A propósito de nós mesmos

Crítica de Stereo Franz, obra inspirada em Woyzeck de Büchner, da [pH2]: estado de teatro

28 de maio de 2015 Críticas
Foto: Ana Laura Leardini.
Foto: Ana Laura Leardini.

Vol. VIII nº64, maio de 2015.

 

Resumo: O presente artigo propõe pensar a interface entre escolhas estéticas e políticas no interior de percursos criativos, a partir de comentários sobre a peça Stereo Franz, do grupo paulistano [pH2]: estado de teatro. Parte-se da análise do conjunto de referências anteriores e também próprias deste processo de criação, para buscar pistas acerca da relação entre a trajetória do coletivo em questão e a realização cênica de sua mais recente obra, entendendo esta última como uma etapa ou continuidade da primeira. 

Palavras-chave: [pH2]: estado de teatro, Georg Büchner, dramaturgia de cena, material de criação, percurso criativo.

Abstract: This article proposes an investigation over the possible interface between aesthetic and political choices within creative paths, from comments on Stereo Franz, the more recent play of São Paulo group [pH2]: estado de teatro. It starts with the analyses of a set of previous references and then focusing the creation process on its own, to seek clues about the relation between the trajectory of this collective in question and the scenic realization on their most recent work. The intention is to understand this theatre play as a kind of step, or a continuation of the former path.

Keywords: [pH2]: estado de teatro, Georg Büchner, scenic dramaturgy, material of creation, creation trajectory / path.

 

Segundo dados do senso colhido pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 1976, os brasileiros possuíam 136 cores diferentes (algumas bastante curiosas: lilás, azul marinho, queimado de praia, entre outras). Quando questionados sobre raça e cor, descreveram-se usando como referência cores não usuais quando se pensa em aparência e etnia, dizendo-se ser de muitos modos. Esse conjunto significativo de dados sobre como brasileiros se viam e declaravam a própria cor, quando respondendo a uma pesquisa pública que pretendia identificar a população brasileira de então, serviu como material de inspiração para a artista plástica Adriana Varejão criar uma série que inclui uma caixa de tintas (contendo um jogo de bisnagas com colorações manipuladas para se aproximarem da gama de cores declaradas ao IBGE) e intervenções cromáticas sobre retratos em telas. A tal série, Polvo, data de 2013.

A artista teve acesso à pesquisa de 1976 em 1990. E tanto o resultado quanto o processo de criação da série — que são parte ou capítulo de continuidade em longo percurso artístico dedicado a cruzar questões identitárias com investigação de materiais remanescentes do artesanato brasileiro e de pigmentos diversos — dizem, segundo a própria criadora, que cor, antes de categoria racial, é relação[1]. Relação que passa por modos de construção e enunciação acerca da identidade. O Brasil multicolorido da década de setenta deixa de ser um quadro estatístico com finalidade única de pesquisa sociológica e, nesse caso, torna-se ponto de partida para o gesto criativo de Varejão.

Diferentemente do que propõe Pierce (apud SALLES, p. 137, 2011), a partir de seus estudos semióticos, ao afirmar o real como contrário ao ficcional, fruto de acordo estabelecido ou convenção criada para/por um grupo de vários indivíduos a respeito das características acerca de algo — os dados organizados pelo IBGE podem ser associados à ideia de um real também literário, em grande medida ficcional, portanto. Nesse caso específico aqui exposto, pessoas que se dizem lilases estão utilizando figuras de linguagem para descreverem como se identificam, e para responder a uma questão posta como objetiva: qual a sua cor? Os modos e termos de dizer compõem afirmações que oscilam entre o real (cor, etnia) e o fictício (descrições que exigem substantivos ou adjetivos para completar a ideia de uma cor, que, a princípio, não é conhecida como própria da tez humana). Dessa ambígua relação entre como sou, de fato, e como afirmo ser, na linguagem, emerge o núcleo real-ficcional sobre o qual Adriana Varejão irá se debruçar no percurso criativo que resulta em Polvo.

Fonte primordial de informação e material assimilado ao seu processo de criação, a pesquisa de 1976 permanece, mesmo após mais de duas décadas, como fonte motivadora para uma obra que percorreu vários países da Europa, e foi exposta no Brasil nessa presente década (2013).

Faço essa introdução para chegar em Georg Büchner: o escritor alemão se inspirou na biografia de um jovem assassino, Johann Christian Woyzeck, contemporâneo seu, para escrever a peça teatral Woyzeck. A morte precoce (aos 23 anos, em 1836) interrompeu a escrita do texto que, só conhecemos tal qual porque houve intervenção de outras mãos, coautores da obra, responsáveis por edição e publicação póstumas quatro décadas depois (em 1879, provavelmente).

Büchner tomou como base para a criação do texto teatral um material biográfico, ou narrativas construídas acerca deste (pode-se pensar que o contato do escritor com a biografia se deu por meio de relatos colhidos, fontes indiretas de conhecimento). Escreveu sua obra prima e endereçou, muito provavelmente de modo involuntário, aos leitores situados para além de seu próprio tempo.

Antes, ou em relação com o material biográfico original, questões pertinentes ao seu tempo e entorno social o inspiraram. Dizendo de outro modo: a história real de um jovem assassino, Johann Christian, inspira traços do protagonista e a fábula  e serviu como núcleo de inspiração, como ponto de partida para Woyzeck. Mas, essa mesma biografia e seus dados constituintes imersos em um contexto social, em meio às repercussões da época, receberam influências de um contexto artístico e literário: o romantismo alemão. Portanto, o romantismo como movimento com tendências próprias, algumas presentes no texto final, o que mostra que Woyzeck é criado por um autor engajado a essa matriz estética e filosófica.

E Woyzeck vem à tona após a morte de seu autor para contar a história do jovem Franz, trabalhador de classe baixa, bastante oprimido tanto profissional quanto socialmente dentro da pequena comunidade em que vive. Conhecemos essa fábula (real e ficcional, ao mesmo tempo) sob a perspectiva de um escritor romântico (e visionário para seu tempo, ao criar uma narrativa que anuncia traços de um movimento literário característico do século seguinte, o naturalismo).

Franz é um protagonista que, movido por ciúme e confusão mental, comete um crime atroz contra sua companheira, Marie. O personagem se sente alienado em e por um conjunto social, sabe-se cindido entre argumentos dotados de razão e por ondas torpes de emoções, tomado por sentimentos que não consegue definir, inquietações que não pode identificar claramente. Um homem impotente, frágil diante das próprias angústias, e incapaz de se desvencilhar de tal máquina social destruidora, ou de destruir seus vínculos profundos com esta. E, tomado por ciúmes e passionalidade diante de possível traição amorosa, destrói a pessoa amada. Ao invés de agir direta e concretamente contra aquilo que o agride profundamente, o anti-herói romântico se aniquila, encerra qualquer possibilidade de futuro para si, ao matar Marie; tanto por cometer crime passível de punição quanto por matar a fonte legítima de seu afeto e desejo. A antecipação de traços psicológicos contraditórios e a não idealização romântica são vetores decisivos para a motivação do crime cometido por Franz e marcam o desencadeamento e desfecho da fábula – e fielmente se relaciona com os desfechos da narrativa biográfica original.

Woyzeck é uma ficção à altura das emergentes questões de seu tempo e ainda antecipadora de traços psicológicos, estruturas narrativas e fabulares próprias de um século que seu autor não viveu para conhecer. Vanguarda, no sentido descrito por Umberto Eco, tomando-se a mesma reflexão usada por esse pesquisador, quando escreve a respeito da música atonal, em meados do século passado:

Aqui cabe a pergunta: este universo de relações humanas que o universo tonal reafirma, este universo tranquilo e ordenado, que estávamos acostumados a considerar, é ainda o mesmo no qual vivemos? Não, aquele em que vivemos é o herdeiro deste, e é um universo em crise. Está em crise porque à ordem das palavras não corresponde mais uma ordem das coisas (articulam-se ainda as palavras segundo a ordem tradicional, enquanto que a ciência nos incita a ver as coisas dispostas conforme outras ordens, ou até mesmo segundo a desordem e a descontinuidade); está em crise porque a definição dos sentimentos não corresponde à sua efetiva realidade, seja nas expressões estereotipadas em que se esclerosou, seja em suas próprias formulações éticas; porque a linguagem reproduz uma estrutura dos fenômenos que não é mais aquela com que os fenômenos se apresentam nas descrições operativas que fornecemos delas; porque as regras de convivência social são regidas por normas que não retratam de modo algum o desequilíbrio de tais relações.

Então, o mundo está muito longe de ser como desejaria reproduzi-lo o sistema de linguagem que, justamente, é recusado pelo artista de ‘vanguarda'; pois acha-se cindido e deslocado, desapossado das coordenadas da velha ordem, tal como está despojado das coordenadas canônicas o sistema de linguagem que o artista adota. (ECO, 1968, p. 252-253).

 

Voltando à Woyzeck, de Büchner, seu confuso Franz compara, à beleza de Marie, o pecado mortal. A peça fala de um homem perdido entre seus impulsos selvagens e noções cristãs acerca da moral. Representante do indivíduo em crise de seu século, desencantado diante da perspectiva racionalista à época em voga no âmbito científico e filosófico de toda Europa ocidental — o personagem central e a peça como um todo carregam aspectos das crises emergentes de um tempo e de um momento histórico particulares. Traz à cena a figura de Marie, um duplo oposto do protagonista: misto de mãe dedicada, amante volúvel, e mulher disposta a ultrapassar as linhas opressoras de sua condição social (classe baixa, mulher) usando dos raros meios dos quais dispõe para tal. E Marie, igualmente oprimida, mas decidida a mover-se para fora da condição miserável em que se situa, assim o faz traindo seu par, e sobrepondo a qualquer sentimentalismo a vontade irrefreável de mudança, mudança que também pouco sabe nomear, e que quer para si. Seu gesto não gera senão a própria morte, o encerramento de todo projeto ou desejo idealizado. Mas há que se considerar o intento, o movimento esboçado por essa personagem antes de seu fim trágico.

Compromissado com as questões sociopolíticas e estéticas nas quais estava inteiramente inserido, Büchner escreveu na pertinência de inquietações latentes, e talvez não tenha sequer sonhado planos de conversar, séculos depois, com criadores e pensadores do mundo ocidental.

Entretanto, valendo-se desse material literário legado por Büchner como referência nuclear — material esse sobrevivente às mudanças vividas por quase dois séculos transcorridos em um mundo ocidental colapsado; palco da derrocada de certezas históricas e da própria noção de humanidade, em meio a guerras, faxinas étnicas, catástrofes de pequena, média e larga escala seguidas — o coletivo paulistano [ph2]: estado de teatro aproximou-se de questões do nosso aqui e agora, e também da noção de geracionalidade — seu atual objeto de estudos e experimentos.

Criado em 2007, o grupo [pH2] dedica-se ao teatro que busca interface com materiais originários da filosofia, da pedagogia e do cinema. Trabalham em processos colaborativos de criação, com rodízio de seus integrantes em funções diferentes a cada novo trabalho. Essa característica bastante peculiar ao grupo é incomum no cenário teatral paulistano, e aponta para um modelo menos hierarquizado de criação e de produção, evitando excessiva especialização e segmentação dos integrantes em funções. As peças do grupo trazem à cena a concretização desses processos pautados no imbricamento entre áreas do conhecimento e campos de atuação, e dos materiais diversos usados para criação.

Até 2012, todas as experiências se voltaram a pensar o trágico no interior da contemporaneidade, resultando na trilogia de espetáculos: Manter em local seco e arejado (2009), Mantenha Fora do alcance de crianças (2011) e Átridas (2012), respectivamente.

Conforme informações encontradas no site do grupo:

Desde sua origem, o [pH2] compreende a criação teatral como uma possibilidade de atuação política e, assim, pauta suas ações na construção de uma estética e pesquisa originais que vá em direção a públicos e olhares distintos.

(…) Com isso, além da trilogia, no final de 2012, produziu sua primeira publicação: o dossiê Diálogo com o trágico. Esta publicação traz respostas de diversos pensadores e artistas brasileiros à pergunta que deu origem à pesquisa do grupo.

Encerrando sua pesquisa sobre a tragédia em 2012, iniciou novas investigações culminando na criação do espetáculo Stereo Franz. Espetáculo que foi criado a partir da obra dramatúrgica de Georg Büchner, configura-se como um divisor de águas para o grupo em direção ao seu novo projeto de pesquisa: investigar a temática da geração, propondo a pesquisa cênica ‘Que hacíamos em 1985’. (Disponível em: http://www.ph2estadodeteatro.com. Acesso em 2015).

 

Stereo Franz inicia, assim, a nova etapa de criação do grupo, e vale-se de um conjunto híbrido de referências usado como ponto de partida e também base para questionamentos políticos da contemporaneidade. A ideia de sermos nós hoje constituídos de uma matriz neorromântica — num contexto política e culturalmente complexo ao extremo (cujo nível de complexidade dialoga diretamente com o contexto vivido por Büchner) — são peças desse conjunto ou formulação da qual o grupo parte. E, eis outro elemento importante, essa formulação como ambiente cultural para pensar a formação e a vivência de toda uma geração. Nesse imbricamento de matérias, referências e formulação inicia Stero Franz.

Muito antes de a entrada do público acontecer no espaço cênico — e este lembra uma taberna, que encontramos na chegada ao som de um trio musical performático, Sturm und Drang (nome da banda alude ao movimento literário pré-romântico, na Alemanha), formado pelos atores e também músicos do grupo: Beatriz Limongelli, Cainã Vidor e Bruno Caetano — a peça começa na busca por dar corpo cênico a hipóteses e questões sobre nós, agora viventes, política e socialmente ativos. Gesto criativo que busca pistas e contornos para criar um núcleo dramatúrgico a propósito de nós mesmos.

Não é Woyzeck quem diz em cena; é aquilo que Büchner empresta para ser dito agora, com entonação, fluxo e vocabulário desse presente. A palavra usada em cena é de autoria da dramaturga Nicole Oliveira em colaboração com os atores e a direção, de Paola Lopes. E, assim, a palavra é gerada sintática e socialmente em uma geração, em seus modos de falar sobre si e sobre o mundo, assumindo a difícil tarefa de dizer-nos enquanto na iminência e no trânsito de acontecimentos, com angústias frente às catástrofes de pequena e larga escalas desse tempo; fazendo vir à fala o ímpeto do momento e as dúvidas de quem está implicado naquilo que tenta dizer. Com torpeza e também no movimento vertiginoso de quem se sente no olho do furacão, com sentimentos confusos e ideias incipientes, Franz e Marie, e também os demais personagens, falam de si, dos outros e desse agora.

Nesse gesto, a proposição de deixar menos turva a visão política sobre nós, ao tentar evidenciar traços perversos presentes em macro e microestruturas do poder: mecanismos coercitivos identificáveis nas falas e nos afetos, introjetados nos meandros das relações de trabalho até os vínculos ditos amorosos.

Stereo Franz parte de muitos pontos para gesticular nessa direção, com vontade de participar ativamente do que pensamos hoje, contribuindo com sua obra teatral para a tarefa de construção de um corpo identitário a partir de questões ao redor dos atos de fala, de escuta e de nossos afetos (o “Stereo” presente no título como menção ao acontecimento ruidoso de se processar fala e escuta simultaneamente, ou como caráter precário do intento comunicativo de Franz — essa figura humana acuada entre a vontade de saber e de se dizer, e em igual medida incapaz de completar essa operação de inventariar-se como indivíduo autônomo).

A partir deste ponto, torna-se possível o encontro entre essa obra teatral, a peça literária de Büchner e a série de Adriana Varejão.

Como Adriana Varejão, o grupo paulistano ensaia a compreensão de um agora atravessado por eixos de acontecimentos e por vetores de pensamentos que atuam como ruídos, interferências sonoras que duelam com intenções de clareza, e não constam em paletas de discursos e de certezas históricas por nós já formuladas, e que requerem pensarmos nossa constituição humana por meio do jogo entre multifacetárias relações envolvendo poder e afeto.

No texto do programa criado para a temporada paulistana, trecho bastante esclarecedor sobre esse aspecto estéreo da peça (e estéril, do humano):

(…) Pensando na atualidade do texto e na maneira como Büchner estrutura o discurso das figuras — aqueles que dominam a linguagem pouco tem o que dizer, enquanto aqueles que precisavam ser ouvidos não encontram meios de falar — a criação se deu a partir da ideia de uma tragédia da língua, em seu sentido discursivo e físico, na palavra e na matéria. Um pouco como Georg Steiner analisa a peça em seu estudo A morte da Tragédia:

‘A angústia de Woyzeck engatinha na superfície da fala e aí é arrastada de alguma forma, irrompem somente clarões nervosos, estridentes.’

 

E o gesto para tal percurso de pesquisa e de criação passa por referências da literatura e da filosofia do século XIX; da música e da poesia brasileira tropicalista (ou de um tropicalismo mais à borda, com referências e repertórios de Wally Salomão, Jards Macalé, em meio a composições de Caetano Veloso); de filmes mais ou menos recentes, como Attemberg (de Athina Rachel Tsangari, Grécia, 2010) e Gummo (de Harmony Korine, Austrália, 1997).

Stereo Franz estreou na Alemanha, na cidade de Giessen, durante o Festival Büchner International, em 2013 — evento comemorativo do centenário do autor de Woyzeck. Em 2014 esteve na programação do Festival Mirada (SESC Santos), e cumpriu sua primeira temporada em janeiro e fevereiro deste 2015, no SESC Santo Amaro, em São Paulo.

Entre a data de sua estreia até o final da temporada paulistana (mais de um ano e meio), tive várias oportunidades para conversar com integrantes do [pH2], e também acesso ao projeto original (com proposição de encenação e realização), ao vídeo de registro do processo aberto ao público realizado na USP, e pude assistir igualmente a duas apresentações no SESC Santo Amaro. Também, em meio a esse período, o mesmo coletivo participou do projeto perfomáticos_inquietos_radicais, ocasião em que houve debate sobre seus processos de criação e sobre aspectos da presença da performatividade nesses percursos — sobre os quais há artigo publicado na edição anterior desta Questão de Crítica[2]. Além disso, pude trocar mensagens e questões por escrito com a autora do texto.

A partir desse vasto material de análise, evidências de que o diálogo estabelecido por [pH2] com a obra alemã se dá mais em relação às características dos personagens apresentados na trama original, e nas contradições e paixões presentes nas relações entre eles, do que naquilo que podemos chamar de estrutura literária ou dramaturgia textual. Até porque, nada textocêntrica, a peça em questão articula ao texto e à performance dos atores a exibição de vídeos previamente produzidos (por Renato Sircili, com o ator Rodrigo Batista; e esse último atua como Franz); a captação e exibição feitas em tempo real em câmera de mão e monitores de vídeo espalhados pelo cenário (cenário criado por sua diretora), feitas por um dos personagens (Ethan, por Daniel Mazzarolo); repertório e performance musical do trio Sturm und Drang (parte e braço musical do coletivo teatral); além do som de  Cainã Vidor e Diego Caldas, e luz de Luana Gouveia. Todas essas articulações geram camadas que compõem uma dramaturgia de cena ruidosa.

O espaço cênico é dividido em dois espaços com ações simultâneas e integradas (bar / taberna e uma área externa — vista pelo público por meio da transparência de uma parede de vidro, que separa a área interna da sala cênica do SESC Santo Amaro, de um vão, e de uma área descoberta, que atua na peça como uma rua, onde parte das ações da peça se desenvolvem). Aliás, a divisão do espaço cênico em dois ambientes separados por um vão, ao assistirmos, gera a sensação da separação não somente física, entre parte dos acontecimentos, elenco e público, como também simbólica. A arquitetura proporciona a expansão, ou a sensação de intensificação da distância entre personagens e ações, quase que criando dimensões apartadas, realidades cênicas em mundos paralelos. É a transparência do vidro que sugere a interligação e também a cisão entre esses “mundos” e reforça o ruído de comunicação entre eles e seus personagens.

Por um lado, a peça marca a descontinuidade ou o rompimento do grupo com uma linha na trajetória de pesquisa relacionada à tragédia, com o modelo trágico. A tragédia explode nesse novo espetáculo, e não seria modelo suficiente para abarcar diálogos, interfaces e opções de dramaturgia. Por outro lado, a intencionalidade de se atravessar por questões geracionais e políticas da atualidade durante o percurso criativo está expressa na mesma medida em interesses novos declarados pelo grupo, e na realização cênica de uma estrutura teatral que é misto de épico e performance, com pluralidade de camadas dramatúrgicas, narrativas estilhaçadas, ambientes espaço-temporais diversos. São essas pistas para uma experiência com Stereo em função da cena, e com ênfase no percurso que leva até ela.

Em ensaio sobre estética e política, o filósofo Jacques Rancière escreve acerca dos limites do modelo trágico para assuntar sobre política na contemporaneidade:

(…) A política aí se representa como relação entre a cena e a sala, significação do corpo do ator, jogos de proximidade ou da distância. (…) Assim, por um lado, essas formas aparecem como portadoras de figuras de comunidade iguais a elas mesmas em contextos muito diferentes. Mas, inversamente, elas são passíveis de remissão a paradigmas políticos contraditórios. Tomemos o exemplo da cena trágica. Para Platão, ela é portadora da síndrome democrática ao mesmo tempo que do poder da ilusão. Isolando a mímesis em seu espaço próprio, e circunscrevendo a tragédia em uma lógica de gêneros, Aristóteles, mesmo que não se tenha proposto a isso, redefine sua politicidade. E, no sistema clássico de representação, a cena trágica será a cena de visibilidade de um mundo em ordem, governado pela hierarquia dos temas e a adaptação, a esta hierarquia, das situações e maneiras de falar. (RANCIÈRE, 2009, p. 24-25).

 

Em Stereo Franz o humano, a fala, o mundo e a órbita política não estão em ordem, hierarquizados e organizados de modo a entreverem eixos bem definidos sobre os quais se possa erguer discursos e ações. Predominam as sensações de ruído, de caos, de incomunicabilidade entre personagens, pensamentos e ações destes. Há uma desarticulação da ideia de hierarquia, para compor uma espécie de sinfonia de muitas vozes e vontades que não se ouvem, não se alcançam, não se entendem.

Para tal, Stereo Franz usa línguas estrangeiras em cena (a personagem de Beatriz Limongeli só fala em castelhano; e parte do repertório da banda é cantado em inglês), e a imagem de mutilação da própria língua (Franz aparece em cena com sua língua cortada, após consumar o crime, que fica subentendido ao público). Esse conjunto sonoro (canções e personagens bilíngues) e imagético (a língua, como músculo e como veículo fundamental da fala) desenha um estado crítico, em que homens e mulheres são vítimas e algozes de si mesmos. Não há deuses ordenando, punindo ou articulando tramas; não há conjunção astrológica favorável para reger a vida humana, não há heróis entre nós, nessa Terra; não há ferramentas eficientes ou ações competentes do Estado; não há um corpo social justo, coeso e abrangente, capaz de estabelecer condições dignas para a existência dos personagens dessa peça e para a plateia que assiste.

Stereo Franz se constrói também sobre essa disparidade humana: a prevalência da pulsão e do gesto destruidor atravessando relações já há muito corrompidas, violadas por uma sensação cortante: a de estarmos sós em meio a um enorme sistema solar — o único sistema de funcionamento exato e intacto que nos restou pensar.

Sobre a dramaturgia textual e a “língua” escolhida para essa obra inspirada em Woyzeck, um trecho da peça:

Marie (atuada por Maria Emília Faganello): …E se a gente abolisse todas as proibições? E se a gente se desgarrasse do sistema capitalista? Não, melhor se a gente se desgarrasse do sistema socialista também! E se a gente formulasse um plano que desestruturasse toda e qualquer ordem vigente? E se a gente modificasse a estrutura mais profunda do pensamento humano? E se a gente criasse um terceiro sistema? Uma terceira via? Algo entre o osso e o músculo? Entre as veias e o sangue? Entre o órgão e a pele? Um novo caminho para o sangue, sem limites, impedimentos, trajetórias? E se a gente parasse de comer carne? E se a gente parasse de comer, de uma vez por todas? E se a gente ficasse doente, de cama com manchas roxas pelo corpo esperando uma explicação dos homens que não viria e que não virá jamais? (OLIVEIRA, 2012, p. 14).

 

Tomando desse extrato o vocabulário empregado, a estrutura e a entonação da personagem como exemplos do material criado por [pH2], pode-se notar a presença de questões emergentes de nosso contexto (descrença em relação aos modelos políticos conhecidos, e desconfiança da potência de mudança) e modos com os quais hoje, mulheres e homens, tentam se dizer (e, por consequência, se situar) em meio à crise de nossa pertinência. Marie nos fala de seu corpo como ambiente de uma crise que, muito maior que a escala humana, a transpõe. Coloca-se fisicamente como corpo dessa e nessa crise.

E, aqui, cabe mais uma consideração sobre o conjunto de camadas que formam essa dramaturgia contemporânea: o tônus de corpos cansados, os sentidos levemente alterados (atores e público bebem e comem durante a apresentação da peça) e a presença performática dos atores em cena dizem também sobre o teatro de nosso aqui e agora. Teatros que já não se contentam com ideias remanescentes do século passado sobre desempenho e atuação em jogo com texto, espaço cênico e presença dos públicos, música e demais elementos.

Nessa peça, música, luz, texto, tudo está em jogo e no próprio corpo do ator, assim como o ator está inteiramente engajado na temática crítica que o espetáculo apresenta. Ou seja: é um ator-performer, cuja biografia e corporalidade, seus aspectos físicos e psicológicos, seus materiais memoriais e angústias não se separam do material de atuação. Marie é também Maria Emília, a atriz, mulher de 2015, personagem em contracena com Bruno Moreno, que é astronauta, e Júlio Barga, sua personagem, e também ator paulistano com seus cerca de 30 anos de idade.

[pH2] parece-me, assim, um coletivo de pensadores e criadores que está em cena, representando, antes de objetos e literaturas externas, a si e a nós mesmos. São e estão circunscritos ao que está no interior da estrutura cênica. Nada se toma de empréstimo para a formalização; são referências trazidas, incorporadas para a performance.

Encerro, mas penso que não concluo — por ser esse artigo resultado de uma análise não estritamente a partir da recepção de duas apresentações da peça, mas também uma tentativa de entender o percurso desse grupo, usando recursos que estão para além do que a cena oferece, e me valendo do meu percurso de acompanhamento (direto e indireto, e descontínuo) do [pH2]: estado de teatro — com mais uma passagem de Umberto Eco, quando relaciona política e estrutura na obra de arte:

(…) o que poderia parecer-nos um discurso sobre o homem, deveria hoje conformar-se com os módulos de ordem formativa que serviam para falar de um homem de ontem. Rompendo esses módulos de ordem, a arte fala do homem de hoje, através da maneira pela qual se estrutura. Mas, ao afirmar-se isto, faz-se a afirmação de um princípio estético do qual não mais nos deveremos afastar se quisermos prosseguir nessa linha de pesquisa: o discurso primeiro da arte, ela o faz através do modo de formar; a primeira afirmação que a arte faz do mundo e do homem, aquela que pode fazer por direito e a única de significado real, ela o faz dispondo suas formas de uma maneira determinada, e não pronunciando, através delas, um conjunto de juízos a respeito de determinado assunto. Fazer um aparente discurso sobre o mundo, narrando um ‘assunto’ diretamente relacionado com nossa vida concreta pode ser a maneira mais evidente e, contudo, imperceptível, de fuga ao problema que interessa, ou seja: reconduzir certa problemática atual, reduzido ao âmbito de um sistema comunicativo ligado à outra situação histórica, para fora dos limites do nosso tempo e assim, na realidade, nada dizer sobre nós. (ECO, 1968, p. 254-255)

 

Referências bibliográficas:

ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1968.

FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. São Paulo: Sala Preta, 2008.

OLIVEIRA, Nicole. Stereo Franz. Texto não publicado, São Paulo, 2012.

PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 2014.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2009.

SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Intermeios, 2011.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

GIANNOTI, J. A. O jogo do belo e do feio. São Paulo: Cia das Letras, 2005.

 

Natália Nolli Sasso é programadora de teatro do SESC Belenzinho, curadora e mestranda do Instituto de Artes da Unesp.

[1] Adriana Varejão em entrevista à revista Arte!Brasileiros, edição n. 23. São Paulo, 2014.

[2] Ver edição de dezembro de 2014 da Revista Questão de Crítica.

 

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores