Elas chegaram na sala

Crítica da peça Os adultos estão na sala, dramaturgia e direção de Michelle Ferreira

27 de agosto de 2013 Críticas
Foto: Divulgação.

São Paulo pode ser uma cidade extremamente masculina. Apesar das noções de gênero se apresentarem cada vez mais difusas, e nada mais ser só isso ou aquilo, ouso pensar na virilidade dessa cidade como feição predominante de seus traçados e contornos. Não é preciso ir muito longe, ou basta olhar ao redor, para que a arquitetura e a paisagem mostrem quão masculina pode parecer essa metrópole. Começa por seu nome. Mas são suas estruturas e desestruturas que chamam minha atenção: o gesto de arranhar um céu impossível de se alcançar, desordenadamente, como um garoto prodígio; ou o movimento concreto de se acotovelar em desenhos monumentais, competitivos; a enormidade de escala, o exagero das armações, e o crescimento em sentido vertical, via de regra.

Talvez por isso tenha sido aqui que o Brutalismo (ou a arquitetura brutalista) encontrou seu habitat mais duradouro. Ainda hoje, e faz cinco décadas, prevalece enquanto linguagem e conceito do que se ergue e constrói. E a cidade se materializa em direção às alturas, com parte significativa de sua população empoleirada em conjuntos habitacionais, edifícios residencias e comerciais, kitinetes antigos e estúdios modernos, dia e noite. Uma cidade porta adentro, para cima, ombro a ombro, espaços mínimos e disputados a tapa – estilo de vida conformado ao cenário.

Se é assim que se vive boa parte do tempo, a pequena sala de um apartamento do centro da cidade pode ser o epicentro desse cenário geral. Milhares deles, mas um em particular é onde acontece a peça Os adultos estão na sala – dramaturgia e direção de Michelle Ferreira, assistência de direção de Solange Akierman; com Flávia Strongolli, Maura Hayas e Michelle Boesche no elenco, cenografia de Ane Cerutti e produção de Berenice Haddad.

A peça é realizada por um time de artistas (todas mulheres) extremamente competentes e sinaliza para a maturidade de Michelle Ferreira como autora teatral. Nada impensado, a peça é um quadro crítico acerca da vida metropolitana e, sobretudo, do ponto de vista feminino.

Cabe dizer que o vigor da proposta teatral dessa turma se confirma com a mobilidade da peça – atualmente iniciando a quarta temporada na cidade mãe, melhor dizer, pai, da realização: estreou em março desse ano no Sesc Pinheiros, seguiu para o espaço do Cemitério de Automóveis (sede do grupo homônimo) em junho; em julho entrou em cartaz no recém criado CIT – ECUM (Centro Internacional de Teatro), e nesse mês de agosto reestreia no TUSP – Maria Antônia.

E não há nada de agradável ao público nessa obra de Michelle Ferreira que migra pela cidade; ao contrário, nela abunda o grotesco cômico e a crítica social ácida.

As três personagens, cada qual a seu modo e mania, trazem a monstruosidade colada à nuca. Caminham pela sala do apartamento de Clara Day (Michelle Boesche), e se alternam num sofá de três lugares, como caricaturas de mulheres, exageros de suas próprias feminilidades, e – por que não? – exageros de suas humanidades. Como se o humano já não bastasse, ordinariamente, e apenas no exagero alcançassem aquilo que de fato são em potência, como personagens.

A direção orientada nesse registro caricatural, e a desenvoltura primorosa das atrizes, que se alternam num jogo ágil de quebras, retomadas e continuidades, cria uma espécie de ritmo musical à cena. (E se é música, o play list é rock’n roll)

O texto é trabalhado com a fluência incessante do grotesco. E parece impensável uma outra versão para essa peça, alguma saída senão a articulação do registro caricatural com a textura rude e ríspida do verbo em cena. A fábula tem a simplicidade dos pequenos acontecimentos. Um encontro entre três adultas abalado pela presença de uma criança. Em resumo: a chegada de um menino sem nome, filho da ativista de todas as causas perdidas, Dulce Vicente (Maura Hayas), à casa da solteirona Clara Day, amiga inseparável da perua Ivone Dim (Flávia Strongolli). A convivência inesperada com a criança, e sua mãe, são fatores de perturbação da estabilidade precária de uma rotina viciada entre as duas últimas – amigas de longa data. Tanto a estrutura do texto quanto a desenvoltura das ações estão em acordo e visam valorizar esse episódio como o clímax, e chave para a encenação.

Se como a dona da sala faz entrever numa de suas falas – “esse sofá moldou meu caráter” – é em função de uma narrativa cômica e cruel, sobre o caráter das relações entre mulheres dessa cidade um tanto absurda, que a fábula se desenvolve. Para tal, e como costura formal, simplesmente. Porque a ação se situa num plano secundário, e em função dessa espécie de crônica sobre o feminino, feminino deformado.

A imobilidade e o não acontecimento estão destacados no primeiro plano, onde se movem estranhamente as três mulheres. É disso que se trata: são as personagens, com toda a carga grotesca sobre a qual sustentam suas relações e na qual deformam suas feições, que estão em relevo na obra. O espaço cênico privilegia a imobilidade de cada uma em direção a si mesma, e a recusa de se relacionar com as questões de um mundo que range lá fora. Lá fora, tudo parece um tanto assustador, e deformado, por espelhamento.

Nos diálogos, afeto e prazer como algo perigoso, pernicioso, e sujo. Assim, e tristemente, essas mulheres não existem enquanto mulheres. Ou só existem na medida grotesca, cruel. E é a passagem da tal criança pela casa que irá desorganizar a solidez do que se diz e do que se sente, para trazer à tona o que se pretende negar. Uma criança que também – parodiando levianamente Jacques Lacan – não existe.

Parecem discursos prolixos, contraditórios, recém saídos do silêncio de uma “cozinha” milenar (ou seria porão?). O ensaio sobre si mesmas. Essas mulheres mal atravessaram os corredores, para alcançar a sala de estar, e já estão à beira de um desastre. Em Os adultos estão na sala, elas chegaram há pouco, mas não cabem ali, e – por mais que evitem o tema – sabem disso. Eis a inexorabilidade da situação. Faz pensar, rir, um tanto nervosamente.

Quando conheci esse projeto, ainda um embrião em fase de ensaios, me perguntava sobre os porquês de uma obra do teatro contemporâneo se concentrar no ínfimo espaço físico de uma sala equipada com um sofá, no diminuto espaço social das relações entre três mulheres adultas e uma criança. Pensava no risco de esgotamento; risco necessário, de saída. Mas a assistência da peça, depois de pronta, me faz perceber como a realização deu corpo ao risco, e encorpou o ensimesmamento da situação ficcional como trunfo.

Possivelmente, é uma obra de teatro que parte de um universo minúsculo para ecoar no maiúsculo de uma metrópole. Tudo isso, sem incorrer na psicologização, sem optar por atalhos, sem erguer bandeiras mais ou menos simplificadoras. Méritos muitos, e compartilhados por uma equipe – no que me parece um teatro feito de muitas participações, com o envolvimento integral dessas artistas de A Má Companhia Provoca.

***

Em tempo: na Sala Experimental do Teatro Augusta, em cartaz esse mês Tem alguém que nos odeia. Outro texto de Michelle Ferreira, com direção de José Roberto Jardim, no elenco Ana Paula Grande e Bruna Anaute. Nessa montagem, a direção opta por um registro próximo ao naturalismo, sustentando no jogo entre dramaturgia e encenação um clima de suspense. Toda a cena é construída engenhosamente com o uso planejado das palavras, entrecortadas por silêncios calculados. A peça é uma espécie de thriller contemporâneo, em que um casal de lésbicas vê-se subitamente ameaçado por vizinhos, numa fábula sobre a intolerância velada, e socialmente justificada. Aqui, a escolha da direção vai ao encontro da construção de um ambiente cênico em que tudo parece tão delicado, que fragilmente pode se romper, a qualquer momento, seja por meio da palavra dita, ou silenciada. As atuações se organizam em torno de respirações, e pausas meticulosas. Outra opção imperdível da cidade de São Paulo.

Natália Nolli Sasso é jornalista e programadora de teatro do Sesc Belenzinho.

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