Por um teatro do dissenso: Laboratório colaborativo com Victoria Perez Royo

4 de abril de 2018 Processos

“La operación de percibir el mundo no consiste tanto en representarlo, como en construirlo. Esta acción está compuesta de una multitud de procesos complejos: consiste en un conglomerado de interpretaciones de la realidad, construcciones de otras realidades, explicaciones post-hoc, reeva- luaciones y un montón adicional de trucos de magia que el cerebro considera conveniente para optimizar nuestra interacción con el entorno.”

Victoria Pérez Royo

Victoria Perez Royo. Foto: Nereu Jr.
Victoria Pérez Royo. Foto: Nereu Jr.

Fui convidada pela Revista Questão de Crítica para compartilhar a experiência que tive com a pesquisadora espanhola Victoria Pérez Royo em seu workshop de três dias dentro das Ações Pedagógicas, oferecido pela MITsp 2018 em São Paulo, com curadoria de Maria Fernanda Vomero. Victoria é pesquisadora de Artes Cênicas e professora na Faculdade de Filosofia da Universidade de Zaragoza na Espanha.

Eu fiquei atraída pela convocatória de Victoria para seu laboratório, de curioso nome Traduções/ Perversões. Há algum tempo me interesso pelos processos de criação autoral e percebo uma dificuldade de entrar no terreno da subjetividade de uma criação. Como Victoria escreveu, “os mecanismos pelos quais a imaginação é usada para resolver os problemas levantados pela pesquisa são pouco palpáveis” (ROYO, 2015, p.534). Então a proposta me pareceu ousada. As palavras de apresentação do curso falam sobre um laboratório cênico colaborativo com intenção não de que todos rememos em apenas uma direção, mas sim “um espaço no qual os trabalhos individuais e singulares ganhem sentido por meio de diálogos que apontem (e aportem) contrastes e diferenças.”[1]

Victoria nos recebeu em uma das salas da SP Escola de Teatro, sem falar português. Disse que não queria alguém que a traduzisse durante o curso, já que o fazer-se entender seria parte da relação que estabeleceríamos. Portanto as lacunas, os ruídos, as dificuldades, os percalços e até o mal entendido na comunicação entre ela e nós seria um problema fértil para enfrentarmos.

“Não entender tudo é o que nos deixa vivos!” ela disse a certa altura.

Éramos aparentemente diversos não só nas idades, mas também nos interesses e atuações no campo artístico: atrizes e atores, dramaturgo, musicista, teórica, professora universitária, cineasta, estudante de literatura. Essa diversidade foi salientada positivamente pois o trabalho sobre coletividades reside na valorização da singularidade de cada um e, portanto, a diferença é um ganho. E quando há uma diversidade de corpos e vivências, há uma possibilidade de enriquecimento no intercâmbio de sensibilidades e uma chance de experimentarmos mais radicalmente a noção de dissenso.

Victoria iniciou uma explanação sobre o conceito de tradução. Primeiro nos apresentou uma poeta da Argentina, Silvana Franzetti, e seu livro Edicion Bilingue em que, mediante um procedimento de tradução ficcional, ela explora a tradução de seus próprios poemas. A cada poema em espanhol ela escreve um outro correspondente na mesma língua. Ela subverteu a noção de tradução como transposição de uma língua a outra para um dispositivo de exploração em que uma mesma experiência pudesse ganhar dois formatos poéticos. A diagramação do livro simula uma publicação bilíngue, então temos sempre a possibilidade comparativa das traduções lado-a-lado.

Mostrou-nos também um trecho de The Hunting of the Snark do Lewis Carroll traduzido pelo poeta espanhol Leopoldo María Panero como La Caza del Snark, em que o tradutor transformou um trecho de 4 frases do original em uma dezena. Panero, segundo Victoria, é conhecido por ser um tradutor de grandes qualidades literárias e pouca fidelidade ao material original. Assim abrimos a discussão referente à problemática da fidelidade no exercício da tradução: como a infidelidade poderia ser trabalhada de maneira produtiva, que regularidades e irregularidades entre os originais e as suas traduções podem ser relativizadas se priorizarmos a fidelidade ao que o texto produz enquanto afeto – sendo mais potente levar em conta aquilo que nos afeta do que a reprodução de algum significado mais literal.

Nesse conceito de tradução é fundamental deixar emergir a singularidade de quem recebeu a obra e respeitar essa assimilação, o caráter vivo e mutante de uma criação. Só podemos ser fiéis às traduções sendo infiéis. Panero afirma que traduzir uma obra seria desenvolvê-la, ampliá-la e não criar um sub-produto de menor valor. Assim, ele só estaria mantendo fidelidade ao ato criativo se incorporasse o ato de transformação à obra original. Para esse tipo de tradução, ele trouxe o conceito de per-versão que seria justamente essa radicalidade na tradução conectada ao ato de criação, e não seu resultante formal.

Entender esse conceito de tradução como per-versão, do latim per (através de) outra versão, mas também o efeito de perverter como ato libidinoso infiel da operação criadora: esse conceito de Panero é fundamental para o desenrolar da atividade proposta por Victoria. Inspirada nisso, ela propôs para nós participantes um exercício lúdico de per-versão.

Cada artista selecionado deveria levar para o primeiro dia alguma célula criativa de seus próprios processos, que pudesse ser compartilhada com os demais participantes.

Workshop na MITsp 2018. Foto: Nereu Jr.
Workshop na MITsp 2018. Foto: Nereu Jr.

Estou no início de um novo processo teatral e minha parceira de criação, Carolina Virgüez, mora no Rio de janeiro. Eu, em São Paulo. Essa criação entre duas cidades me fez gravar uma imagem/cena para ela ver. Atinei que esse fragmento produzido de maneira completamente orgânica dentro do nosso processo poderia ser o material para compartilhar também no curso. Como eu, outros participantes também levaram fragmentos de texto, foto de um cenário, uma imagem com uma provocação, uma cena, uma composição musical, enfim, cada qual chegou carregado de alguma faísca de um processo em andamento.

A proposta era que cada um partilhasse esses materiais que lhes parecesse relevante para a própria pesquisa. Cada material seria per-versionado por três ou quatro outros participantes. Ou seja, a partir de um mesmo núcleo os outros iriam criar materiais que dialogassem com o primeiro. Nesse dia, três pessoas se dispuseram a apresentar o material, os demais seriam apresentados no decorrer do curso. Essas traduções/perversões estabeleceriam um diálogo imanente e direto entre si. As novas versões devem manter similitudes e também divergências que levem em conta a resposta sensível do artista ao material apresentado. Adotamos mecanismos de trabalho baseados na escuta da latência do material e em noções como tradução, reutilização e apropriação .

Victoria frisa que esse exercício é uma ferramenta que pode ser utilizada para “plantar” problemas e gerar desdobramentos em uma criação.

São as diferentes reinterpretações, versões e abordagens que permitem e fazem com que o diálogo criativo sobre o material avance. No caso deste laboratório, podíamos até alterar a plataforma expressiva (uma cena podia virar uma música, um vídeo, performance, etc..). Coloquei o meu material para ser primeiramente pervertido. Um cena/imagem de uma mulher, sem texto e com um música religiosa, projetada na tela da sala para todos os participantes. Outro mostrou um quadro projetado com uma música e um pequeno texto lido. Um terceiro apresentou um trecho pequeno de seu texto teatral em desenvolvimento. Teríamos 30 minutos para criar as per-versões. O que colocou todos em estado de criação, para apropriação do material do outro, com urgência pelo tempo e presença plena para encontrar a expressão. Nos dias seguintes os tempos para apresentação da proposta foram diferentes.

A primeira per-versão apresentada do meu material foi um desenho com um texto escrito, a segunda, um vídeo com caráter documental de entrevistas com mulheres na rua, outro vídeo performático e uma partitura sonora com um texto gravado e reproduzido na hora. A partir das apresentações das per-versões conversamos sobre cada uma. Sem que o criador explicasse o material, de onde ele vem ou coisas assim, e sem que o criador da perversão pudesse falar sobre suas motivações e escolhas – nada que interferisse na recepção da obra, para que os materiais colocados um ao lado do outro, horizontalmente, provocassem e inspirassem as discussões. Nessas discussões, eram observadas as opções de transposição do material, como elas revelam o gesto de tornar explícito aquilo que foi percebido/ assimilado e também os pontos convergentes das experimentações. Assim, a conversa se orientou, com discussões sobre as pontes que se estabelecem entre si e também sobre os abismos que separam, com críticas, comentários e percepções diversas sem a necessidade de consenso. Com a investigação conjunta íamos encontrando novos sentidos, capilarizando a criação e revelando o que pulsa nos materiais, problematizando também estruturas discursivas subjacentes.

Nos outros dias continuamos o exercício com outros materiais: experimentando, entendendo escolhas, percebendo os processos de criação pessoal. Sentir a obra habitada pela vivência sensível do outro nos leva inevitavelmente a desdobramentos. Compartilhar experiências artísticas num território móvel no qual “plantamos” questões nas obras alheias, habitando corporalmente outras criações, tudo isso amplia as perspectivas e caminhos daquelas obras em processo.

A articulação entre o material, o processo, a recepção e as conversas geraram uma experiência coletiva e colaborativa bastante horizontal. Experimentação rica para quem se interessa por processos de trabalho colaborativo que tensionem e respeitem as singularidades.

Per-versão de um dos trabalhos. Foto: Lowri Ewans.
Per-versão de um dos trabalhos. Foto: Lowri Ewans.

Além da evidente contribuição ao desenvolvimento criativo das obras em processo, esse tipo de investigação que Victoria compartilha me fez refletir sobre outras questões importantes. No Brasil, fala-se muito sobre a experiência dos grupos de teatro ou coletivos de criação e pouco como as práticas criativas e organizacionais se dão dentro deles. As dificuldades das práticas coletivas são muitas e parecem refletir, no micro, nossas limitações num campo macropolítico, ou vice-e-versa. Práticas coletivas que aniquilam subjetividades, dinâmicas de apagamento das diferenças, de homogeneização ou de relações artísticas veladamente autoritárias e hierárquicas, práticas completamente individualistas reproduzem cada qual a seu modo modelos políticos hegemônicos. Embora muitas vezes os discursos gerados a partir dessas experiências apontem para outros lados, e mesmo os desejos dos artistas envolvidos divergem desse tipo de prática. Na escassez de parâmetros ou ferramentas utopicamente democráticas, muitos processos geram certa esquizofrenia do fazer ou incoerência discursiva mesmo. Temos uma dificuldade imensa de exercitar o dissenso, o espaço da subjetividade, a ética do convívio da diferença. A investigação de práticas coletivas com respeito radical às subjetividades e singularidades me parece urgente. Dinâmicas coletivas que pressupõem relações horizontais, colaborativas, não são apenas fundamentais para equalizar discurso e vivência, mas também para exercitar certa utopia prática que balize pautas e aponte novas formas de relação. Este caráter político do estudo de Victoria é vital para processos criativos e desafios que devemos enfrentar nos campos artísticos e sociais. Que práticas como essa se multipliquem e que possam não só dar respostas como explodir o que está posto.

 

Nota

[1] Cartografias.MITsp. v. 5, 2018. p. 193

 

Referências bibliográficas

FERNANDES, Silvia; ROMAGNOLLI, Luciana Eastwood; SMALL, Daniele Avila (edit). Cartografias.MITsp. v. 5, 2018. Disponível em: https://issuu.com/mitsp/docs/catalogo_mitsp2018

ROYO, Victoria Pérez. “Sobre a Pesquisa nas Artes: um discurso amoroso” In Rev. Bras. Estud. Presença, Porto Alegre, v. 5, n. 3, p. 533-558, set./dez. 2015.
Disponível em: http://www.seer.ufrgs.br/presenca

_______________. “En los márgenes del camino. Relaciones entre teoría y práctica / In the margins of the road. Relationships between theory and practice” In Victoria Pérez Royo / Cuqui Jerez (eds.) To be continued. 10 textos en cadena y unas páginas en blanco. Cairon 14. Revista de estudios de danza. Journal of Dance Studies, Ediciones de la Universidad de Alcalá, Madrid, 2012.

 

Sara Antunes é atriz e autora,  formada em Filosofia pela USP e na Escola de Arte Dramática também pela USP. Foi co-fundadora da Cia. Tablado de Arruar e do Grupo XIX de Teatro. Dentre outros textos, é co-autora de Hysteria, autora de Negrinha e de Sonhos para vestir.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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