O Narrador – sentido da criação e seu endereçamento ao outro

31 de agosto de 2015 Estudos

Vol. VIII, nº 65, agosto de 2015

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Resumo: O texto é uma análise da performance O Narrador da Companhia Inominável, dirigida por Diogo Liberano. A perspectiva crítica procura discutir as possibilidades de transmissibilidade que o constituem em interlocução com algumas proposições do narrador e o declínio da experiência segundo Walter Benjamim.

Palavras-chave: Walter Benjamin, O Narrador, Aura, Declínio da Experiência, Companhia Inominável

Abstract: This article is an analysis of the performance of O Narrador da Companhia Inominável, directed by Diogo Liberano. The critical perspective discusses the transferability of possibilities that are in dialogue with some propositions of the narrator and the decline according to Walter Benjamin experience.

Keywords: Walter Benjamin, O Narrador, Aura, Experience Decline, Companhia Inominável

 

A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua autoridade. Em outras palavras: suas histórias remetem à história natural (BENJAMIN, 1994, pg. 208)

O Narrador, performance da Companhia Inominável com atuação de Diogo Liberano apresentada no mês de maio no Sesc Copacabana e que rumou em temporada para São Paulo, é inspirada no texto “O narrador. Considerações sobre a obra de Nickolai Leskov” de Walter Benjamin escrito em 1936. Traçando questões que aparecem como temática fundamental para Benjamin em outros textos, o ensaio desdobra uma série de argumentos sobre a impossibilidade da noção tradicional de transmissão da experiência na modernidade. Se pudermos aqui fazer parte daqueles que percebem na temática benjaminiana sobre a experiência, ou de seu olhar melancólico sobre a experiência, menos um desejo de restituir um tempo perdido e mais a investigação de novas maneiras de transmissibilidade que advêm com as transformações dos modos de produção, investigaremos a performance O Narrador por uma perspectiva que alinhava possíveis relações entre narração, a criação e a destruição como gesto de endereçamento ao outro.

Em um primeiro movimento para desenvolver nossa hipótese gostaria de tomar a citação de Benjamin que inicia esse texto. Ela é um pequeno, mas fundamental fragmento do referido ensaio sobre o narrador. Como considerar a sanção apontada por Benjamin à figura do narrador? Se “é da morte que ele deriva sua autoridade”, de quê morte nos fala o ensaio? E o quê pode querer dizer com a proximidade entre o narrador e a história natural? Talvez uma das mortes mais fundamentais que advém com a modernidade como legado para o contemporâneo, seja mesmo a morte do autor como sujeito absoluto daquilo que escreve. Lembramos aqui de Roland Barthes para quem, numa leitura quase selvagem de Hegel, o rumorejar da natureza na linguagem dos gregos transforma-se na modernidade, na natureza do próprio homem moderno (BARTHES, 2004, p. 97) que defendemos aqui, se estruturar entre os significados da linguagem e a morte dos conteúdos comunicáveis.

Certamente existem diversas chaves de leitura para as afirmações de Benjamin. Sabemos que a escrita benjaminiana perfaz uma dialética em sua forma, mas uma dialética que não se fundamenta tradicionalmente como formuladora de uma tese. Assim, do mesmo modo que sua escrita abre um campo teórico de liberdade, impõe um esforço teórico do mesmo nível. Essa escrita crítica se realiza portanto, no esforço metodológico de pensar em desvio circunscrevendo uma área de trabalho para a noção de transmissibilidade que aparece na performance como uma espécie de limiar, ou seja, como espaços-tempo de transição e de variação intelectual e sensorial.

 

Preâmbulo

Eça de Queirós escreveu A perfeição, um conto em que narra o desejo de Ulisses em voltar à Ítaca após um longo período de oito anos sob os auspícios da Deusa Calipso. A escritura do conto revela a nostalgia do herói pela força do perecimento, do sofrimento e do trabalho como elementos paradoxais de transformação vivificante:

Oh Deusa, não te escandalizes! Mas ainda que não existissem, para me levar, nem filho, nem esposa, nem reino, eu afrontaria alegremente os mares e a ira dos Deuses! Porque, na verdade, oh Deusa muito ilustre, o meu coração saciado já não suporta esta paz, esta doçura e esta beleza imortal. Considera, oh Deusa, que em oito anos nunca vi a folhagem destas árvores amarelecer e cair. Nunca este céu rutilante se carregar de nuvens escuras; nem tive o contentamento de estender, bem abrigado, as mãos ao doce lume, enquanto a borrasca grossa batesse nos montes. Todas essas flores que brilham nas hastes airosas são as mesmas, oh Deusa, que admirei e respirei, na primeira manhã que me mostrastes estes prados perpétuos: – e há lírios que odeio, com um ódio amargo, pela impassibilidade da sua alvura eterna! (…) Considera, oh Deusa, que na tua Ilha nunca encontrei um charco; um tronco apodrecido; a carcaça dum bicho morto e coberto de moscas zumbidoras. Oh Deusa, há oito anos, oito anos terríveis, estou privado de ver o trabalho, o esforço, a luta e o sofrimento… Oh Deusa, não te escandalizes! Ando esfaimado por encontrar um corpo arquejando sob um fardo; dois bois fumegantes puxando um arado; homens que se injuriem na passagem duma ponte; os braços suplicantes duma mãe que chora; um coxo, sobre sua muleta, mendigando à porta das vilas… Deusa, há oito anos que não olho para uma sepultura… Não posso mais com esta serenidade sublime! Toda a minha alma arde no desejo do que se deforma, e se suja, e se espedaça, e se corrompe… Oh Deusa imortal, eu morro com saudades da morte! (A Perfeição, publicado originalmente em 1897 na Revista Moderna).

O realismo de Eça de Queirós é um confronto ao sonho. O Eu lírico clama por uma natureza em mutação. Não seria a substância da própria criação presente nas palavras de Ulisses? Uma substância que nasce justamente de suas tensões? Ou talvez, se quisermos, podemos ler a morte da qual deriva a sanção do narrador como puro objeto em transformação, em declínio e putrefação que só produz leitura por meio de seus traços, de seus apagamentos e obscuridade. A questão seria a de criar uma narrativa também em declínio, que possa dar a ver a criação mortificada em seus cânones tradicionais, sancionada pela morte do status quo. Para Benjamin, após o choque gerado pela Primeira Grande Guerra deixando os soldados que retornaram mudos de experiências comunicáveis, o reduto da experiência possível era a barbárie positiva que surgia em alguns expoentes da arte ao criarem no vazio: “homens implacáveis que operaram a partir de uma tábula rasa” (BENJAMIN. 1996, p. 116).

Uma das questões importantes para Benjamin neste momento é tentar criar resistência às crescentes forças fascistas e à varredura aurática operada pelos meios de comunicação: “Na substituição da antiga forma narrativa pela informação, e da informação pela sensação reflete-se a crescente atrofia da experiência” (BENJAMIN, 1989, p. 107).  Os meios técnicos mostravam-se cada vez mais em favor de forças sociais e políticas opressivas, cujo objetivo preponderante era o de restituir o mito (motor do próprio capitalismo e da fantasmagoria das mercadorias), inclusive lançando mão dos espetáculos de massa que disseminavam os ideais do fascismo, ao mesmo tempo em que trabalhavam no interesse do capitalismo liberal e da política stalinista (HANSEN, 2012, p. 207).

Adorno e Horkheimer puderam mostrar em sua obra emblemática, A dialética do esclarecimento (1985), como o mito está na gênese do processo de Esclarecimento (Aufklaerung), tensionando a razão e a autonomia do sujeito na direção de um domínio da natureza mítica. Para Benjamin o capitalismo mergulhou a Europa em  um profundo estado de sonho que cada vez mais impedia o homem de discernir entre natureza e história. Se de algum modo, o desenvolvimento das forças capitalistas mostrou que tudo é história, por outro lado (e ao mesmo tempo) tornou natural todos seus simulacros, como as mercadorias, o valor de troca, a desestabilização das forças artesanais, as  novas relações temporais calcadas no regime das máquinas e uma nova espacialidade pressionada, restrita a contornos cada vez mais exíguos.  A perda da experiência se situa neste cenário em que não é possível discernir sobre o que é história e o que é natureza.

Qual foi a resposta de Benjamin a este processo que ele chamou de “encantamento do mundo”, desta Europa mergulhada em sonho que vê os processos históricos como natureza? Na visão do crítico, o Surrelismo  criou condições de possibilidade para uma transformação redentora com sua “iluminação profana”. Os surrealistas foram os que conseguiram perceber as forças em declínio sobreviventes ainda na modernidade como forças psíquicas e espaços limiares: a esfera do sonho, a instância criativa nos procedimentos de escrita automática, a composição de objetos construídos pelo inesperado de partes disjuntivas, o aleatório e sobretudo, a valorização dos objetos em declínio presentes no cotidiano. Esta desnaturalização do cotidiano, penetrado pelo improvável cria uma dialética imprescindível para o despertar, pois o cotidiano não poderá ser tomado mais sem a tensão do inesperado, do diferente, do não-coincidente.

Benjamin pôde aferir do Surrealismo uma percepção de “limiar” que ele mesmo percebia como motivo para uma epistemologia da modernidade nas Passagens de Paris – últimas edificações arquitetônicas que restaram de uma Paris antiga remodelada pelo prefeito Haussmann. Elas eram como limiares, pois criavam espaços fechados na rua, mas ao mesmo tempo abertos por suas abóbodas de vidro – interiores ao ar livre. Dentro delas, por mais que os objetos já desfilassem como mercadorias, tinham uma exponibilidade problemática, confusa, misturada, como uma experiência destrutiva em apresentação. O espaço do limiar vai constituir uma categoria de pensamento para Benjamin que confronta o tempo das mercadorias, o tempo capitalista no qual não temos mais tempo para nada com uma concretude coletiva investida de uma feição individual. O limiar é um espaço de passagem, um lugar entre várias opções de direções que constituirá temporalidades diferentes, dependendo se o passante anda mais rápido ou mais devagar (GAGNEBIN, 2014). É um espaço de tempo próprio, individual, capaz de se contrapor ao tempo do sonho coletivo. Em relação às figurações do surrealismo, o limiar é para Benjamin, o despertar, o momento em que ainda não estamos completamente dormindo e nem completamente despertos, podendo exercer uma montagem de percepções entre o sonho e a razão.

Uma das tarefas do narrador seria acordar a humanidade de seu sonho coletivo criando limiares. Um dos elementos em declínio com a perda da experiência é a transformação do espaço, mesmo que para Benjamin o tempo seja uma questão mais significativa (HANSEN Op. Cit.) , o desaparecimento do espaço coletivo da artesania, do encontro geracional e do deslocamento geográfico dos aprendizes foram cruciais para o desaparecimento da narração. O limite imaginativo passou a ser o individual da leitura do romance. O narrador precisa reconvocar as pessoas aos espaços comunitários. E como pode fazer isso? Gagnebin (Op. Cit.) pôde chamar nossa atenção para o fato de que a errância do narrador tradicional foi substituída, ou melhor dizendo, passa a ser traduzida na modernidade pela errância do herói, não somente pelas particularidades epicizantes que o romance guarda, mas pelo desligamento do herói das forças míticas e dos ritos de passagem. Ele está sozinho num mundo de erros e acertos.  Então, para além de poder reunir as pessoas para ouvir uma narração (isto já é uma proposta do narrador de Liberano), o narrador teria que promover uma força de errância e destruição.

A destruição é a do sonho coletivo, feita por uma barbárie positiva e numa errância que coloque o sujeito novamente em jogo contra um perturbador estado de coisas, para o qual a experiência de choque o deixou impotente de se angustiar. Acordar do sonho coletivo é também olhar e poder ser olhado como na experiência aurática antes de ser atrofiada pelos dispositivos. Lembremos aqui que nos escritos sobre Baudelaire, Benjamin ressalta que a fotografia tem um papel definitivo no “declínio da aura” quando deixou restar apenas uma das operações do olhar na objetiva, em que se registra a imagem sem que esse olhar seja devolvido. Esta mudança da perceptibilidade é crucial para a entrada no sonho coletivo e é tarefa do narrador poder aplacá-la ou destruí-la. Não seria desta morte que Benjamin nos fala no fragmento de  “O narrador”, de um poder de destruição que pudesse fazer surgir as verdadeiras, ou redentoras forças criativas do homem?

 

O autor e a morte

Como ressalta Jeanne Marie Gagnebin, a relação entre morte e escrita é enfatizada na tradição poética desde a Ilíada e a Odisseia, do mesmo modo como o poder da palavra poética. A operação de transformar a oralidade em palavras escritas incluiu inevitavelmente uma reflexão sobre a linguística e a poética que já habitava o modo tradicional de narração. Talvez seja possível pensarmos uma aproximação, mesmo que problemática, entre os teores da narração tradicional e o fato de sua escrita. Gagnebin aponta um importante entendimento para a Ilíada que é a disposição de uma dupla alternativa:

Ou morrer velho, modelo de uma vida feliz que será rapidamente esquecida pela posteridade (pois não há nada a contar da felicidade), ou morrer jovem, na flor da idade e da beleza, numa façanha heroica, cuja glória – Kleos em grego, origem do nome da musa da história, Clio – será lembrada pela palavra poética a [todas] as gerações futuras (GAGNEBIN, Op. Cit. p. 15).

Tal duplicidade se tornou um paradigma na tradição grega e ocidental em que os feitos heroicos, os rituais e celebrações fúnebres rivalizam com a inevitabilidade da morte convocando a participação e a força da memória coletiva. A tensão que Gagnebin ressalta é que na imortalidade – ou pelo menos na luta por se tornar imortal – o aspecto pessoal do indivíduo, ou mesmo se quisermos, do sujeito, transforma-se em aspirações da comunidade. Trata-se menos de aspectos subjetivos que permeiam nossas apreensões do que chamamos de sujeito e se expandem para uma individualidade que imprime multiplicidades de desejos, ou por outra, uma certa amortização do sujeito em favor dos contornos de um coletivo. Parece possível afirmarmos que quanto menos a narração e sua escrita poética expõem experiências subjetivas, mais se caminha para suas possibilidades de permanência na memória.

Outra argumentação da autora em favor desta hipótese trata o túmulo como signo de memória, memória impressa, concreta, implantada no seio da cultura ocidental e a palavra escrita como seu signo correlato. Se admitirmos ainda com Gagnebin que o gesto original da palavra escrita permeado pelo desejo de sobrevivência do herói se transforma ao longo da modernidade, em que o sopro de inspiração divina dá lugar ao exercício argumentativo da palavra, podemos ainda entender que tal movimento vai constituir a base do autor moderno. Então a figura do autor está diretamente ligada com o desejo de vencer a morte. Diz a máxima de que escrevemos para sermos lembrados. Mas a transposição da permanência do autor na modernidade não acontece sem seu par de oposição que é o desaparecimento. No ensaio sobre “O narrador”, Benjamin ressaltou a relação entre o surgimento do romance e o lugar da morte como dois espaços de solidão que inviabilizam a troca de experiências ao modo da tradição. Ora, a tradição conferiu uma importância à troca de experiências num tempo em que as formas de vidas eram coletivizadas, ou mais ainda, se firmavam pela alternância entre os aprendizes viajantes e os mestres que criavam raízes num povoado. De outro modo, o moribundo moderno está confinado ao leito do hospital e não passa mais seus últimos dias e horas junto aos familiares e amigos em retrospectiva vivencial. A experiência do moribundo aparece em seus traços de futuro, como nos mostra a bela imagem que Benjamin utiliza em “Experiência e pobreza”, em que os filhos erram desorientados com o legado deixado pelo pai para só mais adiante o entenderem como esforço de transformação operada na terra.

O leitor moderno, na solidão de seu quarto (como o moribundo em seu leito de hospital) vai tratar o conteúdo do autor de modo semelhante aos protagonistas da fábula contada por Benjamin, ou seja, desorientado juntamente com seu novo herói, ambos apartados dos ritos de transição (limiares), terão que construir por meio de sua própria subjetividade, ocasionando um desaparecimento unívoco das intenções autorais. A escrita literária é uma invenção de mundo, mas numa operação que problematiza a autoria. Neste aspecto se insere a escrita da história como realça Benjamin em suas teses “Sobre o conceito da história” em que reivindica um historiador cujo método não é o de revelar o que realmente ocorreu. O que o historiador pode fazer é uma construção que se inscreve sobre os rastros deixados pelo passado e que necessariamente se compõe pela memória e o esquecimento.

O desconforto experimentado com a rememoração do vivido nos espaços topológicos reside em uma espécie de edificação destrutiva que instaura um campo de batalha em O Narrador. Por meios de traços espelhados nos fala o narrador, entre seu “conto idiota” e a narrativa que cria tênues metamorfoses em ação: escada/janela, folhas escritas no chão do espaço/cimento branco do edifício, o errante nas ruas de Botafogo que pede um cigarro avulso (correção, varejo)/erro fatal de seu conto, avô/amiga. A convocação da narração de Liberano se assemelha de algum modo àquela tarefa que Benjamin enxerga no Angelus Novus de Klee – “acordar os mortos e juntar os fragmentos” (BENJAMIN, 1994, p.226), sem desviar o olhar da catástrofe.

 

A performance e sua crítica

Diogo Liberano (o performer) está sentado numa cadeira, segura um microfone e uma série de folhas em que o texto da performance está digitalizado, ao seu lado, um boneco de pelúcia – o Bisonho. De resto o espaço está nu. O Bisonho é um burrinho azul com orelhas baixas, parece cansado, de uma cor azul-melancólico em semelhança com os tons da roupa despojada do performer (camiseta e jeans). Investigando esse boneco de pelúcia descobri, com ajuda de algumas crianças e da Wikipédia, que ele faz parte do desenho animado da Turma do Ursinho Puff e é um personagem pessimista, desanimado, resmungão, com uma cauda falsa fixada por um prego. Seu único meio-espanto acontece quando alguma coisa dá certo. São os indícios que temos como continente. Sabemos que a narrativa se insere na vida do narrador. O narrador gosta de começar com as circunstâncias em que soube dos fatos que vai narrar. O gesto em performance constrói paulatinamente suas circunstâncias com as folhas lidas jogadas no chão formando uma brancura sobre a madeira (que só mais adiante pode ser apreendida como o afeto roubado do narrador), com a narração de seus percursos de viagem para a cidade natal, com a experiência da morte de seu avô e sua vinda para estudar teatro no Rio de Janeiro. O narrador expõe com êxito sua geografia, mas que assim longínqua, de memória não nos parece como realmente foi e sim uma rememoração, uma memória do presente. O texto mistura arquivos-afetos de emails, rememorações, contos, escritas poéticas e cartas. Uma música em off se antagoniza com o ambiente ascético e cria uma dramaticidade prejudicial a recepção moderna do texto narrado.

É possível pensarmos numa crítica da performance que focaliza a história narrada e sua música de fundo assim, aponta para uma certa distância das intenções do narrador benjaminiano, na medida em que este não se detém em experiências meramente pessoais, como à primeira vista parece ser o caso do narrador de Liberano. Por essa visada que, a meu ver parece redutora mas que certamente pode ser considerada, a performance incorreria num erro básico ao apelar para um sentimentalismo dramático. Acredito que este seja mesmo o lugar em que a performance é um problema, ao contrário de expor um problema. Sem dúvida esta possibilidade de recepção existe, mas somente se a encaramos simplesmente como conteúdo narrado (incluindo ainda a sonoridade em off no patamar de conteúdo dada sua reiteração do tema), realizando uma operação menos ajustada com a noção de crítica que procuramos desenvolver nesse texto. Quando apontamos para duas possibilidades críticas, isso significa que as duas vivem na performance. A questão é saber com qual teor. Com isso quero dizer procurar perceber qual o “coeficiente artístico”, parafraseando Marcel Duchamp, ou seja, o que escapa do narrador de Liberano para sua audiência sem que se possa controlar, mas que está na materialidade da performance.

Uma primeira coisa é que a melancolia do Bisonho se solidariza com a do narrador. Este nos conta a respeito de uma experiência pessoal ligada a morte trágica de uma pessoa amada. Mas se associarmos materialmente a melancolia do Bisonho com a do narrador o que aparece é aquele que busca pontos de fuga nos detalhes, nos pormenores do vivido e, sobretudo investiga episódios em que sua própria experiência não se acerta consigo mesma. Tais episódios muitas vezes são aqueles em que ele falha, mas dos quais não pode se afastar completamente. Uma rememoração que salta assim a partir dos fracassos pode deixar aparecer justamente um forte teor histórico das experiências narradas, se nos aproximarmos do termo história como transformação do homem no mundo por meio de suas decisões. A identificação de Benjamin com a rememoração de Proust, para além de reconhecer a memória como algo que se dá a ver por meio de traços da matéria (o bolinho madalena), guarda a alegria da forma relampejante que só o indivíduo pleno de história pode produzir. Então o narrador será sempre uma figura ambígua, uma imagem de tempo transpassado por outros tempos que inferem sempre um não-saber. Então uma imagem plena, totalmente preenchida não pode vir do narrador. Assim, sua experiência pessoal não se torna facilmente psicológica já que o lampejo é um clarão, um brilho repentino que não permite uma visão total devido justamente a sua imensa claridade. O clarão nos cega. Isso impõe ao espectador/ouvinte um nível de percepção nos detalhes. E os detalhes também são imagens desprendidas da narração. O espectador/ouvinte precisa acionar sua melancolia no mesmo sentido do Bisonho e se dar ao espanto.

Neste sentido, o que aparece como inflexão trágica na performance é menos a factualidade da narrativa sobre uma morte específica, e mais a própria figura do artista que teria escrito um ano antes um “conto idiota”, remetido à sua amiga, cuja narrativa ficcional se mostrou extremamente ligada aos fatos vivenciados por ela. O que deriva da morte factual é outra morte. O poeta vidente e sua validade! Não esqueçamos que Rimbaud abandonou bem cedo a escrita de arte e foi se aventurar na África como traficante de marfim. Ou como Duchamp também preconizou, com o seu cansaço de um  século de mãos, a mudança de paradigma da criação do saber pintar para a pintura-questão. No caso de Liberano: a tensão entre a percepção ou a intuição e sua materialização, entre o imaginado e o escrito, entre o narrado e a poesia. Aparece certamente a dúvida que permeia o eu lírico. E se seguimos com tais reflexões, a performance coloca em jogo o ato da criação que, pelo revés de sua história expõe um profundo sentimento de impossibilidade da obra de arte como um clássico de beleza e harmonia. Mais ainda coloca em questão a obra como capacidade de comunicar. O efeito que segue no pensamento é a proposição da experiência aliada à noção de que o trabalho da arte é sempre como um jogo ariscado de perdas e danos. Tanto perda da figura do autor como ser absoluto – já que fica visível que ele não pode controlar nem a experiência nem a sua recepção –, quanto a morte de uma fruição ideal na medida em que a experiência é sempre um não-acabamento na perda de horizonte comum.

 

O Narrador e seu gesto

O seu olhar lá fora
O seu olhar no céu
O seu olhar demora
O seu olhar no meu
O seu olhar seu olhar melhora
Melhora o meu (O seu olhar. Arnaldo Antunes)

O filósofo Giorgio Agamben no texto “Notas sobre o gesto” desenvolve uma noção sobre o gesto que nos ajuda a ver O Narrador. Para esse autor a arte só pode ser pensada por seus parâmetros éticos e políticos. Já nos alertava Roland Barthes nas preliminares de O neutro (2003) sobre o possível modismo do termo ética. O alerta de Barthes ecoa aqui como um paradigma, inclusive para Agamben. Este último, para além de vislumbrar a ética e a política como engajamento temático nos trabalhos de arte, trata a noção de gesto como uma instância formal do ato político. Por sua etimologia, gesto chama para si uma responsabilidade, mas ao mesmo tempo algo que está em gestação, o que nos possibilita encontrar a noção de obra numa refração do termo. Em sua análise, o gesto na modernidade se transforma ao ponto de perder a identidade com sua formalização tradicional. Agamben nos remete a transição de uma época que ainda mantinha os valores burgueses pouco contaminados pelas forças capitalistas na Thèorie de la démarche de Balzac – que vê a deterioração do gesto humano por meio de um caráter moral – ao sentido patológico da chamada Síndrome de Tourrete ou nas pesquisas de Charcot sobre os gestos no acometimento histérico.

Detectando a mudança do paradigma, o gesto para Agamben adquire um caráter tão em desordem que não pode fazer parte de uma tradição transmissível. A arte é a instância possível de retomada do gesto, assim eles aparecem no cinema inspecionado nos filmes mudos, na mímica e na dança: “Uma época que perdeu seus gestos é, por isso mesmo, obcecada por estes” (AGAMBEN, 2015, p. 21).  Esta apropriação pela arte denuncia um caráter radical do gesto que se instaura em sua perda no moderno. Se pudermos entender que Agamben trata de um esvaziamento do gesto visível em sua desorganização, ou melhor, em novas organizações, o sentido de representação fica abalado. Mas o que é um gesto que não representa? Como a arte cria um gesto que não representa?

Nesta discussão Agamben conceitua o gesto possível na modernidade como aquele que, ao invés de ser um meio para alcançar um fim, mostra sua pura medialidade: “O gesto é a exibição de uma medialidade, o tornar visível um meio como tal” (AGAMBEN, op. cit. p. 24).  Assim, o gesto não representa, mas invoca em si mesmo a realização de sentidos plenos de obscuridade na medida em que se mostra como meio puro, como também sinaliza Jacques Rancière sobre as fisionomias enigmáticas dos figurantes do filme de Vertov, O homem com a câmera, que criam com seus rostos sorridentes uma não-coincidência com seus corpos já identificados com as máquinas da indústria moderna. O que surge de seus rostos é um teor ético, já que não podemos ter uma leitura clara de suas fisionomias sem a atuação de um pensamento que se espante diante do enigma.

Qual o gesto de O Narrador de Liberano quando expõe a medialidade do papel, das palavras escritas e sua leitura no lugar daquele que narra de memória? Não seria tal exposição da medialidade um endereçamento ao esquecimento já que o próprio narrador não tem sua história integralmente na memória? O esquecimento é um modo de destruição.  O esquecimento parece ser o do fato dramático, deixando restar a tragédia da inutilidade de sua autoria no “conto idiota” e nos acontecimentos em sequência um ano depois. A meu ver aqui reside a tragicidade da performance, em mostrar a destruição do próprio trabalho da arte como promessa de futuro. Talvez o narrador de Liberano esteja sugerindo que seu desejo é pelo questionamento e experimentação da expressão artísticae não o fornecimento de conhecimentos. Ora, então que drama estaria sendo encenado a não ser a luta do trabalho de arte por se dar a ver em seu modo de existência? Liberano duvida da validade de seu trabalho como arte: aquele “conto idiota”. A validade, ou a necessidade da arte se comparada com a vida fica problematizada e o artista entra em declínio. Assim, parece tratar o próprio material de criação como coisa. Ofício manual de Liberano: manusear as folhas, leitura do texto e jogar tudo fora. Tratar como substancialidade o trabalho de arte. O narrador vem do mundo dos artífices quando expõe sua artesania, como aponta Benjamin citando Leskov “A literatura não é para mim uma arte, mas um trabalho manual” (LESKOV apud BENJAMIN op. cit, p. 205).

Em tese, a criação é alguma coisa sempre almejada, a arte é pensada muitas vezes como a manifestação de uma esfera de experimentação em que se ampliam as possibilidades de ação e percepção dos indivíduos. Existe um desejo no trabalho de arte que é o da criação de mundo. A noção representacional da arte em que ela é um artefato de segunda natureza – ou mesmo uma cópia da cópia (uma imagem cômica é a uma cópia em abismo), foi problematizada no mínimo desde a Fonte de Marcel Duchamp. Esse artista (ou anti-artista) entendeu e nos fez “ver” que as fronteiras entre a representação e o fato não estão assim tão definidas quando o assunto é arte. Talvez possamos dizer que a instância iluminada pelo gesto de Duchamp tem a ver mais com limiar do que com fronteira, justamente pelo campo de experiência, pela não unicidade da obra, pela problematização da questão de autoria e pelo lugar do observador como fundamento.

A pobreza de experiências, ou a impossibilidade de transmissão da experiência não é para Benjamin um efeito relâmpago da modernidade, é algo que se desenvolveu paulatinamente ao longo das transformações das forças produtivas que culminam no capitalismo. Ciente disso, o narrador não dá conselhos, mas oferece sugestões. O termo sugestão inclui inspiração que, substancialmente é uma incitação para agir.  Mas qual seria a suma do narrador de Liberano? Talvez aqui tenhamos que abandonar nossa intenção arcaica de pleitear um narrador que nos aconselhe (não é mais possível seguir um conselho!).  Temporalizar é de algum modo mostrar a existência do tempo. Dar uma qualidade ao tempo. O texto de Liberano é um temporalizador do tempo, tanto por se tratar de arquivos de memória revisitados, tanto por se deter nos detalhes temporais da vida do narrador, como por construir uma narrativa fragmentada de seu percurso. A direção ao artesanal da escrita-com-arquivo de Liberano é uma desaceleração do tempo. Pensar no arquivo como um movimento de desaceleração do tempo incide numa problematização dos artistas em relação aos aspectos progressistas e evolucionistas modernos. Esse sentido aparece aliado ao movimento de crítica e de análise por meio do deslocamento da utilização de materiais em funções para as quais não foram produzidos, como para a produção do trabalho de arte. De certo modo o processo moderno e contemporâneo será sempre um processo alegórico, tanto pela transferência de contextos, quanto pela quebra dos fluxos narrativos que tal transferência promove.

O arquivo nasce com uma presença desestruturada. Somos remetidos à disposições entre índices, vestígios, rastros e o próprio ato artístico: o arquivo jamais dará conta da completude do ato; ao contrário, apresentará sempre fendas. Seu sentido não pode ser apreendido a priori e será sempre de algum modo lacunar. O arquivo é o lugar que deixa ver as partes ausentes. Quando nos damos inicialmente ao arquivamento, ele não existe, não existe como classificação, como sistema, só um primeiro desejo de juntar os cacos.  Sua função redentora do passado é uma das características que os artistas se interessaram em cooptar. É assim que percebo o texto de O Narrador, mais uma vez como tentativa de redenção que significa se jogar bem desperto na catástrofe.

Uma percepção que a performance nos causa tem a ver com indefinível que o texto é, negando-se sempre um pouco a seguir adiante. Seria o caso de perceber se a narrativa entrega um sentido, mas suas informações são mais parecidas com topos. Uma topologia de afetos que dificulta a sobrevivência das informações no tempo do narrado. Mas então é preciso refletir sobre qual a espécie de memória que a narrativa convoca. Este processo acontece em O narrador por meio de uma qualidade temporal, um tempo estendido, aquele tempo que constitui os limiares e que cada vez é mais raro na atualidade corrida em que vivemos. Seu fruidor precisa se deixar estar no tempo das folhas de papel jogadas no chão, das digressões narrativas, das imagens sugeridas pela leitura, se deixar afetar pela substancialidade corporal do narrador como um campo gelado que vai derretendo devagar (como é próprio do derretimento) deixando à mostra objetos perdidos. Não se deve fixar simplesmente nos conteúdos narrados. A ideia do trabalho de arte está insuflada pela noção de que o que vemos é como uma projeção de nossas subjetividades, mas se os ambientes concretos são formados por relações de forças provenientes de vários corpos é possível apostar, não que a causalidade seria o fundamento dos eventos, mas sim na intensidade das forças que vêm de todos.

 

Referências bibliográficas:

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AGAMBEN, Giorgio. “Notas sobre o gesto” in Artefilosofia: Antologia de textos estéticos. Org. Gilson Iannini, Douglas Garcia e Romero Freitas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

BARTHES, Roland. O neutro. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martisn Fontes, 2003.

——–. O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BENJAMIN, Walter. “Alguns temas em Baudelaire” in Obras escolhidas Vol III Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989.

——–. “Experiência e Pobreza”, “O narrador. Considerações sobre a obra de Nickolai Leskov”, “Sobre o conceito a História” in Obras Escolhidas Vol. I Magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

——–. Passagens.  Tradução Irene Aron, Cleonice Paes Mourão e Patrícia de Freitas Camargo. Belo Horizonte: UFMG e São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Limiar, aura e rememoração. São Paulo: Editora 34, 2014.

HANSEN, Miriam. “Benjamin, cinema e experiência: A flor azul na terra da tecnologia” in Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem e percepção. Trad.. Marijane Lisboa e Vera Ribeiro; org. Tadeu Capistrano. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

 

Dinah Cesare é teórica do teatro, Professora Assistente no curso de Artes Visuais da EBA-UFRJ, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte — Linha de Pesquisa Poéticas Interdisciplinares, e é mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

 

 

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Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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