hoje?

O surgimento do movimento negro de deu por conta da repressão sofrida pela população negra, excluída de oportunidades, estando posicionada em situação de vulnerabilidade social, gerada pelo racismo. Nesta direção, o movimento negro buscou estratégias de lutas antirrascistas, na promoção da integração da comunidade negra na sociedade brasileira. Dentre as tantas ações propostas, a inclusão de elementos da musicalidade, da dança com suas expressões corporais, indumentária, cabelos dread ou black power, com a finalidade de dar visibilidade aos seus corpos a partir de elementos estéticos e de elevação da autoestima.

Neste período, aqui em Salvador surgiram diversos blocos afros. Dentre eles vou citar os principais: o primeiro foi o Ilê Aiyê, que surgiu em 1972, no bairro da Liberdade, no Curuzu, a partir da decisão de dois amigos de criar um bloco formado só com negros/as, onde eles fossem os protagonistas, já que naquela época os blocos eram formados por brancos e, quando o negro participava, era de forma subserviente. Seguidamente, outros blocos foram formados, como o Malê Debalê e o Olodum, ambos em 1979; e em 1981, o Muzenza. Certamente estes blocos têm vínculos com o candomblé, herança cultural, religiosa e filosófica de matriz africana que, pela ancestralidade, (re)existe.

Importante fazer referência ao afoxé Filhos de Gandhy, que este ano completou 71 anos de existência e resistência e ao afoxé Filhas de Gandhy, que foi fundado 30 anos depois, e que trazem em si suas particularidades.

 

Marilza, você já trabalhou com diversos artistas da música e das artes cênicas em Salvador e atualmente tem desenvolvido um ensino sobre as danças dos orixás a partir de seus processos como artista. Esse conhecimento das ancestralidades, que está em cada um dos orixás e em sua ecologia de saberes, independentemente da devoção religiosa, pode ser vivenciado corporalmente para experimentar as próprias limitações e expansões, e para inventar outras formas de mover?

Com certeza! Reinventar outras formas de mover, que desconsiderem e descolonizem os conhecimentos na forma de conceber dança. Por isso, as Danças das Poéticas dos Orixás, como um princípio metodológico e processo criativo, traduzido fora do âmbito da religião do candomblé. Além de motivar o reconhecimento do mito como ponte para a afirmação da ancestralidade, considerando o seu lugar de tradição, nos proporciona experimentar a atualização do rito, que desponta como ação política nos espaços considerados de hierarquia e poder, não abertos a uma dança afro-brasileira.

Existem muitas formas de abordar o mito. A que proponho faz parte de uma interpretação e se opõe, no âmbito da dança afro, à representação dos padrões de movimento da dança de orixá. Traduzir o mito nos provoca a repensar o lugar da natureza nos aspectos históricos, sociais, políticos e ecológicos quando nos chama à reflexão sobre a situação do descaso com o meio ambiente, em prol de um consumo desregrado fundado no capitalismo, que gera uma irresponsabilidade social. Pelas Danças das Poéticas dos Orixás, promove-se formas de repensar o meio ambiente como espaço de interação, cuidado e compreensão no incentivo para a sustentabilidade do planeta e das relações humanas. Nessa esfera o mito é transformado no grande defensor das questões ecológicas e se incumbe de expressar pela dança o cuidado e respeito pela natureza, buscando uma forma de relação que seja centrada não no poder, no mercado, nem na mercadoria, mas na vida, na sua múltipla manifestação e diversidade. Dessa convergência aflora um tipo de conhecimento que redescobre na dança afro-brasileira formas amorosas de aprender e ensinar. Pelo respeito e reconhecimento à história da sua construção, escapa dos mecanismos de segregação e acolhe as diferenças. É a dança da ancestralidade para a humanidade.

 

Você foi a primeira professora negra concursada a entrar para a Escola de Dança da UFBA, em 2016, para atuar principalmente na área de danças afro-brasileiras. O que isso representou e representa, tendo em vista a cidade de Salvador e a história da Escola; e ainda, como você se sente nesse lugar institucional?

Sem dúvida, o concurso promovido pela Escola de Dança da UFBA marcou um momento histórico naquele espaço, onde a dança de base europeia sempre foi privilegiada. Foram dois concursos consecutivos. O primeiro para processos criativos, com a aprovação do artista e professor Edu O, pessoa com deficiência e, o seguinte, com a minha aprovação. Mulher negra, nascida na ilha de Itaparica, filha de Elzira Oliveira, dona de casa e lavadeira de ganho e Manuel Nascimento, eletricista, que partiram cedo para o Orum, no período da minha adolescência. Candomblecista, filha de Oyá com Ogum, sempre estudei em escola pública, por isso, considero o meu ingresso na Escola de Dança como o resultado de lutas que antecederam a minha.

Entendo que a entrada destes corpos fora do padrão do pensamento hegemônico, tão fortemente arraigado na nossa sociedade, traz a questão da representatividade e da diversidade, tão importante para quem não se vê representado nestes espaços. O nosso ingresso aponta muitos desafios, mas com o número expressivo de estudantes afrodescendentes oportunizados, especialmente, pelas políticas educativas afirmativas, me sinto fortalecida e dando continuidade à luta, para que mais docentes sejam incluídos e que a própria universidade perceba que não basta só representatividade, mas proporcionalidade. Este lugar não é somente meu, mas resultado de uma luta histórica – portanto, de toda comunidade negra que luta por uma sociedade antirrascista e anticapacitista.

Ubuntu!

Referências

SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. 2ª ed., Rio de Janeiro, Mauad, 1998.

TINHORÃO, José R. Samba: um tema em debate. Rio de Janeiro, Saga, 1966

 

Marilza Oliveira Bailarina, Mestra e Doutoranda em Dança e Especialista em Estudos Contemporâneos em Dança pelo Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia Licenciada e Bacharel em dança pela UFBA. Atua na área de conhecimento referente aos Estudos do Corpo com ênfase em Danças Populares, Indígenas e Afro-Brasileiras. Integrante fundadora do Grupo Gira: Grupo de Pesquisa em Culturas Indígenas, repertórios Afro-brasileiros e Populares (Escola de Dança da UFBA/CNPq). Participa do Grupo de pesquisa Rede-Africanidades (CNPq), da Linha de Pesquisa Cultura e Conhecimento do DMMDC- Doutorado Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento, sediado na UFBA.

Ivana Menna Barreto é criadora, professora e pesquisadora em dança e performance. fundadora, junto a Fred Pinheiro, da Cia. Movimento e Luz (1993), na qual dirigiu e atuou em colaboração com artistas convidados, em espetáculos apresentados no Rio de Janeiro e em diversas cidades do Brasil. Seus últimos projetos artísticos, “sem o que você não pode viver?”(2011), “meio sem fim”(2013), “Agora” (2015) e “Lugar inventado” (2019) buscam provocar conversas visuais, textuais e sonoras entre artistas e sociedade, durante os processos criativos. Publicou vários artigos e ensaios críticos, e o livro Autoria em rede: modos de produção e implicações políticas (Editora 7Letras, 2017).

Foto em destaque: Adeloya Magnoni.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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