O tempo em desalinho

Estudo sobre a natureza do tempo no Livro XI das confissões de Agostinho

27 de maio de 2015 Estudos

Vol. VIII nº64, maio de 2015.

Resumo: “O que é então o tempo?”, questiona-se Agostinho no Livro XI das Confissões. O impasse quanto à ação (justa) a empreender para explicar o que vem a ser a essência do tempo, a dificuldade lógica insuperável para apreender e traduzir em palavras a natureza do tempo, nos quais esbarra o filósofo, convocam-no a refletir sobre a narrativa da experiência do tempo. Assim como Agostinho ao final do século III, a peça teatral contemporânea Desalinho, escrita por Márcia Zanelatto, também nos interroga sobre o tempo.

Palavras-chave: tempo, narrativa, dramaturgia contemporânea.

Abstract: “What is time?”, Augustine asks himself in the Book 11 of the Confessions. The deadlock concerning the undertaking (fair) action to explain what comes to be the essence of time, i.e., the unbeatable logical difficulty to learn and translate in words the nature of time, in which the philosopher stumbles upon, summons him to think over the narrative of the time experience. As well as Augustine in the end of third century, the contemporary theatrical play Desalinho, wrote by Márcia Zanelatto, also questions us about time.

Keywords: time, narrative, contemporary drama

 

O tempo é o nosso problema.

Jorge Luis Borges

O que é então o tempo? Qual é a medida do tempo? O que Agostinho nos diz nas Confissões, Livro XI, obra autobiográfica escrita ao final do século III, é: interrogar-se sobre o tempo é também, em certa medida, se interrogar sobre o eu narrador — ser temporal que vive e morre no tempo — e também sobre o sentido da própria narração. Agostinho, em sua reflexão sobre o tempo, acaba por assinalar o caráter ambíguo da narrativa (mythos): ao mesmo tempo história contada (os acontecimentos anteriores ao relato — as marcas na memória) e discurso contante (as estratégias de ficção, a maneira de contar a experiência no tempo — sua construção narrativa): “Construção que remete a uma noção de verdade não mais como exatidão da descrição, mas sim, muito mais, como elaboração de sentido, seja ele inventado na liberdade da imaginação ou descoberto na ordenação do real” (GAGNEBIN, 1997, p. 70). Dirá Agostinho:

Contudo, dizemos tempo longo ou breve, e isto só podemos afirmar do futuro ou do passado. Chamamos longo ao tempo passado, se é anterior ao presente, por exemplo, cem anos. Do mesmo modo dizemos que o tempo futuro é longo, se é posterior ao presente. Também cem anos. Chamamos breve ao passado, se dizemos ‘daqui a dez dias’. Mas como pode ser breve ou longo o que não existe? Com efeito, o passado já não existe e o futuro ainda não existe. Não digamos: “é longo”; mas digamos do passado: “foi longo”; e do futuro “será longo.” (AGOSTINHO, 2003, p. 279)[1]

O que é então o tempo? Qual é a medida do tempo? Para Agostinho, o tempo é a distensão dos movimentos (de ir e vir) da alma humana (Distentio Animi) e não um ente físico que se daria a partir do movimento de corpos externos (Sol, Lua), com um antes e um depois. Com esta definição — inseparabilidade entre tempo e alma — Agostinho, além de romper com a definição aristotélica sobre o tempo (caracterizado como “um todo e uma quantidade contínua” (JAPIASSU; MARCONDES, 1986, p. 259), semelhante a um rio que flui continuamente), institui o tempo como sendo a forma do sentido interno, ligado ao nosso estado interior. A vida é um tempo só, um agora: passado, presente e futuro são modulações de um presente absoluto: presente das coisas passadas, presente das coisas presentes, presente das coisas futuras. Passado, presente e futuro são fases de um só tempo: o futuro avança sobre o passado vindo ao presente, porém a intenção da alma humana é dividir o tempo (intentio animi)[2]. Agostinho já aponta a indissolúvel relação entre temporalidade (tempo humano) e narração[3], já que o tempo não pode ser contemplado, mas apenas narrado.

A autoconsciência só se dá através da experiência interna do tempo, na consciência de sermos seres temporais e finitos, que falamos e que pensamos no tempo: “é somente através de uma reflexão sobre nossa temporalidade, em particular sobre a temporalidade inscrita em nossa linguagem, que podemos alcançar uma reflexão não aporética do tempo” (GAGNEBIN, 1997, p. 70). Gagnebin, ao se debruçar sobre os escritos de Ricoeur, mais especificamente “As aporias da experiência do tempo. O Livro XI das Confissões de Santo Agostinho” (Op. Cit.), constata, junto ao filósofo, que a única solução para o caráter aporético da reflexão sobre o tempo inscrita nas Confissões seria a busca de uma poética da temporalidade: “o tempo se torna humano na medida em que é organizado à maneira de uma narrativa; e a narrativa tem sentido, por sua vez, na medida em que retrata os aspectos da experiência temporal” (RICOEUR, 1994, p. 93). Para Ricoeur, o ato de narrar nos permite falar do tempo sem produzir novas aporias, pois não há nenhuma resposta teórica sobre o tempo. O tempo é aquilo dentro do qual existimos.

Se o tempo é uma distensão da alma, se sua natureza não corresponde ao movimento dos astros, sabendo a alma navegar à deriva do tempo cronológico, em dissonância temporal, ocorre que o tempo agostiniano impõe sua discordância ao anseio de concordância inerente ao animus (idem, p.16), que se trata de uma vontade de fazer triunfar a ordem sobre a desordem; ou seja, violência interpretativa que impõe uma consonância narrativa à dissonância temporal. É claro que, ao interrogar-se sobre o tempo, Agostinho realiza uma reflexão entre eternidade divina e tempo humano. Em princípio era o Verbo, e o Verbo é coeterno a Deus; Ele (Deus) é anterior aos tempos, pois a eternidade é aquilo que não é temporal; ela (a eternidade) preside os tempos pretéritos e futuros. Deus, pois, não é um ser do tempo, é puramente ser, porque é eterno. Contrariamente, é do ser do tempo (o ser humano) não permanecer. Mas não iremos nos aprofundar sobre a meditação agostiniana em relação à eternidade, já que, utilizando as palavras do próprio Ricoeur (1994, p.20), Agostinho, ao tratar do tempo, se refere à eternidade como uma prova da deficiência ontológica característica do tempo humano. Mas não é só isso; em tempo, voltaremos a este ponto. Cabe ainda pensar: o que é então o tempo?

Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem poderá apreendê-lo, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir com palavras seu conceito? (…) O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicá-lo a quem me fizer a pergunta, já não sei.” (p. 278).

Como interroga Agostinho, dizemos que o tempo pode ser longo ou breve, mas somente do passado e do futuro. Mas como pode ser longo ou breve o que não é? Pois o passado já não é e o futuro ainda não é. E o presente? Esse que deveria ser o tempo stricto sensu também não permanece e nos escapa entre um passado que se foi e um futuro que ainda não é. Onde se encontra, pois, o tempo? Esta dificuldade em determinar a extensão (a medida) do tempo, observa Agostinho, não significa a inexistência do tempo em si (como argumentam os céticos), significa muito mais uma inexistência espacial objetiva do tempo, posto que o tempo é imensurável. Ainda assim, em virtude de nossa razão limitada, tentamos medir o tempo como longo ou breve. Agostinho então esbarra na deficiência da linguagem em dizer o tempo, já que a natureza do tempo não pode ser medida:

Mas não medimos os tempos que passam, quando os medimos pela sensibilidade. Quem pode medir os tempos passados que já não existem ou os futuros que ainda não chegaram? Só se alguém se atrever que pode medir o que não existe!” (p. 281).

“Se é verdade que são futuros e passados, onde eles estão?” (p. 282). É certo que não é adequado pensar o tempo em categorias espaciais, já que presente, passado e futuro não são mensuráveis: o presente “é” um eterno hoje e, portanto, não possui extensão, o passado e o futuro também não são mensuráveis no seu ser, pois o passado já não é e o futuro ainda não é. No entanto, sentimos, comparamos e medimos o tempo (o tempo todo). Percebemos o tempo no momento em que falamos e pensamos nas coisas passadas e nas coisas futuras (como longas ou breves). O que é então o tempo? Ora, se é do presente que falamos tanto das coisas passadas (lembranças / memória) quanto das coisas futuras (previsão), então existe um tempo passado e um tempo futuro que se inscrevem no tempo presente, uma vez que estamos no tempo e simultaneamente dizemos o tempo no presente. Onde eles estão? Onde quer que estejam não são nem futuro, nem pretérito, mas sempre presentes: passado, presente e futuro são modulações do presente.

Ainda que se narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata não os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígio. Por conseguinte, a minha infância que já não existe presentemente, existe no passado que já não é. Porém a sua imagem quando a evoco e se torna objeto de alguma descrição, vejo-a no tempo presente, porque ainda está na minha memória.” (p. 282).

No presente narramos os acontecimentos passados, então o tempo presente é um tempo que se volta para o passado. Ainda que se narrem os acontecimentos passados, a memória reproduz não as coisas em si, já passadas (pois o tempo passado já não é), mas as palavras nascidas das imagens destas, que ao passar se fixaram na alma. O que permanece impresso na alma são os vestígios. As coisas que são narradas como verdade o são a partir da memória: são as imagens das coisas passadas (ações passadas) que se fixam na alma, imprimindo em nosso espírito uma marca / vestígio. O rastro é como um espectro do passado que se volta para o presente; ele não é uma presença possível, pois é da ordem do não-ser, mas diz que algo agiu, que algo ausente marcou uma presença. O rastro desliza entre uma presença e uma ausência: “a ideia de rastro alude ao estatuto ontológico paradoxal de um ser que não é mais” (GAGNEBIN, 1997, p. 75). E as coisas futuras? Não são ações já executadas, pois o tempo futuro ainda não é. Então, onde elas estão? As coisas futuras são da ordem da premeditação, são ações premeditadas presentes na premeditação:

Este pressentimento oculto das coisas futuras, não podemos ver senão o que possui existência. Ora, o que já existe não é futuro, mas presente. Por conseguinte, quando se diz que se veem os acontecimentos futuros, não se veem os próprios acontecimentos ainda inexistentes — isto é, os fatos futuros — mas sim, as suas causas ou talvez os seus prognósticos já dotados de existência.” (p. 283).

Neste trecho das Confissões, referente à expectativa presente das coisas futuras, Souza Netto nos dá uma bela definição do lugar da memória no pensamento de Agostinho: “Sem ela [a memória], não só as coisas passadas nos seriam inacessíveis, e nossos olhos seriam como que cegos e nossos ouvidos como que surdos perante tudo o que flui, mas não haveria para nós nem mesmo passado e portanto muito menos futuro” (SOUZA NETTO, 2002, p. 22-23). Só podemos prever o futuro a partir da lembrança presente das coisas passadas: são as imagens contidas na memória e não as coisas futuras elas próprias (que ainda não são) que me permitem prever o futuro. O que eu vejo na minha frente não são as coisas futuras — pois o que é futuro, ainda não é —, mas se eu posso prever o futuro é porque eu vejo o passado, e com ele, pelos vestígios impressos na alma, eu posso prever o que há de ser, não por conhecer algo que ainda não é em si mesmo, mas por saber conhecê-lo em sua causa, pois todo saber se constitui de memória. Em Agostinho, o tempo passa a ser pensado em termos de atividade psíquica / espiritual: se estamos dentro do tempo e, todavia, o percebemos, o medimos, o comparamos e o avaliamos, é porque há um movimento introspectivo da alma que me permite lembrar, ver e prever (isto é, reconhecer índices temporais diversos). A medida do tempo se dá por meio da experiência; e experiência é algo que nos acontece, e que luta por uma narrativa. O que medimos não se trata do tempo passado ou do futuro, o que medimos são os vestígios, as lembranças. As atividades sensíveis, intelectuais e pragmáticas da experiência é que nos dão a exata medida do tempo.

(…) nem há tempos futuros nem pretéritos. É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras. Se me é lícito empregar tais expressões, vejo então três tempos e confesso que são três.” (p. 284).

Há um abuso no uso da linguagem quando dizemos existir três tempos: passado, presente e futuro. O que de fato ocorre, dirá Agostinho, é uma certa presença na alma (tríplice presente): o presente do passado, a memória; o presente do presente, a visão presente; o presente do futuro, expectativa. Mas ainda assim se percebe uma insuficiência da linguagem em dizer com propriedade a atividade da alma, ainda que seja possível compreender a intenção do que foi dito. Mas cabe ainda esclarecer em que condições nós apreendemos o tempo. Sabemos que nem passado, nem presente, nem futuro podem ser medidos, mas ainda assim os medimos. Como eu meço o tempo? “Porém, que medimos nós senão o tempo nalgum espaço? Não diríamos tempos simples, duplos, triplos e iguais ou com outras denominações análogas, se não os considerássemos como espaços de tempos” (p. 285). Aqui surge uma nova aporia na reflexão agostiniana, pois se o tempo não tem espaço ele não pode ser medido: “Não medimos o que não existe. (…) Como medimos nós o tempo presente, se não tem espaço?” (ibid.).

É na própria passagem do tempo que medimos o tempo. É no passado que falamos da passagem do presente. Não podemos medir o futuro que ainda não é, nem o passado que não é mais, nem o presente que não tem extensão, só podemos medir o tempo quando ele passa. Então, só podemos medir o que deixou de existir? Mas não é verdade que não podemos medir o que já não é? E os tempos que continuam? Também não podemos medir, pois ainda não são. Se não medimos os tempos futuros, nem os presentes, nem os que passam, como, ainda assim, medimos o tempo? “Em ti, ó meu espírito, meço os tempos!” (p. 292). A alma espera, fixa a atenção, retém na memória; é na alma que os tempos são e podem ser medidos. É na alma que medimos o tempo:

Em ti, ó meu espírito, meço os tempos! (…) Meço a impressão que as coisas gravam em ti à sua passagem, impressão que permanece, ainda depois de elas terem passado. Meço-as, a ela enquanto é presente, e não àquelas coisas que se sucederam para a impressão ser produzida. É a essa impressão ou percepção que eu meço, quando meço os tempos.” (p. 292).

Medimos as impressões que permanecem no espírito depois da passagem do tempo, e não as coisas que passam. Com esta acepção, Agostinho une não só a questão do tempo à questão da linguagem[4], como também resolve a aporia do tempo longo ou breve ao dizer que o que medimos não são as coisas, mas as impressões que permanecem fixadas na memória. “Os tempos que passam”, indo embora, deixam uma espécie de espaço temporal (uma extensão; como uma dobra no tempo) que pode ser medido, comparado e avaliado como longo ou breve. Então, se medirmos o tempo com o próprio tempo, o tempo não poderá ser pontual, ele parecerá dotado de uma distensão (distentio). E se o tempo em si mesmo não pode ser medido, como ainda assim o medimos? É na alma que medimos a passagem do tempo. Medimos aquilo que permanece na alma depois da passagem do tempo, são as impressões deixadas na alma pelas coisas que passam que medimos. O tempo é, pois, uma certa distensão da alma (distentio animi), o que medimos é a longa espera do tempo e a longa recordação do tempo (e não as coisas elas mesmas). Mas devemos ser cautelosos, nos aconselha Ricoeur, pois a investigação das experiências do tempo não se esgota no recurso da impressão. Ainda falta esclarecer, em sua profundidade, o conceito de distentio animi. “É na passagem que devemos buscar, ao mesmo tempo, a multiplicidade do presente (o tríplice presente) e seu dilaceramento” (RICOEUR, 1994, p.35).

O que acontece quando falamos? Como se dá nossa experiência do tempo? Ora, como seres temporais que somos, estamos no tempo, falamos no tempo e sabemos do tempo. Não podemos refletir sobre o tempo como se fosse um objeto exterior ao pensar. Em sua análise, Agostinho tenta descrever de dentro do próprio fenômeno (a experiência do tempo) aquilo que acontece em nosso agir: ação, linguagem e temporalidade se imbricam para descrever nossa experiência do tempo. E nossa experiência do tempo se dá na própria dialética interna do tempo entre intenção e distensão, no confronto entre dois traços da alma humana, que Agostinho nomeia intentio e distentio animi (termos emprestados de metáforas sonoras). No contraste entre “a passividade da impressão com a atividade de um espírito estendido em direções opostas, entre a espera, a memória e a atenção” é que percebemos a face ativa do processo de experimentação do tempo, pois, “só um espírito assim diversamente estendido pode ser distendido” (RICOEUR, 1994, p. 38).

Tanto Ricoeur (1994, p. 39) como Gagnebin (1997, p. 77) ressaltam a importância e a beleza poética da recitação de um hino de cor — usado por Agostinho (p. 28) para descrever como se dá nossa experiência temporal — para a compreensão do caráter ativo da experiência do tempo como distentio animi. Citamos:

Vou recitar um hino que aprendi de cor. Antes de principiar, a minha expectação estende-se a todo ele. Porém, logo que o começar, a minha memória dilata-se, colhendo tudo que passa de expectação para o pretérito. A vida deste meu ato divide-se em memória, por causa do que já recitei, e em expectação, por causa do que hei de recitar. A minha atenção está presente e por ela passa o que era para se tornar pretérito. Quanto mais o hino se aproxima do fim tanto mais a memória se alonga e a expectação se abrevia, até que esta fica totalmente consumida, quando a ação, já toda acabada, passar inteiramente para o domínio da memória.” (p. 294)[5].

Observa Agostinho sobre o hino recitado de cor: antes de começar, minha atenção se estende a todo ele. Porém, logo que o começar, a minha memória dilata-se, colhendo tudo o que passa de expectação para o passado. É na passagem de um instante, dividida a alma entre memória e expectação, que a alma (atenta) transforma futuro em pretérito. A passagem do tempo pelo presente não se dá de forma passiva, ela é viva, é dinâmica. O presente não é só atravessado, há uma espera e uma lembrança que agem sobre o ato de recitar, e esta ação que diminui a espera e que alonga a memória é feita pela alma atenta. Há uma intenção presente que transporta o futuro para o passado. Em Agostinho, o futuro sopra em direção ao passado em função de uma alma que age. Recitar, portanto, exige três atividades da alma: memória, expectação e atenção. É essa estrutura temporal que nos permite medir o tempo. A tensão entre essas três atividades da alma, o “jogo de paixão e de ação” que se estabelece no trânsito, os movimentos da alma estendida entre o esperar e o lembrar, e a atenção presente (que pensa esta não coincidência), são os elementos ativos da alma, que contrastam com a passividade da impressão. “Longa espera do futuro” e “longa recordação do passado”: “É, pois, na alma, a título de impressão, que a espera e a memória têm extensão. Mas a impressão só está na alma enquanto o espírito age, isto é, espera, está atento e recorda-se” (RICOEUR, 1994, p. 39).

No exemplo do hino, encontra-se tanto a chave da teoria da distensão, no contraste entre essas três tensões, como também se “marca o ponto de articulação da teoria da distentio com a do tríplice presente. (…) reformulada em termos de tríplice intenção, [fazendo] jorrar a distentio da intentio eclodida” (RICOEUR, 1994, p. 39). Distentio e intentio, dois movimentos da alma em permanente interação e conflito. A primeira se caracteriza pela não-coincidência entre as três ações: esperar, lembrar e estar atento; já a segunda por uma atividade intencional, consciente, que “avança” (que faz passar o futuro para o passado), e que tenta pensar esta falha dolorosa da temporalidade. “A intensidade de um presente que não é mais mero ponto de passagem, mas sim instante privilegiado de apreensão dessa não coincidência, tomada de consciência ativa desse incessante esticamento” (GAGNEBIN, 1997, p. 77). Mas, a distentio — interroga e responde Ricoeur — tem a ver com a passividade da impressão? Parece que sim, na medida em que a impressão é concebida ainda como o reverso passivo da própria tensão do ato de avançar (intentio animi): pois alguma coisa permanece enquanto atravessamos o poema em pensamento. É a intenção presente que passa o futuro para o passado. No caso, analisa Ricoeur, a própria atividade intencional (que avança) tem como reverso a passividade, nomeada imagem-impressão (“por falta de termo melhor”): “os três desígnios temporais dissociam-se na medida em que a atividade intencional tem como contrapartida a passividade engendrada por esta própria atividade” (RICOEUR, 1994, p. 40). Não só há a discordância entre esses três atos (ou ações), como também atividade e passividade entram em conflito na própria atividade narrativa. “Mais o espírito se faz intentio, mais ele sofre distentio” (RICOEUR, 1994, p. 40).

É chegado o momento de voltarmos nosso pensamento à questão da oposição entre temporalidade humana e plenitude da eternidade divina. Como foi dito ao final do quarto parágrafo, esta oposição não se refere apenas ao caráter “defeituoso”, “falho” e “negativo” da temporalidade humana em relação à eternidade divina. Para além deste pensamento redutor, Ricoeur visualiza nesta oposição algo muito mais instigante e provocador em relação à nossa própria experiência temporal. Com efeito, para entendermos a noção de distentio basta pensarmos em seu contraste com a intentio animi; contudo, ainda falta, para atingirmos o sentido pleno do conceito, pensar a temporalidade humana em contraste com a eternidade. A falha no tríplice presente (distentio animi) só pode ser pensada em sua profundidade se a compararmos ao presente eterno de Deus. A distentio, a partir da mediação entre eternidade e tempo, ganha um novo significado: além de “solução” das aporias do tempo, ela passa a exprimir o dilaceramento da alma privada da estabilidade do eterno presente. Ora, se há um reconhecimento de um princípio, resta dizer que dele podemos nos aproximar e assim retornar à estabilidade do eterno presente. Pois “a própria visada da experiência temporal, na sua intensidade presente (intentio), torna-se como que uma imagem do presente eterno de Deus em nós” (GAGNEBIN, 1997, p. 78).

Deste modo, a dialética tempo-eternidade provoca, dentro da própria experiência temporal, a intensificação da dialética distentio-intentio, “que visa extrair da própria experiência do tempo recursos de hierarquização interna cujo benefício não é abolir a temporalidade, mas aprofundá-la” (RICOEUR, 1994, p. 78). O contraste tempo-eternidade provoca o confessar das diversas intensidades temporais, permitindo assim um aprofundamento da temporalidade humana, em níveis sempre mais estendidos, contra a ideia de um tempo linear e cronológico.

Assim como o bispo de Hipona, em sua narrativa autobiográfica escrita ao final do século III, Desalinho, escrito por Márcia Zanelatto neste século, nos interroga sobre o tempo. “O que é, por conseguinte, o tempo?”, perguntou Agostinho nas Confissões: “Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicá-lo a quem me fizer a pergunta, já não o sei”. A tese agostiniana defende que o tempo está localizado na alma, solucionando como vimos, as aporias sobre o tempo. O que significa dizer que nós fazemos o próprio tempo. “Quanto tempo o tempo tem?” (…) “e o passado que segue mudando conforme se anda…”, dirá a Enfermeira de Kelzy Ecard em Desalinho, introduzindo o espectador para a tragédia da personagem Mariana, heterônimo ficcional da poetisa Florbela Espanca, interpretada por Carolina Ferman. No palco, seremos testemunhas de confissões nada tagarelas, de um tempo onde nada passa, onde tudo é presente. Na fala da personagem, transcrita logo acima, o futuro é transportado para o passado, confirmando a tese agostiniana dos movimentos da alma como medida do tempo. Assim coloca Ricoeur:

O achado inestimável de santo Agostinho, reduzindo a extensão do tempo à extensão da alma, é o de ter ligado essa distensão à falha que não cessa de se insinuar no coração do tríplice presente: entre o presente do futuro, o presente do passado e o presente do presente. Assim, ele vê a discordância nascer e renascer da própria concordância entre os desígnios da espera, atenção e memória.” (RICOUER, 1994, p. 41).

No presente eterno de Desalinho, experimenta-se junto aos personagens um outro tempo, um tempo que não se pode medir pela sucessão dos tempos passados e futuros. Um tempo dilatado, pois o tempo em Desalinho é o tempo dos afetos, e por isso um tempo enovelado! No tempo em desalinho, a dramaturga costura poesia e narrativa dramática, sem esforços, sem pedantismos inúteis: “canta um pouco. bem baixinho, até eu conseguir pensar numa rosa”; diz Mariana à Enfermeira. E continua: “eu preciso de flores para amadurecer”, ao passo que essa responde: “já vai passar, o medicamento dá reações assim desagradáveis”. A dramaturga impulsiona a flecha do tempo, para que a história do drama de Mariana, presa num hospital psiquiátrico, possa correr diante de nossos olhos. Mas a concessão ao drama é breve, a poesia é a linguagem desta bela obra escrita por Márcia Zanelatto: “Se eu tivesse tido como interromper o fluxo. se eu soubesse parar o tempo”, diz o Irmão. Mas aqui se trata de um tempo que não depende mais do movimento, seu tempo é múltiplo, capaz de afirmar a potência de todos os mundos, de todos os tempos. Sobrepondo o antes e o depois, em camadas sobrepostas, numa ordem estratigráfica, a história vivenciada por Mariana, o Irmão e a Enfermeira não obedece a uma linha do tempo, pois coexiste num emaranhado. Cito Jorge Luis Borges (como não citar!) no prólogo a História da eternidade:

O movimento, ocupação de lugares diferentes em instantes diferentes, é inconcebível sem o tempo; igualmente o é a imobilidade, ocupação de um mesmo lugar em pontos diferentes do tempo. Como pude não sentir que a eternidade, ansiada com amor por poetas, é um artifício esplêndido que nos livra, embora de maneira fugaz, da intolerável opressão do sucessivo?” (BORGES, 1999, n.p.).

Borges nos confessa sua profunda desconfiança em relação ao conceito de tempo, e assim é em Desalinho. No palco, somos testemunhas da confissão de três personagens, rememorando um presente que dura tanto quanto a história do universo: uma eternidade. Sua narrativa detém o avanço do tempo, tornando a memória um fato vivo e presente. O tempo reconfigurado, ressignificado na narrativa, sem dúvida nenhuma nos ajuda a entender o nosso próprio tempo cotidiano. Ao nos interrogar sobre o tempo, a partir do tempo-poesia, desafiamos nossa concepção objetiva do tempo, da sucessão linear, desta intolerável opressão da sequencialidade: “para quem não tem mais nada, ter paciência é um exagero” (Mariana). Como conclusão, tomamos novamente emprestadas as palavras de Ricoeur: “fazer uma narrativa é ressignificar o mundo na sua dimensão temporal, na medida em que narrar, contar, recitar é fazer a ação seguindo o convite do poema” (1994, p. 81).

Se o tempo não pode ser diretamente observado, somente narrado, deixemos nossa alma narrar o tempo, e que, em desalinho, possamos compreender novas e diferentes formas de passar o tempo, seguindo o convite do poema.

 

Notas:

[1] A partir deste ponto, todas as citações referentes às Confissões de Agostinho serão feitas a partir da tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina, que consta nas referências bibliográficas, não sendo mais necessário referenciá-la.

[2] Confronto entre estes dois traços da alma humana, intentio e distentio animi, desenvolvido por Agostinho ao final do livro XI das Confissões, é a antítese em torno da qual gira o pensamento de Paul Ricoeur (1994) em “As aporias da experiência do tempo. O Livro XI das Confissões de Santo Agostinho”. In: RICOUER, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo I. São Paulo: Papirus, 1994, p. 19-54.

[3] Cf. verbete “Temporalidade” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 259): trata-se de uma das categorias mais essenciais do Dasein (o ser-aí), na medida em que a própria autoconsciência só se dá através da experiência interna do tempo. Segundo Heidegger, “o futuro não é posterior ao passado e este não é anterior ao presente. A temporalidade se temporaliza como futuro-que-vai-ao-passado-vindo-ao-presente”.

[4] “Pois o tempo se dá, de maneira privilegiada, à minha experiência em atividades de linguagem (…), e só consigo falar, escrever, cantar e contar porque posso lembrar, exercer minha atenção e prever” (GAGNEBIN, 1994, p. 76).

[5] Trata-se do canto Deus creator omnium. Canto extraído do hino de Ambrósio (RICOEUR, 1994, p. 36).

 

Referências bibliográficas:

BORGES, Jorge Luis. “Prólogo para História da Eternidade”. In: _______. Obras Completas, vol. 1. Trad. Carmen Cirne Lima. São Paulo: Ed. Globo, 1999.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Dizer o tempo”. In: _______. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de janeiro: Imago, 1997.

JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de janeiro: Zahar, 1996.

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo I. Trad. Constança Marcondes César. Campinas, SP: Papirus, 1994.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. Livro XI. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2003.

SOUZA NETTO, Francisco Benjamin. “Tempo e memória no pensamento de Agostinho”. In: Tempo e razão — 1600 anos das confissões de Agostinho. Cidade: São Paulo: Edições Loyola, 2002.

Martha Ribeiro é pesquisadora, diretora teatral e professora adjunta da UFF. Publicou pela Editora Perspectiva o livro Luigi Pirandello: um teatro para Marta Abba. Com vários artigos científicos publicados em revistas especializadas, atualmente se dedica ao estudo do Teatro Performativo, coordenando o projeto “Pirandello Contemporâneo” e o Programa de Estudos em Teatro Performativo da UFF.

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores