Histórias do corpo. Entrevista com João Carlos Ramos

13 de dezembro de 2020 Conversas

A série de entrevistas Histórias do Corpo é um projeto de conversas sobre histórias do corpo no Brasil, assim no plural, porque são muitas as suas versões, e muitos também os caminhos para onde apontam. Sem perder de vista as contaminações de outras culturas, a colonização, as insurgências e lutas nelas implicadas, as histórias são contadas por artistas, pesquisadores, e artistas-pesquisadores, porém sem uma preocupação com a história cronológica de causa e efeito, no sentido do que vem antes e o que deveria vir depois. Buscamos ouvir algumas experiências com certo recuo no tempo, para deslocar e colocar em perspectiva acontecimentos do passado que ressoam no presente.

O projeto é concebido por Ivana Menna Barreto em parceria com Daniele Avila Small para a Revista Questão de Crítica.

 

João, é muito bom poder conversar com você, obrigada pela participação neste projeto. Você tem uma pesquisa já há alguns anos sobre o samba de gafieira. No Rio de Janeiro o samba originou-se na Cidade Nova, no Centro, com a vinda de Salvador de baianas como Tia Tereza e Tia Ciata, entre outras, que trouxeram o samba de roda e fizeram de suas casas lugares de uma convivência comunitária e de resistência cultural. Por outro lado, o samba de gafieira tem na Praça Tiradentes sua referência, ainda que exista em tantos bailes pela cidade, sobretudo nos subúrbios. Qual a diferença entre esse samba que se desenvolveu no Rio, originado nas casas das baianas, depois nos morros; e o samba de gafieira?

Na verdade, meu trabalho não tem sido vinculado a uma necessidade teórica. Eu não tive um papel de criador dentro desse contexto do samba de gafieira propriamente. Sou um coreógrafo que foi fazendo e desenvolvendo um trabalho com o samba-dança, base dos espetáculos da Cia Aérea de Dança. O samba e as danças de gafieira auxiliaram esse trabalho, está tudo no mesmo caldeirão. Claro que nós desenvolvemos muita coisa a partir dessas aulas, mas o que eu trouxe foi uma estrutura coreográfica, que passa por uma formação autodidata. Fiz aulas com várias pessoas, a partir do prêmio da 1ª Mostra Novos Coreógrafos promovida pelo RioArte em 1984. Tinha esse desejo de trabalhar com coreografia.

Quando a gente fala de samba, há muitos universos. O samba de gafieira está ligado à dança de salão. Há o samba de roda, o samba de quadra, das escolas, o samba de gafieira. As escolas dominaram o carnaval, os desfiles passaram a ser a grande atração, à frente dos ranchos e blocos de rua. A gafieira fica nos salões, mais relacionada com os casais, que até em algumas escolas saem como destaques solistas. Essa participação maior de casais de samba de gafieira nas escolas vem mais a partir dos anos 1990.

O que me inspirou a desenvolver a linguagem do samba-dança foi uma ala da Vila Isabel chamada “Esnoba Samba”, por volta do carnaval de 1990. Eu estava na Avenida e queria ver a Vila entrar, então vi uma ala de uns vinte a trinta componentes entrando na avenida e fazendo variações maravilhosas. Eles faziam samba, era uma ala de “passo marcado”, como eles chamam. Cheguei em casa e fiquei treinando os passos dos quais eu me lembrava, e foi aí que começou meu trabalho. A partir daí comecei a trabalhar com os bailarinos em cima do disco “Gafieira e coisa e tal”, do Maestro Paulo Moura, que deu início a várias coreografias, inclusive Fibra, que até hoje nós dançamos.

Evidentemente eu não convivi com a Praça Tiradentes nos primórdios…  convivi na época mais recente, digamos assim, com a Estudantina, o Bar das Putas. Essa área era um centro onde chegavam e de onde partiam vários ônibus, para vários pontos da cidade, era um lugar onde as pessoas se encontravam para dançar, vinham para o horário do baile na gafieira. Para esse baile vinham pessoas de toda a cidade. Agora, depois das obras dos últimos anos no centro, os pontos de ônibus foram remanejados, o movimento mudou.

Além do samba, os subúrbios e morros cariocas também são palco de muitas danças de origem em culturas afro-brasileiras, entre elas o jongo, e os bailes charme, que acontecem desde os anos 1980. Através dos seus percursos pela cidade você poderia falar desses lugares, de uma geografia carioca a partir desses ritmos e danças?

Quando eu tinha 16 anos, morava no Cachambi e, se não tinha nenhum baile charme interessante nos subúrbios de Cascadura, por exemplo, o “Magnatas” no Rocha, eu ia à Estudantina. Minha época já é uma época pós soul music, era a época da discotheque, um baile que a gente não chamava de charme – embora tivesse as características, chamávamos de balanço.

Costumava-se ir a bailes em Riachuelo, Méier, Engenho de Dentro, Bangu, Madureira, Campinho, eram muitos bailes em clubes, e uma ou outra casa noturna de dança da zona norte. Era essa onda tipo charme, black music, teve um impacto forte do swing, o que a gente curtia era essa música americana mesmo, nada a ver com samba ou gafieira naquela época. Ainda não tínhamos (o grupo de adolescentes que me acompanhava) nenhuma paixão pelo samba, estávamos mais familiarizados com a forma de dançar dos negros americanos. Então quando eu fui dançar no ambiente de academia de dança, o que mais se aproximava era a jazz dance americana.

Assisti, no início dos anos 1980, à estreia de Vacilou, dançou da Carlota Portela e achei genial, porque se identificava com o estímulo que eu tinha para dançar, de movimentos que criavam uma “onda” com o corpo: ondulações, ritmo. Para mim não se tratava de, a partir daquele momento, fazer aula de jazz, mas havia uma identificação, achava bacana. Acho que essa identificação também se conecta com uma ancestralidade corporal negra. A verdade é que, se pensarmos num tempo mais recente, o funk carioca tem também essa familiaridade entre a música americana e suas raízes do samba. É uma adaptação que a própria diáspora negra vai produzindo.

Se pensarmos nos bairros da cidade, na circulação no centro principalmente, há lugares onde as pessoas se encontram. A Lapa é um lugar assim, fez alguns encontros da zona sul com a zona norte, por exemplo. Dessa circulação resultaram algumas coisas, essa visibilidade maior também para danças populares, como o jongo, praticado pelo grupo do mestre Darci nos anos 1980, ele lutou muito pelo reconhecimento dessa dança, sua visibilidade. Outras expressões populares como maracatu, também são apresentadas muitas vezes nos Arcos da Lapa e em outras áreas dessa região, e a partir de exibições que se faz ali, algumas danças se tornam mais visíveis.

João, o samba tem origem provável na cultura Bantu, e uma relação com o contexto dos terreiros de candomblé. A perseguição policial e política, sofrida pelos sambistas no início do século XX, tem como pano de fundo o preconceito contra a cultura e as religiões de matriz africana?

O preconceito com essa cultura existe, e não só naquela época. Há uma aproximação do samba de camadas da classe média e classe média alta que, com as devidas exceções, é mais pelo desfile do que pela ligação com a cultura e a comunidade do samba. Carnaval é sinônimo de samba no Rio, mas não necessariamente em outros lugares. O samba é diferente do desfile de carnaval, tem uma coisa de quintal, terreiro.

Dentro das casas das tias baianas e na varanda da frente acontecia o chorinho, que era mais aceito pela sociedade e podia ficar mais visível; e no quintal dos fundos, menos visível para quem passava pela rua, acontecia o batuque, o partido alto. As rodas de samba aconteciam justamente ali, nos terreiros dos fundos das casas. Existem algumas diferenças: o partido alto é um samba mais delimitado na roda, versado, muito ritmado, em que o cantor puxa um tema e abre para outras pessoas improvisarem, é batido com palmas para quem está em volta cantar junto. Já o samba enredo é um samba de quadra, o samba que a escola vai defender, é aberto para expandir para mais participantes.

Em relação à religião, vejo a umbanda mais ligada à matriz Bantu, pelo culto aos mortos e antepassados; e ao sincretismo da matriz africana com as manifestações religiosas de matriz indígena, e também cristã. A umbanda tem a risca de giz no chão para o início do ritual, o ponto riscado que representa a entidade, e isso demarca um espaço de forças no terreiro, a relação com o chão é importante.

O lundu era uma dança que existia no Brasil antes da vinda das danças europeias com a corte de D. João VI (início do séc. XIX), e, junto com o maxixe (final do séc. XIX), está nas origens do samba de gafieira. Essas danças aproximavam mais o casal e talvez por isso causassem tanto escândalo, pela exposição do corpo, da sensualidade. Você pode falar um pouco mais sobre as memórias dessas danças, e se elas deixaram marcas em outras que são praticadas hoje?

O lundu está nas origens do samba de roda, tem o batuque, a umbigada, com a mulher dançando e atraindo o homem, como um acasalamento. A umbigada está presente em muitas danças populares, era praticada em ritos de emancipação dos jovens, é extremamente sensual, uma aproximação pela corporalidade, pela movimentação pélvica. Essas práticas apelam para uma percepção mais instintiva, animal. Já o maxixe é uma dança de “par enlaçado”, que recebeu a influência do lundu, uma dança do corpo negro, mas também das danças de salão, e é a primeira dança de salão genuinamente brasileira. A dança de gafieira é um pouco a maneira como o corpo negro experimenta a dança de salão europeia, fazendo suas adaptações.

Depois, a lambada e o forró, por exemplo, têm muito do maxixe. Ele surge com as ondulações pélvicas em compasso binário, com uma irreverência em relação às danças de salão europeias. O maxixe se apropria de alguns princípios da dança de salão europeia, mas há mais toques, as pessoas se encostam, e daí veio sua explosão na época, virou uma febre. Então foi proibido, considerado uma dança indecente, “excomungada”, numa onda de moralidade que, com a “limpeza” da cidade feita pelo Prefeito Pereira Passos, também acabou expulsando vários grupos do centro da cidade no início do séc. XX, inclusive alguns foram para o morro da Providência. O maxixe era uma dança que “atentava contra a moral e os bons costumes” da época. Houve então uma reação de controle, com o estímulo aos chorinhos – a  uma música mais instrumental, só tocada e não dançada – e logo em seguida foi surgindo a dança do samba-choro de gafieira, em que os movimentos pélvicos são mais contidos. A diminuição das ondulações (depois muito características do forró) e dos movimentos a partir da região pélvica foi também uma tentativa de contenção da sensualidade.

Você experimentou com a Cia. Aérea de Dança, fundada por você junto a outros bailarinos em meados dos anos 1980, uma prática de dança mais gingada, após dançar com o Grupo Coringa, de Graciela Figueroa, do qual você também fez parte. A ginga e a malemolência do samba de gafieira te recolocaram em contato com ritmos ancestrais?

O Coringa foi a minha formação, com a Graciela Figueroa, mas num dado momento eu tive que optar pelo meu trabalho com a Cia Aérea de Dança. No primeiro espetáculo ainda havia muitas pessoas identificadas com a dança contemporânea, era um espetáculo de dança contemporânea. Eu fui buscar a dança de salão por causa do tango (no espetáculo Bandoneon, 1989), e não exatamente do samba. Mas aí eu aprendi o samba e me apaixonei, e nunca aprendi tango… aprendi bolero, soltinho, que aliás só existe no Rio.

O soltinho é uma dança de cariocas que dançavam em gafieira e se apropriaram do swing americano (danças que se desenvolveram a partir do jazz americano entre os anos 1920 e 1950), em que as pessoas dançavam separadas e não enlaçadas, embora conectadas em mãos e braços. Então nos anos 1990 eu me dediquei à pesquisa do samba dança, e aí nasceu o espetáculo Mistura e Manda (1992), com as músicas do maestro Paulo Moura.

Esse aprendizado com as danças de salão e o samba de gafieira me reconectou com os ritmos ancestrais. Mais recentemente, depois de muita experimentação, eu vim a ter mais consciência da ginga. A ginga é associada em sua etimologia a um legado bantu, e é o que na gafieira atua, a meu ver, corrompendo a dança de salão europeia, tornando-a uma dança de salão brasileira.

Os bailes nos morros e subúrbios do Rio se tornaram famosos, mas na origem dessas festas há sempre uma prática local, comunitária, com uma divulgação que se espalha entre os próprios participantes. Os bailes são lugares onde se aprende a criar danças experimentando um convívio social. O que podemos aprender com essas práticas que têm como objetivo o prazer de dançar, e uma maneira coletiva de se produzir, bem mais que uma preocupação com a organização coreográfica?

Eu acredito que o nosso corpo guarda nossa vida orgânica, psíquica e espiritual.  Temos uma inteligência que vai muito além da racionalidade e o ritmo é a expressão desta vida que somos.  Tudo no corpo tem um ritmo, o coração, o pulmão… e este prazer que sentimos ao dançar é a vida se manifestando, seguindo seu curso e nos mostrando para que direção ir. Este processo não passa apenas pela racionalidade, é também instinto, e acho que nossa formação eurocêntrica nos afasta muito dessa força, para manter algum tipo de controle sobre o corpo. Mas nossos ancestrais africanos mantiveram a cultura do ritmo, e por isso o tambor é reverenciado em todos os rituais.
Para mim o ritmo é a grande importância da dança que chama ao prazer, ao prazer de dançar. Já a ideia de coreografia está mais ligada ao campo da arte, que traz seus protocolos, arbitrariedades, questionamentos, e é um processo também muito pessoal.
Em relação à organização dos bailes, eu particularmente não acredito que se produzam assim de maneira coletiva, a meu ver há sempre alguém que toma a frente e comanda a organização do evento, como um produtor, visando algum tipo de lucro.

 

Referências

EFEGÊ, Jota. Maxixe – a dança excomungada; folclore brasileiro. Coleção Temas Brasileiros, vol. 16. Ilustrações de Israel Cysneiros, Célio Barroso, K. Lixto, Storni, Luiz Peixoto. Rio de Janeiro: Conquista, 1974.

MARTINS, Carlos Henrique dos Santos. Os bailes de charme: espaços de elaboração de identidades juvenis. In Revista Última década, nº 22. Valparaíso, Chile: CIDPA, 2005. Acesso em 26/10/2020.  https://scielo.conicyt.cl/pdf/udecada/v13n22/art03.pdf

SPIELMANN, Daniela. Os sambas da gafieira: reflexões sobre os gêneros musicais. In Anais do V SIMPOM 2018 – Simpósio Brasileiro de Pós-graduandos em Música. Págs. 520-532. Acesso em 26/10/2020. http://www.seer.unirio.br/index.php/simpom/article/view/7754

 

João Carlos Ramos é coreógrafo, dançarino e professor de dança, desde a década de 1990 dedica-se a sistematizar a linguagem do samba-dança. Nascido e criado nos subúrbios do Rio de Janeiro,iniciou sua trajetória artística na década de 1980 no Grupo Coringa Dança, de Graciela Figueroa. Em 1985 fundou a Cia Aérea de Dança, com a qual criou, entre outros, os espetáculos Mistura e Manda (1992), apresentado no Brasil, EUA e Europa; Gira, criado para o Ano do Brasil na França (2005);  Gaffe (2014-2015), NEXO (2016) e Terreiro de Gafieira (2017). Coreografou os espetáculos Fica Comigo Esta Noite (1990), dir. Jorge Fernando; ARN (1990) e Ao Vento (2012), da Intrépida Trupe; Vestido de Noiva (2012), dir. Caco Coelho; Brasil Brasileiro (2006), do argentino Claudio Segovia; Ensaio Sobre a Beleza (2011), do italiano Valerio Festi; Cerimônia de Encerramento da Copa do Mundo FIFA (2014). Coreografou shows e videoclipes de Jorge Ben Jor, Lulu Santos, Fernanda Abreu, Zeca Pagodinho e Paulo Moura.

Ivana Menna Barreto é criadora, professora e pesquisadora em dança e performance. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e Pós-doutora pelo PPG Dança/UFBA. Professora no Departamento de Ensino do Teatro da UNIRIO (2016-2018) e no Curso de Dança do Centro Universitário da Cidade (2011-2013). Seus últimos projetos artísticos, “sem o que você não pode viver?”(2011), “meio sem fim”(2013), “Agora” (2015) e “Lugar inventado” (2019), buscam provocar conversas visuais, textuais e sonoras entre artistas e sociedade durante os processos criativos. Publicou vários artigos e ensaios, e o livro Autoria em rede: modos de produção e implicações políticas (Editora 7Letras, 2017).

Foto em destaque: Marco Antonio Perna

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