Cena de experimentação

Crítica de Duo sobre desvios, criação de Cadu Cinelli e Fabrício Moser

28 de março de 2013 Críticas
Foto: Renata Souza.

A característica marcante de Duo sobre desvios, em cartaz em março no Art Hostel Rio, é o fato de que a ação investigativa constrói sua cena. A investigação sobre o abandono não se dá propriamente com uma proposição em que os atores mostram contornos decididos a respeito do tema. Tudo se passa como uma instância que vai se formando ao longo da exposição, mesmo que, como sabemos, exista uma partitura de falas e ações preparadas e ensaiadas anteriormente. Outra coisa que conta para esta perspectiva é que se trata de um trabalho que não se encaixa em determinações de linguagens, mas se forma pelo atravessamento entre a dança e a atuação teatral, ou seja, modos de representação que nos ligam a essas ideias. Existem ainda outros atravessamentos entre poesia, texto dramatúrgico propriamente dito, relatos autobiográficos e sobre o processo de criação, projeções de imagens e música que compõem a dramaturgia elaborada em conjunto por Fabrício Moser e Cadu Cinelli.

Esta característica de montagem que o trabalho expõe não parece ser uma opção aleatória ou mesmo baseada em algum tipo de modismo, mas apresenta traços suficientes para que tenhamos a noção de que se trata de seu modo possível. Tornar público um tema íntimo sempre requer uma carpintaria, um trabalho estético que não está dado. A cena revela muito das indecisões, dos colapsos, das tentativas e erros dos seus atuantes que, certamente, resultam das experiências na sala de ensaio. Esta é uma direção promissora, instigante para dar conta do abandono e da recusa que está implícita. Talvez, só mesmo fazendo paradas, voltando, fragmentando e repetindo os acontecimentos é que se pode ter uma ideia das coisas que traga algum conforto e nos faça continuar.

Nesta perspectiva de montagem está instalada uma ideia de tempo que não se limita a um percurso progressivo, tal como o da imagem de uma flecha, mas a ideia de um tempo composto por diferentes espessuras que determinam, igualmente, intensidades diferenciadas que nos dão a dimensão do meio e não almeja o esclarecimento sobre origem ou finitude. A ideia de duo já pressupõe duas vozes em composição, assim sendo, a hipótese se configura de antemão no título pela insinuação de um sentido ambíguo em que dois não se encontram completamente.

Mas a pergunta que fica é o que significa tomar o gesto de montagem como elemento formador de um trabalho estético. A montagem, para se constituir como um gesto, não pode ser apenas a reunião de materiais originalmente distantes, agora colocados em uma nova rede, lado a lado. O tratamento estético dos materiais nesta nova reunião, que é a dramaturgia cênica, é que vai possibilitar que um novo conjunto de sentidos apareça e dê lugar para outras visões dos lugares, outras sensações e outras possibilidades de desejo e modos de estar no mundo.

A cena começa quase vazia com Cadu Cinelli e Fabrício Moser em uma coreografia que trabalha com as distâncias e com o espaço como base, fazendo uso das paredes e do chão como suporte para os corpos em formas de breves instantâneos – paradas do movimento e recomeço da ação de corpos que se abandonam na vertical e na horizontal. Na parede superior ao fundo são projetadas imagens de lugares abandonados, deixados para trás, que dialogam com a composição gestual da dança executada. As imagens estão sincronizadas com sons que também nos ligam à ideia de abandono como um telefone que toca sem que ninguém o atenda e sons de gotejamento. Os atuantes, como ressaltei, repetem a coreografia e trazem a sensação da dificuldade das retomadas, ou introduzem o duo como força motriz – o movimento acontece pela conjugação de impulsos trocados por corpos-que-falam. Cadu e Fabrício dialogam conteúdos de imagens de movimentos e suspensões. Se por um lado a escolha dos textos parece seguir um fluxo consistente, somada a uma proposta de aproximação com o público (e entre os dois) em que a auto-exposição é parte fundamental do trabalho, a direção mostra alguma fragilidade no que diz respeito ao apuro das falas e ações.

Logo em seguida a esse momento inicial, os atuantes desfazem os papéis determinados e entram em diálogo com o público convidando quem quiser “deixar” algum objeto, se desfazer de algo. Eles servem bebidas, oferecem cigarros e chocolates atentando para o fato de que o abandono pode ter vários sabores, enquanto vão pouco a pouco desfilando narrativas pessoais relacionadas a objetos dos quais se desfazem pelos cantos. A cena tem graça e leveza e, como sabemos, é um modo de criar espaços em que o público possa se reconhecer ativo na realização do trabalho de arte. No caso, o público se faz cúmplice trazendo a memória suas próprias lembranças e objetos de abandono. Porém, mesmo tal intenção acaba perdendo algo de sua potência pelo modo pouco preciso, um pouco rápido demais, que compromete a ideia de um tempo estendido e, às vezes, tende para o gratuito. De algum modo, os atuantes parecem temer eles mesmos a abertura que empregam na cena e criam barreiras sutis para uma situação de copertencimento mais plena.

Uma segunda coreografia é executada na terceira cena ao som de Girls Just Wanna Have Fun, ao mesmo tempo em que desenhos de Leonilson estão em projeção na parede, perfazendo outro duo com a cena. Um belo momento do trabalho em que o elemento de precisão se mostra com mais vigor. A precisão está também na ideia estética da (des)junção entre corpos e desenhos e aponta para a força da criação. Aqui aparece mais claramente um caminho para a configuração de elementos estéticos a partir de narrativas pessoais, ou mesmo das coisas anódinas, do que é o corriqueiro em nossas vidas, o que o traço de Leonilson ressalta pelo seu inacabamento, por sua característica de fragmento que alude a alguma coisa que está em curso, seja para construir, seja como resto de algo que já foi.

Mais adiante o desfazimento deixa de ser desvio e passa pela imposição da destruição. A quarta cena é um emaranhado de poemas de Leonilson, trechos de Vermelho Amargo, de Bartolomeu Campos de Queiroz e intervenções autorais de Cadu e Fabrício. Em seguida, ao som da composição Hyperballad de Björk eles impetram um violento movimento de desordem e destruição dos objetos e desfazem-se também de suas roupas. A veemência da ação parece arrefecer a sensação de desviante e se mostra como uma objetivação, como uma atitude de quem quer decidir por uma saída. A letra de Björk diz algo como: “nós vivemos numa montanha, bem lá no topo há uma bela vista, (…) todas as manhãs eu caminho para a beirada e jogo pequenas coisas fora como: partes de carros, garrafas e facas ou qualquer coisa que eu encontro em volta”. Mas ela também fala desse jogar fora como um hábito, como uma coisa que se faz sem que seja necessário pensar ou frisar, mesmo que seja um mau hábito, se quisermos. Neste sentido é possível entender que o movimento impositivo da destruição é que parece desvio e a sensação que resta é a de assistir a um ensaio em que os atuantes precisam fazer isso para chegar a outro lugar.

Isto se ilumina na cena seguinte com o bom duo com o texto de A gaivota, de Anton Tchekhov. A destruição torna-se ponte. Essa cena concretiza a potência do trabalho e, talvez, uma qualidade de presença e de fala, ambas sem esforço, desejável para o todo. O cansaço pode ser uma das causas responsáveis pelo acontecimento estético, mas certamente não se pode deixar de considerar a escolha de um único objeto transformado do texto de Tchekhov como objeto originário para as ações, o abandono de si e da fala declamada. O desvio retorna ao sutil desfazendo a ideia de gênero e ressaltando a possibilidade do amor entre as pessoas e que novamente faz uma curva em direção à dor da perda como ondulações, certamente mais destrutivas do que as anteriores ações explicitamente violentas.

Dinah Cesare é Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na Linha de Pesquisa Poéticas Interdisciplinares, é mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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