Sobre a escrita da Trilogia Abnegação – um relato parcial

31 de agosto de 2015 Processos

Vol. VIII, nº 65, agosto de 2015

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Resumo: O dramaturgo Alexandre Dal Farra procura mapear as questões que perpassam as suas últimas peças, desde Mateus, 10, passando por Abnegação I e II. A partir de um olhar para o próprio processo de criação, o autor tenta entender os reais “temas” de que as peças tratam, na busca, inclusive, de apontar um caminho para a escrita da última parte da Trilogia Abnegação.

Palavras-chave: violência, perversidade, política, Partido dos Trabalhadores

Abstract: Playwright Alexandre Dal Farra seeks to map the issues that underlie his recent work, from Matthew, 10, through Abnegation I and II. From a look at the very process of creation, the author tries to understand the real “subjects” of the pieces, seeking even to point out a path for writing the last part of his Abnegation Trilogy.

Keywords: violence, wickedness, politics, Partido dos Trabalhadores (Workers Party)

 

I.

Na casa de Otávio. Ele chega em casa e Olga, a sua mulher, o aguarda. Os dois se sentam à mesa de jantar.

OTÁVIO – Eu estou comendo um frango. Isso não é um ato normal?

OLGA – Me parece um ato normal, Otávio.

OTÁVIO – Olga, eu tenho me sentido bastante estranho.

OLGA – Tente não pensar nisso.

OTÁVIO – Sim, eu tenho procurado não pensar nisso.

OLGA – Coma o seu frango, Otávio.

OTÁVIO – Sim. Eu estou comendo o meu frango. Alguém que senta e come um frango, de frente para a sua mulher, é normal. Alguém normal.

OLGA – Sim, meu amor. Você é alguém normal.

OTÁVIO – Sabe, Olga, eu também me acho normal. Estou tranquilo, na verdade. Porque eu sei que é assim que se vive.

OLGA – É assim.

OTÁVIO – É exatamente assim que se vive. As pessoas sentam, comem frango, e assim por diante. E eu estou muito orgulhoso das minhas pregações.

OLGA – Você está muito bem.

OTÁVIO – Sim, o Joelmir disse que eu sou um dos pastores mais promissores.

OLGA – Eu sei disso. Sempre soube.

OTÁVIO – Ele me elogiou pela minha sinceridade. Ele disse que admira a minha sinceridade.

OLGA – Você é muito sincero, Otávio.

OTÁVIO – Sim. Por que esse frango está assim?

OLGA – Assim como?

OTÁVIO – Está ruim.

OLGA – …mas eu temperei bem…

OTÁVIO – O tempero está ruim. E está um pouco mole, Olga.

OLGA – Por que você está falando desse jeito do frango?

OTÁVIO – Porque está horrível. Mole e sem tempero.

OLGA – Me desculpe, Otávio! …ponha um pouco mais de sal…

OTÁVIO – Não adianta. Eu estou enjoado. Comi muita pele mole e sem tempero. O seu frango me causou náuseas.

OLGA – Calma, Otávio. Eu errei no tempero, e no tempo de cozimento. Você tem razão. Você quer que eu frite uns ovos?

OTÁVIO – Não. Eu não quero ovos. Eu quero que você coma o meu frango, Olga. Coma a pele mole do meu frango.

Pega o frango e coloca na cara da Olga, que não abre a boca.

OLGA – Eu não estou com fome.

OTÁVIO – Enfia o frango na cara dela. Coma.

OLGA – Eu não quero, Otávio.

OTÁVIO – Coma, Olga. Coma o frango.

OLGA – Eu não estou com fome. Eu já comi.

OTÁVIO – Coma, Olga.

OLGA – Eu não quero!

OTÁVIO – Enfia o frango no olho dela. Você precisa experimentar, Olga. Precisa experimentar. Coma.

OLGA – Obrigado, Otávio. Eu não quero experimentar o frango.

OTÁVIO – Coma.

OLGA – Não, eu não quero.

OTÁVIO – Coma.

OLGA – Obrigado, eu já comi.

OTÁVIO – Coma o frango, Olga.

OLGA – Dando um tapa no frango, que cai no chão. EU NÃO QUERO!

Os dois olham para o frango caído. Pausa.

(trecho da peça Mateus, 10, de Alexandre Dal Farra, de 2012)

 

Talvez algo tenha se iniciado em uma conversa com Clayton Mariano, parceiro de longa data. Em 2011 ainda, conversávamos sobre Mateus, 10, quando a peça estava sendo escrita. Naquela época, eu tinha decidido que a peça, então, ainda sem título, ia tratar de um pastor evangélico. Nessa conversa perguntei o que ele achava se o pastor estivesse fazendo algo de comum, por exemplo, comendo um frango. Ele riu do outro lado do telefone. “A parte boa é a sua ideia do que seja algo comum: comer um frango”, e acrescentou que isso deveria ser mesmo interessante, porque nesse caso, menos importante do que o ato em si de comer o frango, era a maneira como isso era realizado que interessava. Esse foi o princípio da escrita de Mateus, 10. Ou seja, trata-se de um ponto de vista que deforma o mundo a partir do seu olhar, em uma perspectiva próxima, de alguma forma, ao expressionismo (no sentido mais genérico do termo). Mas, cabe a questão, de onde parte esse olhar que estranha? Ou melhor, que tipo de estranhamento ele gera? De onde estávamos olhando o mundo (ou, no caso, de onde aquele pastor observava o mundo e, por meio do olhar dele, nós também o estranhávamos e deformávamos)?

Na orelha que escreveu para o meu livro Manual da Destruição (2013), o psicanalista Tales Ab’Saber escreve que “O olhar, o sujeito ou a coisa que conta a história deste livro está muito próximo do mundo”. Essa coisa que narra a história, para ele, disseca o mundo com tal violência, e em seus mínimos detalhes, que o leitor como que se sente compelido a estranhá-lo. E Tales conclui, pensando sobre o método de que a coisa se utiliza para a sua dissecação: “este trabalho com o bisturi do mal produz conhecimento, além do seu escândalo estrutural, um tipo de conhecimento que não deve ser conhecido” (DAL FARRA, 2013). Duas ideias que aparecem nessa orelha me são caras e acredito que apontam para buscas que aprofundei e pretendo aprofundar desde 2013. Uma delas, é a ideia de que o narrador do livro talvez seja uma coisa. Esse caráter disforme do narrador, que no fundo se configura como uma espécie de força, ou de puro emanar de linguagem, sem nenhuma pretensa subjetividade de “personagem”, configura algo dessa mesmo força que, por exemplo em Mateus, 10, não se confunde com a personagem do pastor, mas sim, passa por ele (pois que não é explicada pura e simplesmente por quaisquer razões sociológicas ou psicológicas relacionadas ao pastor). Ou seja, de alguma forma, essa coisa que narra o Manual da Destruição, no fundo é a mesma coisa que passa pelo pastor Otávio em Mateus, e no fundo é a mesma coisa que vai estar também como substrato mais profundo e real da pesquisa da Trilogia Abnegação como um todo.

Mas essa coisa tem características próprias. Ela não é simplesmente a linguagem, e não estou aqui com isso querendo reafirmar a primazia da linguagem na minha pesquisa. Ao contrário, essa coisa parece ser algo de específico, algo que tem a ver com uma operação de linguagem, mas, suspeito, é mais vago e amplo do que isso, porque tem uma ressonância direta no mundo. Tentemos determinar um pouco mais o que ela é, ou, ao que ela se refere. Nesse ponto, a outra pista que Tales aponta é também determinante. Trata-se da ideia de que tal análise se utiliza, como instrumento para dissecar a realidade, de um “bisturi do mal”. Aqui, creio que o psicanalista apontou com precisão um caminho que me ajudou muito a compreender o meu trabalho nos últimos anos – e a buscar caminhos para o aprofundamento da pesquisa.

Então, a tal coisa opera sobre a realidade que analisa ou sobre as personagens em que se plasma com um “bisturi do mal”. Em certa medida, ela é esse próprio bisturi. Ou seja, algo nesse impulso analítico que, em sua ânsia, deforma aquilo que ele analisa, é cruel, é perverso; é do mal – e aqui participa de um mal, quero crer, muito maior do que ela, que é um mal nacional, antigo. O próprio Tales tem um estudo sobre a perversão, em que analisa, entre outras coisas, a forma como Machado de Assis estava percebendo uma característica brasileira, que era a formação, em paralelo com a neurose freudiana, de uma certa personalidade perversa. É claro, em Machado, esse olhar, no caso por exemplo do conto A Causa Secreta. Ou seja, tal coisa tem algum tipo de ressonância, historicamente, no Brasil, ou ao menos, na literatura brasileira.

Mas esse bisturi do mal opera sobre um outro mal, que é o mundo. Se estendermos a metáfora, o corpo a ser dissecado está também doente, e a precisão da crueldade e da perversão se torna necessária na mão do médico, para que ele tente extrair o tumor – ou, mesmo que não consiga extraí-lo, para que possa olhá-lo bem de perto (não à toa, o mesmo Tales Ab’Saber escreveu um texto, nunca publicado, que denominou “Mateus, 10: ver bem de perto”). Mas voltemos. A coisa, então, vai dissecando diversas realidades, ou fantasias calcadas na realidade. No caso do Mateus, ela se plasma em um pastor. Ou seja, embora pareça que é o contrário, o pastor, a igreja, toda a trama da peça não são o seu assunto, mas sim, a sua forma. O assunto real da peça é, justamente, a ação dessa coisa, desse bisturi do mal, que se plasmou momentaneamente em um pastor. Creio que essa mesma coisa está presente, como impulso nem sempre visível, na Trilogia Abnegação.

Mas essa coisa, esse ponto de vista que, enquanto espécie de bisturi do mal, gera uma deformação no mundo que ele vê, parece permitir que enxerguemos justamente o que há de pior ali. Como coloca Adorno, em uma frase que tenho citado muito ultimamente, “Para subsistir no meio dos aspectos mais extremos e sombrios da realidade, as obras de arte […] deviam tornar-se semelhantes a eles” (ADORNO, 2012, p. 62). Ou seja, essa deformação que aparece na cena, resultado da ação do bisturi do mal parece ser resultado da junção entre uma violência vinda do próprio olhar com uma outra violência que já estava lá, no próprio mundo.

 

II.

Já na sala de ensaio de Mateus, 10, a certa altura, o pastor colocava uma música em um volume altíssimo, propositadamente, para com ela impedir que os vizinhos escutassem os ruídos da sua briga com a mulher, ou do seu surto. Procurando a música certa para a situação, caí em “Faltou coragem” da banda Calcinha Preta. O pastor, nesse momento, virava a mesa inteira de comida e caía no chão, gritando, enquanto a música algo lenta do Calcinha Preta tocava no último volume. Ali havia algo que também era um princípio que foi desdobrado em seguida, ou seja, essa conjunção entre certa música popular brasileira atual com uma camada de violência, de brutalidade real, que a cena traz. O interesse imenso que a cena automaticamente teve para mim, creio, decorre de que aquela violência que a cena sobrepõe à música, antes de criar um efeito absurdo, muito pelo contrário, parece revelar uma violência e uma brutalidade que já estavam lá. A música parece se assentar sobre tal horror, que a complementa e revela. A violência que o pastor realizava em cena, sobreposta à música, na realidade só revelava uma violência muito mais profunda, subjacente a essa mesma música, que é uma espécie de violência subjacente ao Brasil, que sempre esteve aqui, sempre foi o solo real do país, mas que talvez vá mudando as suas formas de se manifestar ao longo do tempo.

Em Abnegação, algo dessa explicitação de uma violência que já estava lá pauta boa parte da peça, inclusive, de forma próxima ao que ocorre em Mateus, no momento em que a personagem de José espanca o personagem Celso, ao som altíssimo da música “Dodge ram”, do cantor de sertanejo universitário Israel Novais. Aqui, a ostentação sertaneja, a sua pura afirmação de uma vontade de sexo, dinheiro e carros, explicita na cena o seu reverso também violento, dominador e cruel. É como se a peça inteira de certa forma emanasse desse mesmo movimento, de explicitação de uma violência que está no próprio trato entre as personagens. Creio que isso foi o que realmente gerou, em uma camada profunda, a necessidade da escrita de Abnegação. No entanto, houve também um assunto que apareceu, e que como que “condensou” essas sensações bastante vagas e esparsas em torno de uma questão real e concreta. Esse assunto foi o PT.

 

III.

No filme O ABC da Greve, de Leon Hirszman, já no final da trajetória que o documentário mostra, vemos o momento em que a câmera, tendo passado por uma multidão de milhares de trabalhadores em greve, em que a maioria das pessoas filmadas opinava pela continuação da mesma, chega finalmente ao palanque, onde Lula, então líder sindical, prepara-se para se dirigir à multidão. Lula sobe ao palanque e, em um momento que já se tornou célebre, diz: “eu gostaria de pedir aos trabalhadores, que quisessem me dar um voto de confiança, à minha diretoria do sindicato. E que aprovassem um acordo que é péssimo, mas que (sic) nós precisamos brigar pela volta da diretoria do sindicato”. O filme termina então em certo tom de lamento, e, enquanto vemos Lula entrar em um carro que abre caminho no meio da multidão, uma voz off nos explica que os empresários das fábricas não perderam um só centavo em todas as greves do ABC: todos os seus prejuízos foram ressarcidos pelo governo de então; e mais, que a partir daquele momento preciso, terminariam por completo as greves.

Antes disso havíamos visto a mobilização impressionante, em quantidade e intensidade, dos trabalhadores das fábricas do ABC, lideradas pelo sindicato, cujo principal porta-voz era Lula. Tínhamos percebido também a disposição da polícia a reprimir os trabalhadores, as difíceis negociações, e de alguma forma imaginamos que a decisão dos cabeças do sindicato apresentou-se provavelmente como a única possibilidade para que não se passasse então a um inevitável embate mais violento e incisivo, pois se tratava de um momento de evidente acirramento dos conflitos, já que a greve estava tornando-se já insuportável, tanto para o governo, quanto para as fábricas. A decisão de Lula, infelizmente para as pessoas de uma esquerda mais contundente que acompanharam o processo de perto (como é o caso do cineasta em questão), foi pelo acordo – por um processo pacífico, sem maiores conflitos. Isso é o que imaginamos do que se apreende das imagens, e é o que o filme aponta, com muita clareza. O cineasta encerra o filme de maneira algo tétrica: “Os trabalhadores deram o voto de confiança pedido por seus líderes. 60 dias depois do seu início, o maior movimento de trabalhadores desde 1964 chega ao seu final”. O que Hirszman não sabia, pois que o filme foi feito no calor da hora, é que, se ali terminava algo, iniciava-se também uma outra coisa, que teria papel absolutamente determinante e decisivo na história do país: ali gestava-se o que depois de alguns anos denominou-se o Partido dos Trabalhadores.

No entanto, o final do filme é forte não só pelas afirmações que faz, mas sobretudo por um jogo mais sutil, característico do assunto em questão: o jogo entre o palco e os bastidores, entre o que é visível a todos e o que acontece por trás das câmeras – daí vem a força da entrada de Lula no dito carro, que abre espaço no meio dos trabalhadores, um pouco antes do final do filme. Não se sabe para onde ele vai, com quem está dentro do carro, assim como não se sabe em que termos os acordos foram feitos, quais os reais conflitos em questão. Os bastidores, assim, fazem parte do jogo, em certa medida determinam-no; mas fazem parte justamente enquanto aquilo que é absolutamente inacessível, desconhecido, sempre acessado de forma indireta, por meio de terceiros. É esta contradição entre o visível, o aberto, o claro, por um lado, e o desconhecido, o misterioso, aquilo que não é visto mas faz parte do jogo, por outro, que este projeto pretende reproduzir, inclusive na sua própria forma de trabalho, no seu método, e também no seu produto.

(Trecho inicial do projeto Abnegação, com que o Tablado de Arruar concorreu à Lei de Fomento ao Teatro em 2013, que possibilitou o financiamento do início da pesquisa).

 

O trecho acima, retirado do projeto com que pleiteamos o apoio da Lei de Fomento ao Teatro para o projeto de criação da peça Abnegação, indica muito em quais aspectos o assunto Partido dos Trabalhadores nos interessava naquele momento. Sem negar a importância e a centralidade da liderança do partido e de Lula, interessava-nos entender os limites desse partido que funcionara como uma espécie de frente de esquerda no passado, e que agora se tornara governo, tendo mais e mais se distanciado da esquerda. Mas, naquele momento, mais do que tratar do PT, das suas contradições, de forma clara, nos interessava explorar na cena, no campo da linguagem, alguns sintomas que percebíamos no contato com o material relacionado ao partido. Ou seja, nosso intuito era que o PT fosse uma espécie de material que geraria a própria linguagem da peça.

Uma dessas características que percebíamos na nossa relação com o partido era um certo jogo entre o que é visto e o que permanece escondido, entre o que é falado e o que não é falado, que parecia apontar para algo que estruturava o próprio poder (um jogo em que o PT só fez se incluir – mas que, no caso do PT, fica um pouco mais cínico do que no caso dos outros grandes partidos, justamente porque ele veio de fora). Esse jogo, no entanto, não era previsível. Por vezes, aquilo que era dito era justamente o que precisava ser escondido; por outras vezes, o que era mostrado contradizia o que se falava; e ainda em outras vezes, esses dois planos se igualavam. Uma cena da peça exemplifica uma das formas que essa contradição ganha de maneira clara:

 

Flávia dança, começa um strip tease. José e Paulo observam. Depois de algum tempo, Jonas se levanta, desliga a música, agarra o braço da Flávia e a leva para um canto. José e Paulo olham para Jonas e Flávia fixamente.

JONAS – O que você está fazendo?

FLÁVIA – O quê?

JONAS – Não foi para isso que a gente te… pagou, eu pensei que você não…

FLÁVIA – sem entender. O quê?

JONAS – Você começou a tirar a roupa!

FLÁVIA – É.

JONAS – “É”! Como assim? Então você agora faz isso? Tira a roupa, então?…

FLÁVIA – Sei lá ué!

JONAS – Como que tentando manter o segredo, mas sem conseguir se conter, sempre volta a levantar a voz. Como “sei lá”!

FLÁVIA – Não sei, eu não pensei muito…

JONAS – Então agora você está trabalhando assim?…

FLÁVIA – Não estou nada. Estou igual. Exatamente igual.

JONAS – …mas um tempo atrás eu te convidei para sentar na mesa, e… E agora você já está aí desse jeito…

FLÁVIA – Hum?…

JONAS – …e eu achei que você não ia fazer esse tipo de coisa… Eu achei que você não era desse tipo, que você não era assim…

FLÁVIA – …mas eu não sou. Não sou assim!…

JONAS – Não?

FLÁVIA – Não. Eu não sou assim. Eu não ia tirar a roupa, na verdade.

JONAS – Mas você tirou uma parte da roupa!

FLÁVIA – Não. Eu não ia fazer isso.

JONAS – Mas você fez isso.

FLÁVIA – O quê?

JONAS – Tirou uma parte da roupa!…

FLÁVIA – Quando?

JONAS – Agora há pouco, ali…

Ele olha para trás, os outros estão olhando para eles. Pausa.

FLÁVIA – sensualizando. Ali? Em cima daquela mesa ali? De pé ali em cima, dobrando os joelhos, agachando, assim?… É isso?…

JONAS – É… Bem ali em cima… Agora mesmo… Eu nunca esperaria isso de você, Flávia, não achei que você fosse… Eu não achei que você iria fazer esse tipo de coisa…

FLÁVIA – Eu sei. Eu não iria fazer esse tipo de coisa.

JONAS – Ainda olhando para os que estão na mesa. Celso bebe meia garrafa de champagne, de um gole só. Não?… Você não faz isso, então?…

FLÁVIA – com sinceridade total. Não. Eu, não.

Ele volta a olhar para ela.

JONAS – Então está tudo bem. Eu… Fiquei com muitas [saudades]…

Flávia beija ele antes que complete a frase. Os dois se beijam longamente. Celso se levanta, visivelmente bêbado.

JONAS – Olhando para a mesa, ainda meio influenciado pelo beijo. …e você não conhecia eles muito bem, então… só de vista?…

FLÁVIA – Não conhecia… Eu nunca tinha visto nenhum deles.

Jonas olha para eles. Pausa. Jonas quieto, com um braço em volta da Flávia. Paulo e José olham para ele frontalmente.

(Trecho de Abnegação I)

 

Nesse pequeno trecho, a contradição evidente entre o que é visto e o que é dito chega ao seu limite, forçando o cinismo das personagens e do público, e gerando o riso. A capacidade de negar repetidamente o que é evidente interessava enquanto procedimento, e gerava situações concretas em cena. Assim como dizíamos no trecho citado do projeto, tratava-se não de tratar o PT e a política nacional necessariamente como assunto, mas, sim, como forma. Nesse caso, creio que não seria exagero pensar que, em Abnegação, o PT não é o assunto da peça, mas sim, a sua forma. Arriscaria dizer que o assunto real da peça é, novamente, a operação daquela mesma coisa, ou seja, a violência profunda brasileira, uma das formas da sua emanação. Ou seja: a coisa, que de alguma maneira é também a violência (enquanto essa camada ancestral da violência brasileira), aqui se configurou enquanto cúpula de um partido político. O PT foi apenas uma concretização formal, uma espécie de carcaça em que esse assunto mais amplo pode se configurar.

Mas passemos ao Abnegação II – o começo do fim, em que as coisas talvez se clareiem e ao mesmo tempo se compliquem um pouco.

 

IV.

Abnegação 2. Foto: Jennifer Glass.
Abnegação 2. Foto: Jennifer Glass.

Na segunda parte da trilogia, parece-me que a grande força da peça é uma maior libertação do que denominei como assunto real e mais profundo da peça anterior, que aqui ganha uma camada própria, em que ele aparece de forma mais clara, mais próximo de se revelar enquanto tal operação, ou seja, enquanto o tal bisturi do mal. A coisa começa a mostrar a sua cara de maneira mais direta, mais frontal.

A peça é formada por duas camadas. Em uma delas, há uma narrativa baseada no assassinato do ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel. Trata-se de cenas mais claramente dramáticas, com personagens com curvas e conflitos, desdobramentos dos conflitos, etc. Assistimos, nessa camada (aparentemente a principal), à trajetória de Jorge, um recém-eleito prefeito que se vê enredado em uma trama criminosa que ele mesmo ajudou a criar e que agora quer destruir, sem ter forças concretas para tanto e sendo, ele próprio, destruído por ela. Paralelamente, uma outra camada, feita de cenas que se interpõem na estrutura, cria aparentemente uma espécie de fundo para isso. Trata-se de cenas mais abstratas em termos de situação; ali não se sabe exatamente onde elas se passam, nem tampouco é possível determinar quem são as personagens por trás daquelas vozes (na peça, tais cenas são feitas sem nenhuma movimentação, os atores formam apenas uma fileira e falam o texto, todos voltados para o público):

MENINA – Eu não tinha reparado nessa cicatriz. Como ela surgiu?

HOMEM – Em uma sessão de tortura.

MENINA – Que horror. Te torturaram?

HOMEM – Modo de dizer. Me queimaram com o garfo quente e deram choques no pau. E enfiaram coisas no meu cu.

MENINA – É horrível. Eu não sabia que essas coisas aconteciam mesmo! Como é?

HOMEM – Chega um cara e enfia um troço dessa largura no teu cu, você tenta impedir e ele te prende e enfia à força até rasgar.

MENINA – Nossa, é horrível mesmo.

HOMEM – Um troço com uma ponta, tipo um cone, que vai ficando mais largo na base, e os caras ficam enfiando aquilo com toda força até te rasgar o teu cu.

MENINA – Deve doer muito, né?

HOMEM – Muito. Mas eles colocam uns panos na tua boca e te chutam a cara se você grita muito. Aí você não se controla mais, e eles te chutam. Dão com a ponta da bota na tua boca, aqui assim.

MENINA – Meu Deus!…

MULHER – Parem de falar sobre isso.

HOMEM – Ela não gosta.

MULHER – Acho nojento.

MENINA – Mas e a cicatriz.

MULHER – Eu sei a história. Essa aqui foi a tesoura quente, né?

HOMEM – É. Eles encostam a tesoura quente, mas quase sempre também dão umas cortadas na pele com a tesoura. É uma tesoura enferrujada e velha, que não corta muito bem, então eles tem que apertar com muita força e puxar a pele assim. Direto eles fazem isso.

MENINA – Isso me lembra uma história. Um dia eu estava voltando para casa com umas amigas e uns mendigos pegaram a gente. Eles levaram a gente para o bequinho e mataram todas as amigas na minha frente. (Para Mulher) Sorte que você não estava lá.

HOMEM – Talvez tenha sido eu.

MENINA – O quê?

HOMEM – Talvez tenha sido eu. Às vezes eu faço isso. Tem a ver com uns problemas com as famílias, entendeu? Outro dia eu matei umas meninas assim. Não sabia que era você… A gente sempre deixa uma. Foi no bequinho ali, né?

(Trecho de Abnegação II – O começo do fim)

 

V.

Creio que haja algumas armadilhas em Abnegação II, no que se refere à tentativa de elaborar um discurso sobre a peça. Percebo isso no momento em que eu tento dar conta de falar sobre a peça, e sinto uma certa dificuldade de fazê-lo. Nessa tentativa, fez ainda mais sentido para mim o fato de que muitas pessoas diziam sair “sem palavras” da peça. Creio que essa dificuldade de formular um discurso sobre o que foi visto é real, e decorre dessas armadilhas, que fazem com que tendencialmente desenvolvamos sobre a peça um discurso que claramente não dá conta da experiência que tivemos ao assisti-la, e, assim, ficamos com a sensação de que o que dizemos sobre a peça é insuficiente. Foi uma sensação clara que me ocorreu ao tentar, eu mesmo, discursar sobre ela.

A principal dessas armadilhas é, a meu ver, uma inversão geral na peça, em termos do seu assunto, de que irei tratar adiante. Mas há uma outra armadilha (no fundo, talvez a mesma), que se refere à leitura das próprias cenas “de fundo”, por exemplo, o trecho citado acima. Nele, já é possível imaginar os aparentes “assuntos” dessas cenas: sexo, violência. Sim, esses são assuntos dominantes, mas, novamente, o que realmente está operando, o assunto profundo das cenas, não é isso, mas sim, de novo, a tal coisa, ou seja, a própria maneira com que o sexo e a violência são tratados – a forma como eles aparecem. Aqui mais claramente (mas ainda assim, algo difícil de perceber à primeira vista), como lá atrás, no jantar do Pastor em Mateus, 10, o que importa não é a coisa em si, o acontecimento, mas sim, a maneira como ela é olhada, o fato de que ela é dissecada na nossa frente e, no caso, a dissecação carrega a mesma marca do horror daquilo mesmo que é destrinchado. Trata-se de um olhar perverso, cruel, frontal, que não desvia do dado aterrorizante e terrível que encontra à sua frente, por pior que seja – na medida em que se depara com coisas terríveis, opta por olhá-las mais, e mais de perto. Creio que essa característica pertence, novamente, à mesma coisa detectada por Tales no Manual da Destruição, ou seja, ao tal bisturi do mal. Mas, aqui, nessas cenas “de fundo” que permeiam a peça, ela parece se mostrar muito mais diretamente do que antes, porque, poderíamos dizer, está em seu habitat mais próprio: aqui, ela olha para o terrível, para o horror, que já estava lá, no mundo, e que esse olhar, também ele terrível, encontra, gerando uma espécie de fusão de horror que, para mim, parece ser um caminho potente, justamente, para neutralizar o primeiro mal, que nos aterrorizava e aterroriza, ou seja, olhando-o frontalmente, e para isso, nos utilizando daquilo que, em nós mesmos, também participa desse mal. Daí que, nessas cenas, muitas vezes o riso apareça. Creio que ele decorra justamente (para horror dos moralistas) da percepção de que esse mal que vemos ali (e que identificamos com algo que conhecemos do mundo) já estava de alguma forma em nós, da percepção de que há algo de identificável nesse mal, que nos aproxima dele: de alguma forma, em algum lugar, identificamos em nós mesmos a maneira como a personagem discorre com clareza e detalhe sobre as piores barbaridades – daí o riso, e daí também a sensação de que “não poderíamos estar rindo disso”, que muitos relatam, e que, a meu ver, não passa de uma vergonha imensa de perceber que fazemos parte disso, ou seja, que essa violência, essa operação violenta, essa perversidade, também é nossa. Ninguém passa ileso por isso: fazer parte de uma sociedade é algo de profundo, e aquilo que identificamos nessa sociedade está profundamente entranhado em nós mesmos, porque viver em um mundo significa tê-lo dentro de nós, mesmo que não queiramos e que o detestemos ao máximo, ou seja, existe algo dentro de nós que precisa ser exposto para que possa ser destruído, junto com o equivalente externo.

O policial que decide sobre a vida das suas presas na subida do morro, baseado na sua própria vontade ou não de matá-las, mesmo sabendo que está sendo filmado; o dono de terras que escraviza os seus trabalhadores; a multidão que lincha o ladrão que tentou roubar alguém; e tudo o que conhecemos de trás para frente, tudo isso, e aqui a questão se torna espinhosa, está, ao mesmo tempo, dentro de cada um de nós. O riso que essas cenas provocam em parcela do público denuncia o nível que chegamos de cinismo em relação a esse fato. Ninguém é inocente.

Mas essa tal operação violenta que estrutura as cenas, poderia, no entanto, ocorrer com qualquer tema. O tema da própria violência, e do sexo enquanto violência, são como que assuntos que tendem a se fundir à coisa que os opera – mas podem também fornecer um caminho a meu ver equivocado de leitura: tratar-se-ia de cenas sobre a violência urbana, etc. As cenas são sobre outra coisa, as cenas são sobre a maneira como essa violência aparece ali, como ela é manipulada. A “violência urbana” é, assim, a forma que esse assunto mais profundo encontrou para virar cena.

A outra armadilha na leitura da peça, esta bem mais determinante, está na ideia de que a peça é sobre o caso Celso Daniel, e mesmo que a peça é sobre o PT. Essa leitura inicial é inevitável, e se refere a uma estratégia (que inicialmente eu mesmo não tinha percebido totalmente) que está na estrutura da peça, e que faz com que ela tenha o efeito que tem. Ou seja, aparentemente o assunto é mesmo esse, e isso é importante para a nossa relação com a peça. A personagem Jorge, enquanto figura de identificação de matriz bastante reconhecível, cristã inclusive, tem uma trajetória clara de mártir, e parece o tempo todo convidar à identificação com ele, que é também uma identificação com alguns princípios de um PT antigo ou ideal, efetivamente de esquerda, uma alternativa à política nacional, etc. Essa trajetória como que rouba totalmente a nossa apreensão mais “cognitiva” sobre o espetáculo, de forma que rapidamente sentimos que sabemos do que a peça está falando, acompanhamos o seu assunto – e aqui evidentemente o momento político em que estamos, em que parte dos que se dizem de esquerda se sentem compelidos ou quase forçados mesmo a apoiar um governo que não é de esquerda por conta de uma suposta ameaça de direita que não acho real, aprofunda a tendência de temer que a peça “faça o discurso da direita”, e desvia o público ainda mais, das provocações reais que, a meu ver, o espetáculo propõe.

Nessa leitura da peça, as cenas paralelas aparecem como uma espécie de pano de fundo, bastante estranho até, que não sabemos direito como conectar com a história principal, mas sentimos como uma espécie de força (ou de coisa, mesmo) que se aproxima mais e mais dessa história principal. Aqui, de novo, creio que a leitura intelectual que a peça sugere na verdade esteja invertida. Embora ela forneça a tal história, o tal assunto, no fundo, é só uma desculpa, um veículo, para que possa vir à tona uma outra coisa, que está subjacente a ele. Creio que, para criar uma leitura que fizesse jus ao efeito que a peça realmente tem, talvez essa inversão seja fundamental. As cenas de fundo são na verdade o assunto da peça, e as outras cenas são só a carcaça utilizada para que elas venham à tona.

Talvez, para sermos ainda mais justos, poderíamos pensar que o assunto da peça é a junção entre as duas coisas. É como se a trajetória do prefeito Jorge fosse ao mesmo tempo uma alegoria do que a peça realiza também formalmente: a vontade de transformação, que aparece ali como o motor mais profundo da ação de Jorge, se aparece de maneira mágica e sem mediação, paga necessariamente o seu tributo a um passado brasileiro com o qual ele não gostaria de ter que lidar (um passado que não para de ser presente também). Recentemente, Eliane Brum escreveu que “O Brasil do futuro não chegará ao presente sem fazer seu acerto com o passado” (BRUM, 2015). Creio que isso ocorre concretamente na peça. O “acerto com o passado” não veio, então; o passado retorna, no caso, como essa força, essa coisa, perversa e violenta, que acaba por solapar tudo.

Nesse sentido, Abnegação II se inclui em uma pesquisa muito mais longa, que vem desde, no mínimo, Petróleo (2011), peça minha encenada fora do Tablado de Arruar, passando pelo já citado romance Manual da Destruição. Essa pesquisa se refere justamente a essa ideia, que não é nova, mas que aparece, penso, de uma forma bastante específica, a de que é possível utilizar do veneno para enfrentar a doença que ele próprio gera. Um tipo de crença “homeopática”, talvez.

Nesse sentido, creio que Abnegação III talvez tenha uma missão, qual seja, a de auxiliar um pouco mais a leitura do procedimento que se está criando – e talvez ela possa, inclusive, jogar luz, retrospectivamente, sobre a parte um e dois da Trilogia. Trata-se de explicitar, em alguma medida, de alguma maneira que não sei qual é, o método: de mostrar um pouco mais o próprio bisturi, expô-lo também de maneira mais evidente; talvez, a partir de mais uma reviravolta, em que ele, de alguma forma, se disseque a si mesmo.

Peço desculpas pelo texto de certa forma fechado sobre o meu próprio processo, mas foi a única possibilidade de buscar os fios reais que esta pesquisa está puxando, e não cair, eu também, em uma discussão mais exterior, talvez verdadeira também, mas menos ampla e profunda do que essa.

 

Referências bibliográficas:

ADORNO, Theodor. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2012.

BRUM, Eliane. “Por quem rosna o Brasil”, El País, 20 de julho de 2015. Acessado em 25 de julho de 2015. Disponível em:

http://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/20/opinion/1437400644_460041.html

DAL FARRA, Alexandre. Manual da Destruição. São Paulo: Hedra, 2013.

 

Alexandre Dal Farra: Mestre pelo Departamento de Letras Modernas da FFLCH – USP, na área de Literatura Alemã, é dramaturgo, diretor e escritor. Indicado a diversos prêmios, tais quais, Prêmio Aplauso Brasil, Prêmio APCA, Prêmio Questão de Crítica, e vencedor do 25o Prêmio Shell de melhor Autor, além do prêmio Cooperativa Paulista de Teatro. Suas peças foram apresentadas nas principais cidades do Brasil e no exterior, em Berlim.

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