BR Trans e a potência do corpo performativo

Conversa com Silvero Pereira

24 de dezembro de 2015 Conversas

Vol. VIII n° 66 dezembro de 2015 :: Baixar edição completa em pdf

Resumo: Trata-se de uma entrevista realizada com Silvero Pereira sobre o processo de criação do espetáculo BR-Trans, bem como sobre a trajetória profissional do ator. Após ganhar o Edital da Funarte, Bolsa Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de Cultura, em 2012, Silvero realiza um percurso (auto) biográfico que vai do Nordeste ao Sul do Brasil, unindo histórias que foi coletando ao longo do percurso e da sua experiência com as travestis.

Palavras-chave: transgênero, criação, performatividade

Sommaire: Ceci est une interview avec Silvero Pereira sur le processus créatif du spectacle BR-Trans ainsi que sur la trajectoire professionnelle de l’acteur. Après avoir gagné la bourse de la Funarte, Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de Cultura, en 2012, Silvero a suivi un chemin (auto) biographique, à travers d’un voyage du nord-est au sud du Brésil, réunissant des histoires qu’il a recueilli tout au long du parcours et de leur expérience avec des travestis.

Mots-clés: “transgenre”, création, performativité

 

No dia 4/9/2015, entrevistei Silvero Pereira, no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. A peça BR-Trans me impressionou muito pela atuação do ator, pelas ações precisas e a qualidade técnica, trazendo à tona um universo delicado pela temática sociopolítica abordada e pela potência estética que poucas vezes presenciei em um monólogo. Após ganhar o Edital da Funarte, Bolsa Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de Cultura, em 2012, Silvero realiza um percurso que vai do Nordeste ao Sul do Brasil, do interior a Porto Alegre, unindo histórias que foi coletando ao longo da vida e da sua experiência com as travestis. Nasce Gisele, travesti criada por ele, que se transforma em ponto de conexão, em porta-voz de inúmeras travestis brasileiras, muitas humilhadas, discriminadas, violadas e assassinadas e que são, por meio do trabalho do ator, “renascidas” em uma cena (auto)biográfica. O contato com as travestis modifica o olhar de Silvero que assume ter sido ele também transfóbico, ao acreditar que o transformista não podia ser considerado artista. Hoje, para ele, o ato de se travestir é parte inerente do processo de criação do coletivo artístico “As travestidas”, do qual faz parte. “Hoje, para a gente, a travesti é um alter ego do ator; a gente se considera ator-trans, porque não é a travesti enquanto discussão de gênero, mas enquanto discussão artística”. Ao se “perceber diferente corporalmente e emocionalmente”, busca na travessia da sua “BR” transgredir o olhar discriminatório e desumanizante lançado às travestis que conheceu ao longo de seu processo criativo. Anota em um caderno muitas histórias, além de levantar vasto material bibliográfico sobre pesquisas de campo realizadas por diversos autores. Apesar de nunca ter estudado profissionalmente canto, Silvero nos surpreende, ao longo da peça, com belas releituras, de Maria Bethânia a Chico Buarque. Estamos diante da performatividade de um corpo que ultrapassa a discussão sobre gênero e que engendra sua potência no abismo perverso e violento do cotidiano, reivindicando espaço político e artístico. Como proclama, em uma das cenas, Silvero: “Meu cu Fernanda Montenegro, Marieta Severo!” Por um mundo com mais Giseles, Gisbertas, Genis.

Como surge o espetáculo BR-Trans?

O projeto ganhou um edital da Funarte (Bolsa Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de Cultura). Na última edição, em 2012, fui contemplado. Era uma bolsa de pesquisa que funcionava da seguinte forma: o artista tinha seis meses para morar em outra região e fazer um trabalho de investigação que deveria resultar em um produto, podia ser uma peça de teatro, uma dança, um livro, uma entrevista, uma websérie. Era um projeto muito bonito porque dava muita autonomia para o artista. Tanto financeira (pelo recebimento da bolsa), como também autonomia de decidir como o projeto se desenvolveria e qual finalização seria dada para ele. Trabalho com esse universo desde 2002. Tenho um coletivo artístico que se chama “As travestidas”, em Fortaleza, que surgiu quando fui morar em uma comunidade na região metropolitana da cidade. Nessa época, dava aula de teatro, para crianças e adolescentes, em uma comunidade dentro de uma ONG. A ideia era que as famílias entendessem a arte não só como entretenimento, mas também como um processo de profissionalização. Nessa comunidade, existiam travestis e me aproximei delas. Quando ia para uma festa na noite, notava que elas eram muito queridas, adoradas, cortejadas pelos homens, mas, durante o dia, esses mesmos caras que se aproximavam, faziam chacota, implicavam, agrediam, falavam palavrão e isso me incomodava profundamente, porque estava em uma ONG fazendo um trabalho social de inclusão e vendo essa exclusão toda.

Qual foi o impacto da obra de Caio Fernando Abreu em sua trajetória profissional?

Tive contato com a obra de Caio Fernando Abreu no Ensino Médio e, naquela época, já fazia teatro. Sou fã da obra do Caio. Quando li o conto “Dama da Noite” e convivi com essas meninas, desenvolvendo um teatro social, falei para mim mesmo: é hora de começar a misturar essas coisas e usar minha arte para trabalhar. Quando fui morar nessa comunidade, não pude mais fazer parte do grupo no qual trabalhava: o grupo de teatro Bagaceira. Era longe. Fiquei sozinho e um dia resolvi: “Preciso fazer teatro, vou fazer um monólogo!” E comecei a sair com as travestis, ir para as festas, levei para dentro da minha casa, me tornei amigo, me aproximei bastante delas e mudei minha cabeça.

Essa experiência fez com que mudasse a sua visão das travestis? Você também tinha algum tipo de preconceito?

Acho que tinha sim. Também fui transfóbico, não só no sentido do transexual, mas do transformismo. Por ser ator, achava que o transformismo não era arte. Tinha sim preconceito com transformistas, transexuais e travestis até começar a entendê-las. Entrei no universo delas, ouvi as histórias e passei a diferenciar história de vida de condição de vida. Qual é a história até chegar naquela condição? Ver na rua é muito simples, mas o que a levou a chegar à rua, a ser discriminada na escola, na família, na religião, e só encontrar apoio nas pessoas que também foram discriminadas? O que significa estar à margem? Tudo isso mexeu comigo de forma pessoal. Já estava entrando na faculdade de artes cênicas, fazendo teatro há três anos e pensei: para virar teatro não pode ser só pessoal, tem de ser coletivo. Esse sentimento que eu tenho precisa virar coletivo. O primeiro espetáculo Uma flor de dama, inspirado no conto do Caio, partiu dessa vivência pessoal. Misturei minha experiência com o conto de Caio e escrevi outro texto com fatos reais e ficcionais. Daí, nasceu, em 2012, uma nova dramaturgia.

Você criou, então, uma dramaturgia misturando ficção e realidade. Como foi o processo de criação dramatúrgica e a relação com sua própria experiência de vida? Você também se travestiu?

Uma flor de dama estreou, em 2002, como esquete em Fortaleza e, em 2005, se transformou em espetáculo. Entre 2000 e 2002, convivi com as meninas. Entre 2002 e 2005, comecei a introduzir histórias, fatos reais, introduzi coisas da minha vida na peça. E decidi me travestir pela primeira vez para ir às ruas com elas. Isso foi fundamental para meu processo porque uma coisa era quando saía com elas de Silvero. Mesmo que eu sentasse à mesa, mesmo que eu ficasse com elas, ali havia coisas que eu só fui perceber quando saí como travesti: não me deixavam usar o banheiro feminino, me tratavam mal quando pedia uma cerveja, na hora de pagar não queriam receber da minha mão… Uma série de sutilezas machistas que fui percebendo de forma bem epidérmica mesmo. Isso foi fundamental para o trabalho porque essa experiência me colocou dentro da coisa, de forma visceral. Passei um bom período, de 2002 a 2005, me percebendo, corporal e emocionalmente, dentro desse universo, saindo muito de Gisele para os bares para poder me perceber. Sou um ator stanislavskiano.

Mas você fez um trabalho grotowskiano…

Depois sim, comecei a trabalhar de outro modo. Não fazia nenhuma entrevista gravada, nem vídeo, nem áudio, nem fotografia. Tudo que me tocava profundamente eu dizia para mim: guarda isso. No dia seguinte, ia para sala de ensaio, resgatava essa memória e trabalhava tecnicamente sobre ela. Um trabalho muito físico. Flor de Dama é um trabalho mais stanislavskiano que BR-Trans, uma interpretação bem mais realista. Apresentei em eventos LGBT’s, ONG’s me convidavam e fiz vários eventos do movimento. Não fiz trabalho de militância mas, quando percebi, já tinha me tornado militante. O trabalho aconteceu de 2005 a 2008, e aí novos atores se juntaram. Tinha um projeto que era um show de cabaré, um show de transformista e criamos, em 2008, o coletivo artístico “As travestidas”. Em 2010, estreamos Engenharia erótica, baseado no livro do Hugo Delisarte, Engenharia erótica. Travestis no Rio de Janeiro. Delisarte fez a transcrição de 80 horas de entrevistas com travestis. Tive acesso a esse livro, acesso ao autor, aproveitei o que não tinha entrado em Flor de Dama e criamos a peça. Em 2012, fizemos o musical Yes, nós temos banana. Em 2013, estreamos BR-Trans. Em 2015, Quem te medo de travesti, que é nosso novo trabalho.

BR-Trans fala de migração, de histórias de violência e discriminação que se repetem do Nordeste ao Sul do país. Como você enxerga essas diferenças regionais? De que forma isso se refletiu em sua pesquisa?

A ideia do projeto inicial era que eu revisitasse o que tinha feito em dez anos, de forma intuitiva. Minha ideia era sair de Fortaleza para Porto Alegre fazendo essa relação com a BR 116 que cruza o Brasil de Fortaleza ao Rio Grande do Sul. Quais foram os procedimentos técnicos, que coisas fui descobrindo de forma intuitiva, mas agora podia registrar e dizer: a parte epidérmica foi muito importante, mas só tive conhecimento disso quando BR-Trans começou porque tive que revisitar, pensar sobre tudo o que fiz até então. Hoje é um procedimento de “As travestidas”, os atores precisam se travestir, ir para os bares, para as ruas. Há uma relação com o clown. Uma relação do bufão com a travesti… Hoje, para a gente, a travesti é um alter ego do ator; a gente se considera ator-trans, porque não é a travesti enquanto discussão de gênero, mas discussão artística. A travesti é nossa figura performática na arte e a gente se sente como um bufão, um clown; não me sinto diferente disso. Foi isso, o projeto surgiu daí… Fui para Porto Alegre para investigar a cidade. Um dos objetivos era descobrir convergências e divergências. Muito coisa era convergente entre o Nordeste e o Sul, apesar de o Sul me parecer menos preconceituoso do que o Nordeste, principalmente porque vivi em uma região do interior e depois fui para Porto Alegre que era uma capital.

Você fez um diário de viagem? Como esse material foi registrado?

Tinha um caderno de anotações, tudo o que via, o que vinha na minha cabeça, anotava. Ouvia uma música, por exemplo, “Masculino e Feminino” do Pepeu Gomes; via uma imagem, registrava. Voltei para Fortaleza e fiquei um mês para construir a dramaturgia. Anotava os relatos das travestis e conheci um livro em Porto Alegre que me ajudou muito, A batalha pela igualdade. A história das travestis em Porto Alegre, organizado por Alexandre Böer. Em Fortaleza, escrevi o texto, fiz uma leitura dramática e voltei para Porto Alegre para começar a ensaiar. Comecei o trabalho sozinho. Trabalhava de 9h até 12h e, à tarde, fazia aulas de canto. O músico, Rodrigo, chegou cedo ao projeto, me ajudou muito. Brinco também que ele é ator.

E você é cantor. Fale da sua formação musical…

Não sou cantor não! Aprendi a cantar para a peça… Todas as coisas que eu sabia, que eu descobria, Rodrigo passava comigo, criava comigo, a gente trabalhou junto…

A dramaturgia mudou muito? Você coletou todas essas histórias, levantou uma bibliografia relevante e imagino que existam outras histórias que foram se somando. Após a leitura do texto e o início dos ensaios o que mudou?

Voltei para Porto Alegre com a dramaturgia pronta, com o esqueleto e depois de um mês e meio fui atrás de uma orientação. Já estava acostumado a fazer trabalho solo. Em Flor de dama, atuei, dirigi, fiz luz, figurino… Mas em BR-Trans, com um mês e meio de trabalho, fiquei preocupado em dar conta do recado, foi quando a Jezebel, a diretora, entrou no projeto. Houve uma mudança sim, quando ela chegou eu tinha um esqueleto pronto, mas ela retirou e colocou trechos. Começou a dirigir uma vez por semana e fazia uma orientação. Depois, ela assumiu a direção do espetáculo. Aí sim teve uma mudança substancial da dramaturgia. Ela buscou uma lógica mais interessante e reviu o caderno de ideias retomando coisas que eu tinha descartado.

E o material autoficcional/ficcional? Você inseriu na dramaturgia alguns relatos, mas de que modo você insere a ficcionalidade do relato? Quero dizer: de que forma você modificou esses relatos?

BR-Trans praticamente não tem nada de ficcional a não ser os textos clássicos, quando recito Hamlet, Ofélia, Gertrude. 5% são ficcionais, o restante das histórias são reais. Os relatos que utilizo, ou presenciei, ou li nos livros que pesquisei durante o projeto, como o Toda feita. O corpo e o gênero das travestis, do Marco Benedetti. Mas também utilizei elementos que pesquisei na Internet, como “A balada de Gisberta”. Essa música, interpretada por Maria Bethânia, me comoveu antes mesmo de ouvi-la, já que conheci a história da Gisberta, uma travesti paulista que foi morar no Porto e que foi violentada durante dois dias, assassinada e jogada em uma vala. Pedro Abrunhosa, autor português, fez uma música para ela chamada “Balada de Gisberta”. Não sabia como encaixar a história dela que me comovia muito. Acabei usando a música da Bethânia. A música não é utilizada como pano de fundo da cena, mas como dramaturgia mesmo. A letra faz parte do texto da peça. O espectador compreende que a música conta a trajetória de vida daquelas pessoas.

Como é sua relação com os objetos da cena? Conte um pouco como foi a pesquisa com os objetos e a necessidade de expô-los na cena, ainda que muitos não sejam manipulados.

O proscênio têm revistas, recortes, coisas que li durante o projeto e resolvi levar para a cena. A ideia do cenário é que o espectador entre na casa da pessoa, mas também entre na boate, na rua, na pesquisa, no universo do ator. Um híbrido de tudo isso, de todos esses espaços. Todo o material que está ali ou eu ganhei de presente das travestis ou li durante o processo, e tudo isso foi sendo acumulado. Os materiais energizam o espaço, mantêm as travestis vivas ali, isso me ajuda a entrar no universo delas. Mesmo as imagens de santo, tem Xangô, Iansã, Iemanjá… foram imagens muito importantes para mim porque, através delas, entrei no universo do candomblé, uma das poucas religiões que aceitam os travestis. O cenário é uma espécie de instalação. Uma vez, fizemos uma exposição que era só o cenário da peça.

O audiovisual me lembrou um vídeo do Arthur Omar, “Ressurreição”, realizado a partir de várias fotografias de pessoas assassinadas, vários corpos mutilados, violados. Fale um pouco sobre o uso do audiovisual e de sua relação com ele.

Para a realização das imagens, baseei-me em um transexual masculino que fez a fotografia de 365 dias de transformação dele. Todo dia ele batia uma foto e postava no Facebook. No final do ano, ele fez um vídeo dessa transformação. Vi o vídeo e fiquei chocado, encantado e, por isso, o vídeo de abertura da peça sou eu fazendo essa transformação. O Ivan Ribeiro fez o vídeo de abertura. O segundo vídeo, ao longo da pesquisa, lancei no Google “travestis assassinadas” e vieram essas imagens que compuseram os vídeos. O vídeo das meninas assassinadas me impressionou muito, chorei demais e disse: “isso precisa estar na peça, a crueldade dessa realidade”. Uma coisa é dizer que o Brasil é numero 1 no ranking de assassinato de travestis, mata 450 por ano, agora quando você vê uma travesti aberta como um frango assado, tiram os órgãos sexuais, os peitos, você diz: que crueldade!

Ficha Técnica
Direção: Jezebel De Carli
Dramaturgia: Silvero Pereira
Elenco: Silvero Pereira
Músico: Rodrigo Apolinário
Cenário: Rodrigo Shalako
Iluminação: Lucca Simas
Design: Sandro Ka
Produção do Grupo: Ana Luiza Bergman
Administração e Produção no Rio de Janeiro: Quintal Produções
Direção Geral: Verônica Prates
Gestora de Projetos:: Maitê Medeiros
Produtor Executivo:: Iuri Wander

 

Gabriela Lírio é fundadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, que coordenou de 09/ 2013 a 09/2015. É professora Adjunta III do curso de Direção Teatral da ECO-UFRJ. É autora dos livros A procura da palavra no escuro (7Letras, 2001) e Interseções: Cinema e Literatura (7Letras, 2010). Atualmente, desenvolve a pesquisa Teatro e Tecnologia em seu pós-doutorado, sob supervisão da Profa. Dra. Josette Féral, na Université Paris III- Sorbonne Nouvelle.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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