Do Teatro de Arena à estética do Oprimido

Conversa com Augusto Boal

10 de maio de 2009 Conversas

Em lembrança viva ao teatrólogo Augusto Boal, falecido no dia 02 de maio de 2009, publica-se a entrevista realizada no Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro em 15 de outubro de 2007 por Dodi Leal e Clóvis de Lima Gomes sob orientação do professor Sérgio de Carvalho da Universidade de São Paulo e diretor da Cia. do Latão. A entrevista, sem cortes de edição, aborda em especial a fase dos musicais do Teatro de Arena de São Paulo passando por questões da dramaturgia, da crítica, do sistema curinga e do tema do herói e da empatia. Trata também das novas pesquisas do Boal, sobretudo da Estética do Oprimido, projeto teórico e programa político no qual se concentrou nos últimos anos e que teve como propósito o estímulo ao pensamento estético humano por meio do acesso à produção artística. A entrevista contribui para a compreensão de elementos comuns e críticos da trajetória entre o Teatro de Arena e o Teatro do Oprimido e ajuda a refletir sobre as características do teatro brasileiro cuja versão engajada de Boal ganhou proporções mundiais, sendo praticado por milhares de atores, diretores e educadores de todos os continentes. Em 2008, Augusto Boal foi pré-indicado ao Prêmio Nobel da Paz e em 2009 foi nomeado Embaixador Mundial do Teatro pela UNESCO.

GRUPO Tanto Zumbi quanto Tiradentes e mesmo outros musicais do Guarnieri como Ponto de partida, giram em torno de um tema maior. Falam de liberdade, de ditadura, opressão e utilizam-se para tanto de parábolas históricas. Esse mesmo tema é abordado anos mais tarde por Joaquim Pedro de Andrade no filme Os Inconfidentes (que também faz parte do nosso tema de pesquisa). Como você analisa hoje a escolha de um mesmo tema, repetidas vezes, por diferentes artistas? Em outras palavras, que impacto esse mesmo tema por tantas vezes insistido teve para o pequeno grupo de pessoas que teve acesso a esses espetáculos e filmes?

BOAL – O filme eu não conheço, eu não sei. O que eu posso falar é o seguinte: que o tema… Não é que exista um tema autônomo. Um tema não existe autonomamente. Ele existe referido ao momento histórico. Por exemplo, você fala em liberdade no Zumbi, você está falando contra o regime de ditadura que estava instaurado no Brasil. Não é a liberdade abstrata, mas o tema é a luta contra a ditadura. Se você fala da mesma liberdade… você citou duas peças, depois uma outra do Guarnieri. As duas primeiras eu escrevi junto com ele. A outra foi ele só. Você falou qual mesmo?

GRUPO – Ponto de Partida.

BOAL – Pois é… aí eu não sei. O que eu sei é que em cada momento. Quer dizer… Hoje você me perguntou o que a gente está fazendo no Teatro do Oprimido… O tema a gente pode dizer que continua sendo o mesmo. É a Liberdade. Mas a liberdade de hoje que a gente pode pedir. Uma liberdade que é uma liberdade maior. É uma liberdade completamente diferente daquela que a gente falava em 64-65-80. Quer dizer. Um tema é abstratamente a liberdade. Mas na verdade é sempre uma luta contra a ditadura naquele momento e contra uma opressão que subsiste. Embora a situação política do Brasil hoje seja muito melhor, sem dúvida, do que era naquela época. Mas ainda existe a opressão da fome.  Então quando você fala da liberdade hoje, você está falando de uma política que dê comida, não só para 11 milhões de pessoas como o Programa Fome Zero deu, que já é uma conquista extraordinária, mas para toda a população brasileira. Então quando você fala em Liberdade em relação, por exemplo, aos preconceitos que existem, aos preconceitos de raça, de sexo, de tudo, é diferente do que era naquela época. Naquela época era uma tentativa muito mais direta de dizer “olha a gente está falando disto e é contra isto que a gente fala”. E às vezes, o objeto da nossa análise se expande um pouco mais. Naquela época era tão concentrado que eu me lembro até que uma das cenas da peça, que era o discurso do Don Aires, quando ele vinha para fazer a matança final e acabar com Palmares. Aquele discurso, quase todo ele, foi tirado de um discurso de um ditador da época que era o Castelo Branco, o general da época. E que ele fez um terceiro exército e que ele dizia que “o exército não tinha que combater o inimigo externo por que o inimigo estava dentro das fronteiras e que era a subversão”, não sei o quê… Então a gente pegou aquele discurso quase que integralmente, mudamos alguma coisa, como nomes que camuflassem um pouco o pensamento dele, mostrando demais que era ele, para esconder um pouco isso. Então a gente pôs esse texto na peça. Quer dizer, era muito direto em relação a Castelo Branco e a tudo de sórdido que representava a ditadura e todo aquele pensamento fascista que tomou conta do Brasil.

GRUPO – A pergunta gira em torno da comparação entre as peças e a manifestações artísticas da época no sentido de tentar achar alguma relação, por exemplo, o fato de Arena Conta Tiradentes tratar de um tema, abstrato ou não, semelhante ao filme.

BOAL – O filme, como eu te falei, eu não sei, eu não posso comparar. Mas eu posso dizer, por exemplo, do Zumbi para o Tiradentes houve um caminho. Não digo um avanço nem um retrocesso, mas houve um caminho. Não estou comparando dizendo que era melhor ou pior. Mas o caminho, qual era: de que o Zumbi era mais uma explosão de raiva, mesmo, quanto ao que tinha acontecido. Por que o Brasil era um país democrático. Era uma democracia burguesa, mas era uma democracia. O Jango (João Goulart) tinha sido eleito, vice-presidente, mas o presidente renunciou, então ele tomou o poder legitimamente e os subversivos eram os ditadores. Eles é que subverteram. Nós éramos legalistas. Você sabe que a semântica é um campo de batalha. Quer dizer, quando você inventa uma palavra… A luta pela posse da terra, luta pela posse do dinheiro se estende à luta pela posse das palavras, também. Então eles tomaram de assalto a palavra democracia, tomaram de assalto a palavra liberdade. Tomaram de assalto todas as palavras que eram a nosso favor. Então o Zumbi era uma explosão contra o que estava acontecendo de imediato.

O Tiradentes já fala mais, até, de uma relação de intelectualidade, de uma certa intelectualidade não engajada. Não é que a intelectualidade não tenha o direito de não se engajar na luta armada, de não se engajar na luta prática. Tem gente que não pode mesmo ir pra rua e fazer passeata ou ir pra rua e fazer alguma coisa por que não pode mesmo e tem o direito de não poder e tem o direito de ficar em casa. Mas não tem o direito de aderir, isso é que não tem, a um regime que vai contra a população de modo geral. A população mais ampla, a população do país. Então ali a gente tentava criticar um pouco aqueles intelectuais que faziam de conta que estavam lutando, mas só soltavam a cabeça e punham os outros na frente. O Che Guevara dizia que ser solidário é correr o mesmo risco e eu acho que é muito bonito isso, mas eu acho que também é muito extremo. Quer dizer, você não pode correr o mesmo risco, mas você pode ser solidário. Quer dizer, quem correu o mesmo risco, por exemplo, foi o próprio Che Guevara. Che Guevara correu o mesmo risco por que ele foi na frente e deu a vida por isso. Outro exemplo maravilhoso é o Robert Schwaitzer. Era um médico da Alsácia que tinha clientela riquíssima. Ele largou tudo. Foi pro Gabão, se eu não me engano, pra África, para um país assim bem pobre. Foi para o Gabão, sim. Ele ficou lá no Gabão. Montou um consultório no lugar onde tinha sido um galinheiro. Então por aí você imagina a precariedade, e passou a vida dele lá, trabalhando pra quem: trabalhando para aquelas pessoas ultrapobres, miseráveis. Então, a pessoa que dá a vida pelas ideias que tem (tem muita gente que tem esse grau sublime de solidariedade), que chegam a esse grau sublime. Mas nem todo mundo é sublime. Cada um pode dar um pouquinho. A Madre Tereza de Calcutá dizia uma frase que eu não sei se ela é melodramática ou se ela é realmente muito bonita. Ela dizia assim. “O que nós fazemos é um gota de água no oceano, mas se nós não fizéssemos, ficaria faltando uma gota de água no oceano”. Eu acho isso muito bonito e é verdade. Tudo o que a gente faz é pouco, é muito pouco, mas se a gente não fizer, fica por fazer. Então alguém tem que fazer aquele pouco que é necessário também.

GRUPO – E um pouco se torna muito.

BOAL – Um pouco se torna muito e às vezes um pouco exemplar se torna um milhão de vezes maior que a sua contundência.

GRUPO – … como você por exemplo…

BOAL – Não. Eu discordo. Não é bem o meu caso. Meu caso é um pouquinho, um pouquinho mesmo. Mas é um pouquinho de boa intenção.

GRUPO – Como foi discutir a ditadura, o golpe e todo aquele contexto nessas peças e como foi entregar o texto pra censura? Teve algum reparo, elemento descartado?

BOAL – Não… Só para completar a conversa de antes. Por que eu acho que é isto: você pode ser solidário não necessariamente na medida necessária ou na medida desejável, mas na medida do que você pode. O fato de você não poder ser um solidário sublime não te impede de você ser um solidário possível. Então você é um solidário até onde você puder. E eu me lembro que no Tiradentes a gente não criticava o fato de que aqueles intelectuais não pegavam na enxada, não pegavam na foice, não iam pra guerra. A gente não criticava isso. A gente criticava a supervalorização que eles faziam da sua própria ação e que não tinham a eficácia que eles pensavam que tinham e faziam outros, como o próprio Tiradentes, correrem o risco que eles não corriam. Eu me lembro que uma vez eu estava na França, estava em Paris, numa recepção que tinha havido lá e o pessoal estava falando de política e eu lembro de um deles que estava falando assim, muito radical e tal, e eu perguntei, “você tem algum partido político que você faz?”, não sei o quê, e ele falou assim, “eu sou maoísta, você quer champanhe?” (Risos). Aí eu falei, “escuta aqui…”. Tinha champanhe, estavam servindo champanhe, e o cara diz “eu sou maoísta, champanhe?” (Brinca). Quer dizer eu achava uma certa incongruência numa recepção em que todo mundo batia champanhe e comia aqueles salgadinhos, não sei o quê, ele falar que era maoísta. Então eu de brincadeira falei assim, “Olha, o Mao fez aquela grande marcha que durou anos e milhares de quilômetros e vocês vão fazer o quê aqui em Paris? Vão fazer a grande marcha da Concórdia até a Bastilha?”, que são alguns quarteirões só. O cara ficou chateado comigo, mas foi algo assim que me saiu espontâneo, não é? O cara ser maoísta em Paris é meio absurdo. Você não pode pegar e transplantar uma experiência que foi feita a sério por quem queria mesmo fazer na China para uma situação parisiense. Quer dizer, não tem nada que ver uma coisa com a outra. Até em princípios gerais, princípios do heroísmo. Princípio disso e daquilo. Tudo bem. Mas são princípios muito gerais. Aqui no Brasil também. Eu me lembro uma vez, no período da guerrilha, eu ouvia um líder que estava metido não sei até que ponto, não sei direito no quê, mas tava dizendo como é que ia ser a revolução no Brasil. Eu não estava acreditando em nada do que ele estava dizendo. Então ele pegou um mapa e botou assim. Um mapa do Brasil, e falou assim “aqui a gente faz isso, aquele faz aquilo… depois aqui tinha o Rio São Francisco, aqui a gente atravessa para o outro lado…” Era uma facilidade tão grande de você… vem de lá pra cá, de cá pra lá… Quando ele falou atravessa aqui o rio, eu falei assim: “não tem jacaré nesse rio?”, porque no mapa não tem jacaré. No mapa você dá um pulinho assim e tá do outro lado do rio. Mas, na realidade é diferente. Então, às vezes as pessoas ficam falando coisas que na prática não é aquilo. Então é você pegar a cartilha e tentar aplicar uma cartilha que não se adequa àquela realidade que se está vivendo. Você perguntou se eu achei que houve alguma mudança? Não. É claro que não. Houve a afirmação só de um ponto de vista. É por isso que eu abandonei a idéia de fazer aquele teatro que a gente fazia antigamente. De dizer, de conscientizar, entende? Porque você conscientiza um pequeno número durante algum tempo. E agora o que eu faço é o Teatro do Oprimido porque aí é uma outra forma, radicalmente, de fazer teatro. Você não vai fazer teatro para os outros. Você vai fazer com os outros, você vai ajudar os outros a fazerem teatro. Então se você acredita, por exemplo, que o pessoal até mesmo de uma escola ou de um centro ou de uma prisão, os próprios educadores, como eles chamam nas prisões, ou então você vê o MST, os camponeses do MST, comunidades pobres aqui do Rio de Janeiro, se você vê que essas pessoas que são oprimidas têm o desejo e a capacidade de fazer alguma coisa, você ajuda elas através do teatro, através da estética em geral. Quer dizer, não só do teatro. Hoje mesmo… Eu acabei de levar meu novo livro lá pra cima. Eles estão com dois exemplares. Não tá publicado ainda. Chama-se A Estética do Oprimido que foi publicado em inglês, mas a edição brasileira vai ser muito melhor por que eu botei uma outra introdução sobre o pensamento sensível e o pensamento simbólico na criação artística.

GRUPO – Aquele artigo que você escreveu recentemente para a Sala Preta?

BOAL – É, só que está muito mais evoluído. Eu tô escrevendo um artigo faz um ano, quase e hoje eu terminei e trouxe ele aqui para eles. Porque eu trabalho com sete pessoas permanentes aqui que fazem esse trabalho de “coringagem”. Mas então o que a gente faz é isso: é trabalhar diretamente com o oprimido e dar aos oprimidos meios para que eles descubram não só o que eles querem fazer, mas o que eles podem fazer. Antes a gente falava muito. Mas, falando assim, caindo às vezes no abstrato, no demasiado abstrato. Quer dizer, a gente quer a liberdade, sim. Vamos lutar pela liberdade? Vamos lutar pela liberdade, tchau, acabou o espetáculo, entende? Agora a gente tem que extrapolar na vida real. A gente quer que mudem as coisas. Agora, quem é que vai poder mudar é o próprio oprimido. A gente não vai mudar em lugar do oprimido. É aquela história: “a escravidão acabou”, então eles falam: “Ah, foi a Princesa Isabel que um belo dia falou: Ah, esses negros estão sofrendo muito, então vou dar a liberdade…”, não foi isso. Houve toda uma série de elementos, evidentemente econômicos, que também fizeram com que uma boa parcela da população branca quisesse o fim da escravidão. Mas houve também Palmares. Houve também muita luta dos negros, entende? Sem isso não haveria libertação dos escravos. As mulheres começaram a votar em 45, se eu não me engano, mas por que? Porque fizeram muitas lutas. Desde 1922… Eu me lembro que duas mulheres na Rua do Ouvidor, aqui no Rio de Janeiro, quase foram apedrejadas por que usaram saias que pareciam calças balão. Eram saias, mas só que tinham uma forma que de longe pareciam calças e não podiam usar por que só homem usava calças. Isso em 1922, quando em São Paulo estavam fazendo a Semana de Arte Moderna. Elas continuaram lutando. Então elas ainda são oprimidas, como em qualquer parte do mundo, não é só aqui no Brasil. São muito oprimidas, mas já tem muito mais liberdade do que elas tinham cinqüenta anos atrás. Eu me lembro de professoras que iam dar aulas vestidas com calças compridas, os diretores mandavam voltar pra casa, não deixavam dar aulas por que estavam com calças compridas. Não podia. Era uma ofensa à masculinidade. É um absurdo, não é? Hoje é muito melhor que na Arábia Saudita. Na Arábia saudita as mulheres estão lutando pelo direito de dirigir carro. Elas não podem dirigir carro. E o argumento que os idiotas dão, os “saudi” idiotas, é que se a mulher vai dirigir carro tem duas coisas ruins: uma é que ela vai ter que entrar em contato com homem. Por que tem sempre o cara no posto de gasolina que é homem. Então ela vai ter que dialogar com homens desconhecidos, ou vai fazer uma infração e vai ter que dialogar com o guarda que também é um homem. Não lembram que se ela tá no carro com um motorista, homem, vai ter que dialogar com ele também. E a razão econômica que eles dizem é que se as mulheres puderem dirigir vão botar no desemprego milhares de motoristas que trabalham pra elas. Então é a mesma coisa que falar que os Estados Unidos não podem acabar com a pena de morte, porque se acabar com a pena de morte vai ter muito carrasco desempregado. Quer dizer: isso não é razão para não acabar com a pena de morte e não é razão para que elas não dirijam. Mas então o que a gente faz hoje é trabalhar diretamente com o oprimido e dar meios que a gente pode dar para que eles façam o que eles quiserem fazer e estejam dispostos a fazer e acham que eles possam fazer. O que não impede que eu continue escrevendo peças. Então eu escrevo minhas peças para dar minha opinião. “Eu acho isso sobre o mundo…”. E é o meu direito. Eu acho que todo mundo pode escrever peças, inclusive os dramaturgos, todo mundo pode ser ator, inclusive os atores e o teatro se pode fazer em qualquer lugar, inclusive dentro dos teatros. Não pode encarcerar o teatro e determinar quem é ator e quem não é, todo mundo é, e a temática, você fala sobre o que você bem entender: pode ser o amor, pode ser a reforma agrária que é bem urgente aqui no Brasil, que ainda tá muito atrasada.

GRUPO – Com relação à estética, Boal, que é um assunto que a gente fala muito no nosso curso. A forma, esses aspectos formais. Como fica, nesse novo teatro, Teatro do Oprimido? Quais são as mudanças? Existe uma espécie de dramaturgia simultânea que é construída improvisacionalmente? Como é isso?

BOAL – Pois é. A questão é que quando se fala em estética fala-se como se ela fosse a ciência do belo como eu já ouvi falar, e não é nada disso. A palavra estética, como eu falei pra você, a semântica é um campo de batalha, você inventa uma palavra e já vem os mais fortes querendo levar a palavra pra eles. A palavra “estética” já existia na Grécia e ela significava o conhecimento que era adquirido pelos sentidos e se contrapunha a isso a “noética”. A noética era o conhecimento que era adquirido pelo raciocínio verbal. Então noética e estética existem desde a Grécia. Em 1750, mais ou menos por aí, teve um filósofo alemão chamado Baumgarten. O Baumgarten escreveu dois livros que tinham no título a estética e alguma coisa. Não sei exatamente os títulos, mas tinha a palavra estética. Então ele pôs em uso a palavra “estética” e lá ele desenvolve a ideia de um conhecimento sensível. Então ele falava que existia um conhecimento sensível quer não era adquirido pelo que ele chamava razão. Então, para ele, pelo intelecto que ele chamava de intelecto puro, que era o intelecto das palavras, só. Nesse meu livro A Estética do Oprimido, eu tento dizer que não é que existia um conhecimento apenas, existia um conhecer, um conhecimento e um pensamento que organiza o conhecer e o conhecimento. Quer dizer que o pensamento sensível, ele existe. Se você repara bem na criança quando o bebê nasce. Os primeiros contatos dele com a natureza, com a sociedade, com a mãe, com o pai, com os vizinhos, com os parentes, tudo isso. Eles são de natureza estética, eles são sensoriais. Ele não conhece o pensamento simbólico, ele não sabe falar, mas ele sabe se relacionar.  A primeira coisa que ele faz é tentar descobrir onde é que ele está nesse mundo. Por que de repente ele sai do ventre da mãe e vem cá pra fora. Lá dentro ele já ouvia sons, os ouvidos dele já funcionavam. Não via nada. O gosto, mais ou menos, por que era sempre o mesmo líquido amniótico que entrava em contato, o tato também.  Quando ele nasce é uma explosão sensorial. Então ele primeiro tem que saber onde é que ele está. A segunda coisa é como é que ele começa a se relacionar com o mundo. A primeira é onde é que eu estou no mundo, a segunda ele se relaciona com o mundo. Então ele vê a mãe, ele já dá um sorriso por que ele sabe que vem comida aí. Vem leite aí, né? Ele ouve música numa certa idade, ele começa a balançar o corpo.  Ele vê alguém agradável ele sorri. Então começa a haver uma relação com o mundo que é de natureza estética. Não intervém o pensamento simbólico da palavra. Depois ele desenvolve a capacidade motora. Daí ele começa a modificar o mundo, a transformar o mundo. Primeiro ele se situa no mundo, depois ele se relaciona com o mundo, depois ele transforma o mundo. Pois se você dá um papel branco e lápis de cor pra ele, ele faz um desenho, ele faz uma pintura. Se você der pedrinha, ele começa a colocar uma pedrinha em cima da outra. Antes de falar, antes de poder usar o pensamento simbólico. Ele põe uma pedrinha em cima da outra e faz uma escultura. Você leva ele pra praia, ele pega areia e junta, quando os músculos já estão desenvolvidos. Quando ele quer falar alguma coisa ele não fala “ali” ele aponta (faz o gesto). Então é o pensamento sensível que está funcionando. Aos poucos as palavras que ele ouve vão se repetindo, referidas à mesma coisa, ou à mesma pessoa e daí ele começa a aprender o pensamento simbólico. Então ele vê aquela senhora que vem dar de mamar e fazer carinho e tratar ele bem, ele sorri. E aí começa a vir: “mam… mamãe”, então ele começa a falar “mamãe”. Mas não é ainda o pensamento simbólico, é um som, “mamãe”, associado aquela mulher. O conceito de mãe, quando ele vai ver que existem outras mães de outras crianças… Esse conceito ele vai ler muito mais tarde. Aí que intervém o pensamento simbólico. Quer dizer, o pensamento sensível, a estética, o pensamento sensível é primogênito e genitor do pensamento simbólico. O pensamento simbólico vem depois. Então quando a gente fale de estética a gente fala do pensamento sensorial. Então o que a gente procura descobrir, qual é a estética daquelas pessoas que vão trabalhar numa peça, que vão criar uma peça, que vão fazer uma exposição de quadros. Quer dizer, a gente não quer seguir padrões estéticos da burguesia, padrões estéticos de outras épocas, a gente quer descobrir a estética do camponês do MST, a estética do habitante da Favela da Maré, a estética desses grupos de oprimidos.

GRUPO – Então o que está em jogo não é tanto o repertório mundial da carpintaria teatral.

BOAL – Não é. Não interessa.

GRUPO – Mas aquele recurso que emana do próprio grupo.

BOAL – Do próprio oprimido. É ele que cria a sua estética. Eu dirigi peças na França no Théâtre du Least Parisience. É um teatro do governo. Era uma peça do Garcia Marques chamada Canderendira. Baseada na história dele. Era uma adaptação da história dele. Era no ano em que ele ganhou o Prêmio Nobel, então ele tinha um cartaz imenso e havia dinheiro, o que eu quisesse para montar a peça. Então eu montei na França, com meios franceses e tal. Mas jamais eu faria isso aqui na Favela da Maré ou qualquer uma favela, ou com o camponês do MST. Com os camponeses com MST, eu quero que eles criem. Não vou eu pegar e criar uma coisa francesa pensando que aquilo é estética e isto não é. Aquilo é a estética deles naquele momento. E a estética do MST é a estética do MST. O MST é quem tem que descobrir. Quando nós trabalharmos mais intensamente com eles. Agora a gente trabalha pouco, atualmente. Eu quero até revigorar essa relação com eles, reintensificar. Agora eles fazem muito o teatro do oprimido. Eles já sabem a base. Já não precisam tanto da gente quanto precisavam no começo. Mas eu quero que eles voltem para avançar também nesse sentido. Mas quando a gente fazia peças com eles, eles fabricavam a cenografia. Fabricavam segundo o que eles queriam. Quer dizer, “olha: a melhor maneira de se pintar uma vaquinha é desse jeito.” Não. A melhor maneira são eles é quem tem que descobrir. Quer fazer uma vaquinha: imagina a vaca. Não como ela é na realidade, mas a vaca como eles vivem essa vaca. Quer dizer, é o pensamento deles. Não é reproduzir a coisa, é recriar dando uma opinião. “A minha vaca é essa”, “a minha casa é aquela”. Eles, como um grupo, tem que dizer, “a nossa vaca é isso”. Então é a coisa, mas como uma opinião sobre a coisa, não é a coisa como ela é, uma reprodução, mas uma recriação, uma transcrição, uma metáfora. Teatro é metáfora, toda a arte é metáfora. Metáfora é uma coisa transladada numa outra substância. Então teatro é uma metáfora, a pintura é uma metáfora e a arte de metaforizar é a arte realmente humana. Nenhum animal consegue metaforizar. A gente já tá sabendo que existem alguns golfinhos que se reconhecem no espelho. Tem macacos que conseguem entender uma palavra ou outra. Mas, peça a um macaco ou a um golfinho para metaforizar. Eles jamais vão metaforizar nada. O que distingue o ser humano é a arte, é a metáfora, é a capacidade de metaforizar, então é isso que a gente tenta desenvolver.

GRUPO – Tem uma premissa que o Professor Sérgio de Carvalho costuma usar, é que a forma estética reflete a sociedade. Então eu queria perguntar pra você, em que sentido se você consegue ver isso no Arena Conta Tiradentes na época dos musicais do Arena e hoje, no Teatro do Oprimido. Em que sentido a forma nessas duas épocas definem a sociedade?

BOAL – Refletem a sociedade, mas não a sociedade em geral em abstração, mas concreta. Por que o Zumbi foi feito do jeito que era? O Zumbi foi feito do jeito que era, assim pobre, todo mundo tinha calça bege, todo mundo tinha uma camisa de cores diferentes, mas igual e o chão era só um tapete. Por que era assim? Era um reflexo da sociedade, mas qual sociedade? A sociedade do Teatro de Arena que era inserida numa sociedade mais geral. O Teatro de Arena era muito pobre. Provavelmente se nós tivéssemos o dinheiro que eu tive pra fazer a peça do Garcia Marques lá em Paris ou as peças que eu dirigi na Alemanha, na Áustria, que também eram teatros nacionais, assim, muito grandes, provavelmente eu teria feito uma grande ópera com um coro de trinta vozes, quarenta ou cinqüenta. Era assim, eu teria tudo e talvez eu fizesse isso. Eu fiz só com oito atores e três músicos… Três músicos era muito pouco. A gente teria que ter feito pelo menos com uns dez, doze, mas a gente não tinha dinheiro pra isso. Então a sociedade, que era o seguimento do Teatro de Arena naquele momento, nos disse: “olha, vocês vão fazer com os meios esses mesmos e virem-se! Oito atores vão fazer cinqüenta personagens”.

GRUPO – E em termos do texto Arena Conta Tiradentes, porque nós estávamos pensando mais do ponto de vista da dramaturgia. Como a dramaturgia do Arena conta Tiradentes reflete os esquemas sociais?

BOAL – A palavra refletir dá a impressão de que há um reflexo do sol no vidro, no espelho que traz reflexo. Não é assim. Quem faz a estética são os seres humanos que vivem socialmente. Você vive numa sociedade e não é a sociedade inteira que vai refletir. É um espelho múltiplo que tem pedaços, que tem fragmentos. Então aquela sociedade tem tais e quais fragmentos. Então a maneira que nós estávamos refletindo o nosso fragmento social, nós estávamos refletindo o que a gente pensava naquele momento. Mas, ao mesmo tempo, havia outras peças que mostravam outros na mesma sociedade. Havia outros fragmentos de espelhos que mostravam outras imagens que não as nossas. Então não existe a sociedade que mostra uma coisa só. Ela é um espelho fragmentado que mostra muitas imagens diferentes. Mas eu concordo que era uma sociedade que naquele momento tava vivendo uma ditadura e na sociedade de hoje, que não está vivendo uma ditadura, mas está vivendo uma invasão dos cérebros produzida pelo cinema norte-americano, pelo cinema de inspiração hollywoodiana e pela televisão que é uma forma de massacre permanente a você que vê televisão. As pessoas emburrecem se ficar vendo muito tempo televisão. Emburrecem porque a ideia é emburrecer. A televisão não é feita pra informar, nem pra divertir, é pra emburrecer. É pra limitar o horizonte das pessoas. Tem um canal aí que é o canal da Rede Globo de Televisão em que os programas se jogam uns pros outros. Tem um programa à tarde que eu sei por que eu vi. Obrigado a ver por razões de estudo. Eu vi um programa em que a apresentadora faz perguntas: “Quem foi que representou, qual foi o ator que representou o papel secundário daquele personagem que olhava pela janela na novela tal…?” E aí a pessoa acerta: “Ah, foi o ator fulano…!” Então eles ficam falando deles mesmos. Eles se apresentam nos programas. São eles que vem representando eles próprios. Eles criam um mundo fechado no qual, se o espectador entra, emburrece inevitavelmente. Esses reality shows são feitos com a ideia expressa de fazer com que as pessoas fiquem burras. Então eles só escolhem personagens burras. Eles não escolhem personagens inteligentes. Uma vez nos Estados Unidos me perguntaram: “você acha a forma do reality show ruim?” Eu falo assim: a forma depende. Você chama naquela época o Artur Miller, que naquela época tava vivo e a Susan Sontag, que também tava. Se você pega o Artur Miller, a Susan Suntack, a Amy Goodman, o Michel Moore pra fazer o reality show, eu vou querer ver, porque são pessoas super inteligentes, eu vou ficar em contato lá pra ver. O que eles dizem uns pros outros me interessa muito. Agora eles pegam idiotas, que só falam bobagens. Qual é o objetivo? É usar essa arma poderosíssima, que é a empatia, para emburrecer. A empatia imobiliza o espectador na sua poltrona, na sua cadeira, no seu chão. Seja lá onde for. Por que tem muita gente que fica sentada no chão, não é sentado na poltrona tomando uísque. É no chão tomando cachaça ou não tomando nada. Então fica vendo aquelas baboseiras. Aquelas baboseiras vão direto pra cabeça deles e formam coroas neuronais resistentes a qualquer coisa inteligente. Então são pessoas que saem de lá aplaudindo a violência achando que o mundo é assim mesmo.

GRUPO – Você disse no Hamlet e o Filho do Padeiro que existe a diferença entre o mito e o mitificado. Qual seria o papel do herói na nossa sociedade (Zumbi, Tiradentes, Lula?, …)? O herói-mito de que precisamos, não o mitificado?

BOAL – O que eu falo lá sobre o herói é que havia um debate em que eu e o Anatol Rosenfeld escrevíamos coisas de pontos de vista um pouco diferentes, né? O Brecht dizia que “infeliz a sociedade que precisa de heróis” e é verdade. Mas a sociedade brasileira era infeliz e é ainda: precisa de heróis. Ele se referia, sobretudo, à culpa também, né? Che Guevara, é claro que era um herói, Camilo Cien Fuegos, Fidel Castro eram heróis, conseguiram libertar Cuba da tirania do Batista que transformou Cuba no bordel dos Estados Unidos, como ela era chamada pelos jornais norte-americanos inclusive. Então é claro que Cuba precisava de heroísmo e o Brecht fala “infeliz é o povo que necessita”, sim é infeliz, mas ele vai ficar feliz quando esses heróis realmente existirem e realmente transformarem ou ajudarem o povo a transformar a realidade opressiva como ela era. Então era o povo que era infeliz e deixou de ser. Passou a ser feliz graças – em parte importante, mas não totalmente determinante – a esse heroísmo que houve. Então eu defendia a ideia de que se precisa de heróis, Tiradentes era necessário, era um herói, era necessário. Pena que os outros não eram, como ele, herói. Se todos fossem heróis seria muito melhor. Então o que a gente acha, como eu falei que a semântica é um campo de batalha, um terreiro de guerra, a história também é, então quando você ouve falar de Tiradentes, qual é a imagem que vem? Não é a do Tiradentes revolucionário é de um Tiradentes histórico à caminho da forca com a corda no pescoço. Jesus Cristo não foi assassinado e torturado pelo fato de que ele era bom. O que ele queria? A ideia de Jesus Cristo era de solidariedade, de amor ao próximo, era isso que ele pregava. Mas ele pregava de uma forma subversiva em relação aos romanos. Para os romanos ele era um subversivo porque ele pregava a união da população, ele pregava o trabalho solidário que multiplicava pães e peixes. Todo trabalho dele era conscientizador da população. Então ele tinha um lado revolucionário e foi por esse lado revolucionário que Cristo foi martirizado e assassinado. Mas você vê hoje Cristo na cruz olhando pra cima, olhando pro céu. Você vê Cristo em momentos bons, tranqüilos. Você vê muito pouco Cristo expulsando os mercadores do templo, Cristo revolucionário sublevando o povo que foi o que ele fez. Esse Cristo você não vê. Então eu digo que o mito, ele é bom…

GRUPO – Arena Conta Tiradentes, encenada em 67, apesar de acrescentar elementos novos tanto dramaturgicamente como em sua encenação, traz de volta a essência estrutural de Arena Conta Zumbi: o gênero musical. As músicas da peça não são somente ilustrativas. Elas ajudam a contar a história, dando vida e dinamismo à encenação. Porque você e Guarnieri escolheram essa estrutura dramatúrgica naquele momento?

BOAL – Porque a música é lúdica e a música exalta as palavras. Então palavras que precisam de uma exaltação você põe música e elas são mais facilmente transmissíveis do que sem música e, por seu caráter lúdico, ela fica na cabeça das pessoas, mais do que um parágrafo extremamente inteligente, mas não musicado, às vezes tem mais dificuldade de ser absorvido. E como não é mais uma coisa limitada no tempo, no espaço e no momento em que acontece, aí é melhor botar música, mas não era música o tempo todo: havia longas falas. Zumbi era muito mais musical do que Tiradentes.

GRUPO – Com relação aos elementos da “carpintaria teatral”, qual foi a importância do texto Tiradentes e dos outros musicais do Arena na renovação da dramaturgia pela qual o teatro brasileiro passava nesta geração?

Boal – A importância na dramaturgia mesmo foi uma continuidade, eu acho que não apareceram peças no mesmo formato, eu acho que não. Eu acho que a grande revolução dramatúrgica foi anterior, quando nós fizemos os Seminários de Dramaturgia, que realmente mudou a dramaturgia brasileira. Até 1958 quando estreou Eles não usam Black-Tie do Guarnieri, até então se dizia que o teatro brasileiro era veneno de bilheteria ou que dramaturgia brasileira era perder dinheiro na certa a tal ponto que lá em São Paulo para que uma companhia ganhasse subvenções teria que produzir uma peça brasileira a cada três, duas poderiam ser estrangeiras e uma tinha que ser obrigatoriamente brasileira para incentivar a dramaturgia brasileira. Então as pessoas falavam: “a gente vai ganhar dinheiro com duas estrangeiras e vai perder dinheiro com a brasileira”, quer dizer, que o governo faria perder dinheiro. Depois passou a ser o contrário, Eles não usam Black-Tie passou a ser um êxito, não é que antes não havia êxito, havia, mas era um grande êxito de uma peça que falava de proletários, falava da vida urbana, falava de uma forma, com a visão proletária.

GRUPO – Você considera então que a principal contribuição do Teatro de Arena para a dramaturgia foi nesta fase dos Seminários?

BOAL – Foi nesta fase e que se estendeu até além do Zumbi e do Tirandentes, mas começou em 57. Em 57 foi quando começou o curso de dramaturgia. O seminário começou em 58, concomitante com o Black-Tie.

GRUPO – Sabemos que Arena Conta Tiradentes é também importante para a história do teatro brasileiro porque é onde fica mais clara e evidente a utilização do sistema curinga. Em crítica, Yan Michalski afirmou que, pelo menos na montagem do Rio de Janeiro, o curinga tinha sido um elemento sem grandes vantagens para o dinamismo da encenação. Qual era a grande vantagem da utilização desse sistema em Tiradentes naquela época?

Boal – Havia vantagens e havia desvantagens como eu te falei. Eu não achava vantagem trabalhar num teatro que tinha quatro metros por cinco, tinha vinte metros quadrados, era muito pequeno. Se tivesse um teatro maior, teria usado. A gente não tinha meios, então tinha que aceitar aquela realidade, não aceitávamos outra realidade, mas aquela… ali estávamos constrangidos. Então você trabalhar com oito atores é o máximo que o teatro de 170 lugares ia comportar. A gente tinha que pagar as pessoas, éramos profissionais.

GRUPO – Então a criação do sistema curinga partiu de uma necessidade sócio-econômica?

BOAL – Econômica, sem dúvida. Era uma experiência que eu teria feito de qualquer maneira, mas como experiência e não como sistema.

GRUPO – Você acha que hoje ele poderia ser retomado?

BOAL – Eu acho que sim. Se bem que sendo retomado hoje ele ganha pela perspectiva histórica e perde por ela mesma: ele já não é mais aquele momento para fazer aquele tipo de peça, mas sendo feita hoje te dá o conhecimento da época. Te acrescenta o conhecimento de uma época revoluta, mas ao mesmo tempo perde o fato de ser revoluta.

GRUPO – De qualquer forma isso estaria em consonância com as formas do teatro contemporâneo?

BOAL – Bem, ele foi uma solução para limite econômico. Brecht tinha 60 ou 70 atores profissionais custeados pelo Estado, não é isso? Então é claro que ele não iria usar o sistema curinga, não iria pegar aquele palcão do Berliner Ensemble e reduzir até as dimensões do teatro de arena porque era melhor; ele pegava aquilo que tinha, só que ao invés de botar 150 ele punha 1.000 pessoas, não me lembro quantas exatamente, mas era muito maior do que o Arena.

GRUPO – É unicamente pela perda da empatia e do convencimento que o protagonista não entra no sistema curinga? Se houvesse um modo de manter esses elementos mesmo revezando os personagens entre os atores, seria possível compartilhar o papel do Alferes?

BOAL – A empatia é venenosa, mas ela é boa também, depende daquilo que é empatizado. Se você empatiza com um personagem que tem ideias boas na cabeça, que tem atos que pratica que são exemplares e recomendáveis, a empatia é boa. A empatia em si mesma não é ruim nem boa, depende do que você empatiza. Por isso que eu dizia que se num reality show tivesse gente inteligente, a empatia seria boa. Você seria estimulado. Gente inteligente estimula a pensar. Eu achava que se o herói como era no Zumbi estivesse sempre mudando de personagem [sic ator], a empatia era mais difícil. Em Tiradentes dissemos: vamos guardar o protagonista para Antônio José e daí a gente vai procurar criar empatia com ele. No Zumbi todo mundo fazia Zumbi: mulheres, homens, altos, baixos… já em Tiradentes, não, vamos fixar o herói.

GRUPO – Pode-se dizer que o texto é mais seu ou mais do Guarnieri ou foi, como muitos o afirmam, uma criação de ambos? Em que medida o trabalho com Guarnieri enriqueceu o seu como ator, encenador e homem de teatro?  Como foi a relação entre vocês?

BOAL – Sempre era boa, a gente trabalhava juntos muito bem. O Zumbi foi engraçado porque o Zumbi eu comecei a fazer a montagem com os atores antes da peça terminar, eu acho que já estava só o primeiro ato terminado. A gente começou a trabalhar em cima das músicas que já estavam prontas junto com o texto no primeiro ato. Mas no segundo ato a gente foi fazendo ao mesmo tempo em que ensaiava à tarde. Ensaiávamos à tarde e à noite tinha o espetáculo Tartufo, que estava em cartaz. Depois do espetáculo, nós comíamos um pouco, íamos lá pra casa, eu, Guarnieri e alguns atores e a gente, juntos, sentava na máquina Olivetti, ora ele, ora eu, e a gente ia fazendo o texto. Me lembro uma vez que chegou perto daquele tempo de guerra e a gente ali e não atinava como escrever aquele poema que a gente queria escrever. E o Davi José lembrou: “mas o Brecht tem um poema que se chama ‘Aos que virão depois de nós’ que é mais ou menos isso que vocês estão querendo fazer aqui”. Então eu fui lá e peguei o livro lá em casa, vi o poema, levei ao Guarnieri, dissemos: “É isso que a gente quer. Ah! Então vamos roubar dele” e roubamos (risos) fazendo do nosso jeito, é bem diferente o que a gente fez do Tempo de Guerra do poema original, mas foi totalmente inspirado no poema impresso. Eu confesso que houve essa coisa de “vamos pegar lá e vamos…”. Brecht fazia isso também, então “ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”. (risos)

GRUPO – E Tiradentes?

BOAL – Tiradentes não, já foi escrito com mais calma, foi mais reflexivo.

GRUPO – De quem partiam as idéias?

BOAL – Olha, a gente trabalhava em conjunto. Como ele era ator e eu diretor, a gente estava sempre juntos trabalhando, mas eu não me lembro exatamente… eu me lembro que o Zumbi, eu acho que talvez ele tenha escrito até mais que eu e no Tiradentes eu mais do que ele. Mas isso de mais ou de menos não conta porque a gente não fez nada que o outro não quisesse. Havia sempre um consenso: não importa quem está na máquina escrevendo ou um que cria e o outro… ou ao contrário e… nós estávamos de acordo, mesmo na hora de fazer cortes, quando tinha que cortar, eu como diretor nunca cortava o que eu queria: eu o chamava “Ô Guarnieri aqui acho que a gente exagerou, está de acordo em tirar isso?”.

GRUPO – Era algo entre amigos, né?

BOAL – Entre amigos que éramos muito e eu gostava muito dele. Nós éramos bastante amigos mesmo, o que não significa que não brigávamos, não era uma coisa idílica também. Às vezes eu tinha uma opinião, ele tinha outra, nós debatíamos, mas chegávamos a um acordo. Isso tornou possível uma colaboração de dez anos, né? Além de escrevermos juntos, ele era ator e eu diretor, a gente era amigo e ele tinha umas idéias políticas diferentes das minhas, mas complementares de certa forma, e na mesma direção. O que nós queríamos objetivamente era a mesma coisa, mas por meios diferentes, caminhos diferentes.

GRUPO – E hoje, Arena contaria Tiradentes de novo?

BOAL – Eu, como te falei, eu prefiro não, eu prefiro fazer Teatro do Oprimido hoje. O Teatro do Oprimido hoje está em setenta países no mundo. No site da Internet tem só 49 países, mas tem muitos países da África que a gente trabalha como o Sudão, Guiné-Bissao, Angola… Então a gente sabe que setenta países que praticam e mais de duzentos grupos no mundo inteiro. Por que esse sucesso extraordinário? Porque não é autoritário, não é um método que diz “vocês têm que fazer desse jeito, o certo é isso”, não é assim. É um método que não é cartilha, é um método pra ser usado. Em outubro de 2006 na Índia em um festival tinham doze mil camponeses, eu fiz um discurso lá e tem até um filmezinho. Eu fiz um discurso para doze mil camponeses. Aí tem dois filmes: um tem meia hora e é muito lindo, Jana Sanskriti, atravessando parte da Índia e fazendo espetáculo. É belíssimo. Como a maioria das pessoas são mulheres que fazem o Teatro do Oprimido lá, elas vão vestidas com aqueles “saris”, é belíssimo. O segundo vídeo é a concentração desses doze mil; mostra como eles se reuniram lá em frente à praça, na estação de trem, depois eles caminhando pela rua de Calcutá, se concentrando na Welington Square, que é a praça central lá; então você vê a praça inteira cheia de gente. Gente que praticava Teatro do Oprimido e que veio e pratica, que vem de longe. Então quando você tem um método que se espalha pelo mundo inteiro, é o primeiro método do hemisfério sul que é praticado no outro hemisfério, no mundo inteiro. Em geral tudo vem de lá: é Stanislawski, é Brecht, é Grotowski, é Artaud, tudo vem de lá. O primeiro que vai pra lá, sem deixar de ficar aqui, porque aqui está se desenvolvendo bastante. Até que aqui no Brasil começou tarde.

GRUPO – Por causa do exílio?

BOAL – Por causa do exílio e por causa de uma certa resistência que houve em meios acadêmicos inclusive, e continua havendo. É besteira deles porque é uma coisa que existe, tem que abrir os olhos pra ver que existe.

GRUPO – A aplicação do Teatro do Oprimido em Teatro-Educação prescinde que haja um trabalho anterior com formas mais improvisacionais? É possível trabalhar Teatro do Oprimido com crianças?

BOAL – Na perspectiva da Estética do Oprimido, nós temos um trabalho em parceria com o Ministério da Educação que é o Teatro do Oprimido nas escolas. Nós trabalhamos em cinco cidades da periferia do Estado do Rio de Janeiro. Não trabalhamos na cidade do Rio de Janeiro porque o prefeito daqui é hostil a qualquer tipo de teatro que não seja de origem da Broadway. Ele declarou que queria transformar o Rio de Janeiro numa grande Broadway. A Broadway é um cemitério, um museu de cera, tem as mesmas coisas de sempre. Então a gente não tem nada que ver com isso. Aqui no Rio não dá pra gente fazer isso. Em Queimado, Belford Roxo, Duque de Caxias, Niterói, etc. são sete cidades em que a gente aplica este programa Teatro do Oprimido nas Escolas, que na verdade é A Estética do Oprimido nas Escolas. Os resultados são muito lindos: no ano passado tivemos uma exposição aqui. Quando vieram os estudantes da New York University (todo mês de agosto eles mandam 25 alunos pra cá pra trabalharem comigo durante 10 dias), nós também aplicamos com eles. Os alunos da New York University têm por volta de 25, 30 anos; os estudantes das escolas públicas com quem a gente trabalha têm 12, 8 anos. Nós fizemos uma exposição e depois a outra e você vê que está no ser humano a estética. A estética não cai do céu, a estética sai de nós. Então os meninos da periferia do Rio de Janeiro fizeram a estética da periferia do Rio de Janeiro, os alunos da Universidade de Nova York fizeram a estética deles. É bobagem dizer que não pode aplicar com crianças. Pode aplicar sim. O problema é que as pessoas se fixam nos jogos para atores. O Jogos para Atores é um livro só, mas tem O Teatro do Oprimido e tem a Estética do Oprimido que mostra que é pra todo mundo, não é restrito a maior de idade, a função da formação. Como eu falei pra você, o bebê lá no prédio em que moro, no nono andar – em cima de nós mora um casal amigo nosso que tem um bebê de um ano. Eu vejo esse menino desde que tinha um dia, hoje ele está com um ano e dois meses, meu amigo. Então eu converso com ele em pensamento sensível. Eu vejo ele pintando, fazendo escultura, ele é artista. Depois dizem: não pode mais! Parou a brincadeira. A gente não pode parar de fazer arte e deixar de usar o pensamento sensível nunca porque é uma forma de entender melhor o mundo. O pensamento simbólico usa as palavras, as palavras designam conjuntos e o pensamento simbólico vai nas unicidades. Então você complementa um com o outro. Pelo pensamento simbólico é a palavra: montanha; montanhas são muitas. É o rio, é a mãe, é o pai, é a mesa. São conjuntos, mas o pensamento sensível é aquele momento, naquele instante. Você junta o pensamento sensível com o pensamento simbólico, dá uma explosão de entendimento, de conhecimento. Você pega só um ou só outro, você não vê nada. Você é caolho. Temos dois olhos, então temos que abrir os dois olhos. Temos duas pernas, então que usemos as duas para andar. Eu estou usando uma muleta agora porque o joelho está ruim (risos), mas você tem que usar o que tem. Tem dois olhos, porque vai usar só um? Tem dois pensamentos, tem que usar os dois pensamentos.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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