O drama engajado na contemporaneidade

Crítica da peça Dois amores e um bicho de Gustavo Ott, direção de Guilherme Delgado

22 de dezembro de 2014 Críticas

Vol. VII, nº 63, dezembro de 2014

Resumo: A presente crítica analisa o espetáculo 2 amores e 1 bicho do dramaturgo venezuelano Gustavo Ott, dirigido por Guilherme Delgado, com o objetivo de entender essa nova dramaturgia engajada que se edifica por meio de uma atualização do drama de ideias de ambição filosófica. Busca-se captar os impasses éticos e ideológicos apontados pela obra e o quanto ela dá a ver uma experiência de mundo multifocal, expondo a fragmentação e os paradoxos da contemporaneidade cujas relações humanas são vistas a partir de uma biopolitização da vida humana.

Palavras-chave: Dramaturgia, Ética, Engajamento

Abstract: This review analyzes the play Dois amores e um bicho, written by venezuelan playwright Gustavo OTT and directed by Guilherme Delgado, with the goal of understanding this new political dramaturgy that maintains itself through an update of drama with ideas of philosophical ambition. We try to capture the ideological and ethical dead-locks pointed by the play and how much it shows an experience of a multifocal world, exposing the fragmentation and the paradox of contemporary times in which human relations are seen through a proccess of bio-politics of human life.

Keywords: Dramaturgy, Ethics, Engagement

O drama engajado na contemporaneidade

Yndara Barbosa, Ana Paula Novelino e Victor Fraga. Foto: Divulgação.

O espetáculo Dois amores e um bicho de Gustavo Ott, que esteve em cartaz em duas temporadas no espaço Tom Jobim, tendo seu início em 04 de julho de 2014 e término em 02 de novembro do mesmo ano, com direção de Guilherme Delgado, trouxe à cena carioca a obra do prestigiado dramaturgo venezuelano – que tem o mérito de discutir conflitos políticos contemporâneos como a biopolitização da vida humana (isto é, o achatamento do homem no ser-animal) dentro de uma estrutura de drama familiar.

Na obra de Ott, esta relação se apoia na ligação do habitat familiar, o lar, ao zoológico. Não há a casa, espaço por excelência do drama burguês, com seus porões, cofres e quadros. Transforma-se, portanto, o ambiente domiciliar em espaço de domesticação da selva. E esta justaposição propõe uma discussão crítica que discorre, ao mesmo tempo, acerca da ferocidade e estado de cativeiro político que nos aflige atualmente.

Na estrutura da peça, vê-se formalizado o drama de ideias (neste caso, paradoxais) conhecido pela tradição da dramaturgia ocidental moderna dentro do percurso que vai de Ibsen a Sartre. Nesta tradição, a escrita dramática utiliza-se das personagens e do espaço cênico com o objetivo de criar um campo de debate ideológico, ajuizando sobre problemas éticos. Na maior parte das vezes, expondo paradoxos morais, mais do que defendendo modos de vida. Tais obras são, por isso, chamadas de peças de tese; nomenclatura que acabou por burocratizar o componente vivo das ideias e dos paradoxos trazidos por essas obras que pouco defendem, necessariamente, uma única ideia, e sim investigam situações ideológicas dentro de um contexto ficcional específico.

Para ficarmos no primeiro exemplo, basta que confrontemos a “tese” de O inimigo do povo com a de O pato selvagem de Henrik Ibsen. Na primeira, o dramaturgo está claramente a favor do idealismo da personagem principal, enquanto na segunda obra, o ideal de Gregers em busca da verdade é mostrado como extremista. Nota-se, portanto, que as peças fazem menos uma defesa de suas teses do que uma sondagem dos problemas da condição humana dentro de circunstâncias ficcionais dramáticas.

A expressão peça de tese, misturada à nomenclatura drama engajado, ganha uma conotação mais infeliz quando associada à obra de Jean-Paul Sartre. No meio das disputas inférteis, acabou-se por nomear assima peça de Sartre por demérito. E, infelizmente, esse rebaixamento surgia em um ringue, no qual Sartre era nocauteado por Samuel Beckett como dramaturgo e por Martin Heidegger como filósofo.

Assim, o filósofo francês era desprezado por uma academia francesa por ser pop demais. Mas novos filósofos surgiam para ocupar este lugar de destaque midiático sem dizer não à academia, reconhecendo maior familiaridade com Heidegger, Merleau-Ponty e Nietzsche do que com Sartre (falo de Deleuze e Foucault). Do mesmo modo, ele era considerado mau escritor no confronto com Albert Camus e sem a inovação formal e o esmero dramatúrgico ao ser comparado com Beckett. Ou seja, dizia-se, e diz-se, que sua escrita não é rigorosa e suas ideias não são tão boas. Este senso-comum ocupou, e ocupa, boa parte das cabeças pensantes neste mundo intelectual em que vivemos.

De fato, essas ideias aparecem neste funil radical da autonomia da arte moderna, cujo grande teórico e crítico da cultura Theodor Adorno tem sua responsabilidade. Me refiro ao artigo Engagement em Notas de Literatura 1 – ensaio excepcional, mas, parcialmente, responsável por este lugar-comum crítico, pois o senso-comum também se constrói de leituras rasas e chapadas dos textos. E dentro desta perspectiva crítica afunilada, nunca imaginou-se que obras como As moscas, ou Entre quatro paredes de Jean-Paul Sartre seriam seminais para uma nova concepção do drama das ideias – ou de uma dramaturgia fortemente engajada intelectual e politicamente. Se a influência da obra de Sartre não é comparável à roda e ao urinol de Duchamp na arte contemporânea, certo desconforto recente em torno da figura do dramaturgo-filósofo foi incapaz de reconhecer como ele se faz presente em dramas contemporâneos cuja reflexão política não está presa a determinismos factuais e a discursos panfletários, mas abrange questões existenciais mais profundas: como o problema da liberdade (autonomia política) e da metamorfose virtual dos espaços públicos e privados deste mundo em rede.

Neste sentido, podemos dizer que Dois amores e um bicho de Gustavo Ott traz em seu cerne o mesmo anseio das peças do dramaturgo francês citadas no parágrafo anterior. A justaposição do zoológico e do espaço familiar na obra do dramaturgo venezuelano é bem aproximável ao amálgama do apartamento e do inferno em Entre Quatro Paredes de Sartre. Contudo, o arcabouço filosófico que sustenta a obra de Ott parece ligar o existencialismo sartreano ao pensamento de Michel Foucault (e seu desdobramento em Giorgio Agamben) acerca de uma microfísica do poder e da biopolitização da vida humana no mundo atual.

A peça narra a história de uma família comum composta por um pai (Pablo), uma mãe (Karen) e uma filha (Carol) diante de um acontecimento trágico: o homicídio praticado pelo progenitor contra um cachorro. O motivo? O animal mantinha relações homossexuais com outro cão. No texto de Ott, os dois bichos chamam-se General e Bandido, e essa nomenclatura abstrata já revela a preocupação simbólica do dramaturgo de sobrepor, nestes dois animais, uma metáfora crítica e paradoxal que nos faz refletir. General molestava Bandido.Há aí uma relação de dominação ou de desejo?

Cito, pois, uma passagem da peça:

“Pablo – Sim, General estava procurando por Bandido e eu já lhe havia dito que não o fizesse. Havia advertido que não o fizesse. Havia batido nele com um jornal apenas alguns dias antes. Chutei-o na última vez que o vi tentando ficar com o outro cachorro e ele me olhou como se entendesse.”

Como observamos, o nome do bicho traz um aspecto que nos dá a ver um gesto de duplo fundamentalismo de Pablo. Ele mata o animal por praticar homossexualismo, mas mata igualmente um General. Ele é, ao mesmo tempo, um homofóbico e um terrorista. Por isso, as imagens mencionadas na televisão de um atentado com bomba em uma escola não estão desconectadas da ação principal da peça e tampouco o envenenamento contra a vida dos animais do zoológico trata-se de um simples episódio misterioso. Há, portanto, neste gesto de homicídio uma ambiguidade crítica na qual o dramaturgo nos faz pensar sobre qual homicídio é mais perdoável e mais monstruoso: o contra o General que força o Bandido a se submeter à sua investida; ou aquele contra o frágil cachorro que dominado por seu desejo sexual abusa do outro.

O aspecto paradoxal criado pelo conflito da peça nos põe diante de uma questão política própria ao mundo contemporâneo: a crise das ideologias e o limite da vida humana. Isso porque na peça o animal é humanizado, e os homens, em parte, são animalizados porque vistos neste espaço político de um zoológico. Logo, o que assistimos não pode ser lido como um conflito maniqueísta, mas como uma questão ética mais abrangente. O problema de fato é este: a pregnância de conflitos em um mundo que não há verdades e sim paradoxos éticos indissolúveis.

Alguém pode considerar correto matar um general que abusa de um bandido. Mas não avaliará como acertado o assassinato de um homossexual por conta de seu desejo. Ou vice versa: um sujeito pode se sentir identificado com um general e odiar um homossexual. Sabemos que a democracia é um regime que comporta dentro de si o paradoxo ético. Logo, o assassinato do cão é um núcleo dramático, mas é também uma espécie de órbita de uma problemática ética indissolúvel.

Na adaptação de Guilherme Delgado, o nome General foi substituído por Cabral (imaginemos mais, neste caso, Sérgio Cabral do que Pedro Álvares Cabral) porque, conforme disse-me o diretor do espetáculo, o nome General não possui mais a força de outrora. Talvez a resposta de Delgado se deva ao fato de não haver mais uma figura militar no poder. Esta mudança na adaptação não inviabiliza a leitura da ambiguidade do gesto do assassinato. Mas acaba por eliminar o caráter abstrato e proposital do texto de Ott. Como em Sartre, a referência factual em Dois amores e um bicho é neutralizada para que se perceba o jogo metafórico. De outro modo, o engajamento se mostra panfletário e perde sua força literária, agarrando-se na inteligibilidade do fato histórico e caindo consequentemente no historicismo.

Theodor Adorno escreve a seguinte passagem acerca da literatura engajada:

“Uma literatura que como a engajada, mas também como os filisteus éticos a querem, existe para o homem, acaba por traí-lo, traindo a causa que o poderia auxiliar se não gesticulasse arremedos como se estivesse a ajudá-lo.” (ADORNO, 1991. p.66.)

Apesar de sabermos que o texto de Theodor Adorno seja pouco generoso com Sartre, há na passagem do filósofo alemão uma preocupação real com a literatura engajada: a de ela tornar-se uma espécie de arremedo (imitação) humanitário que perde sua função crítica e social. Quanto à obra de Sartre, que não é o objetivo central deste texto, cabe ressaltar que sua riqueza literária está nos jogos metafóricos abstratos, uma vez que eles acabam por apresentar as questões políticas de modo mais amplo e existencial e não por meio de referencias factuais. Assim também é o texto de Gustavo Ott, rico em jogos abstratos. A própria ação da peça se sustenta no jogo e não em bases psicológicas próprias aos modelos de dramas familiares.

Na peça de Ott, esta discussão ética não possui apenas esta camada. Pablo diz:

“Pablo – Matei o cachorro porque ele gostava de outros cachorros. Este é o motivo. Era meu cachorro e podia fazer com ele o que eu quisesse. Mas me deram 40 dias e uma multa de 5 mil dólares. Não pelo cachorro, porque a lei não é tão dura quando alguém mata um animal, se é propriedade, se é nosso, se não afeta a ninguém, salvo o cachorro, naturalmente. Fizeram isso baseados no boletim do Departamento de Proteção aos Animais, no qual me consideraram um homem perigoso, e pela imprensa, que rápido esqueceu da bomba na escola e se concentrou em mim. Na primeira página estava a foto do cachorro e a minha. A minha em meu pior momento, depois de 36 horas sem dormir. A dele, cachorro – não do morto – mas de um muito parecido. Era uma foto de um cachorro de salão de beleza, muito alegre, para que inspirasse ternura. E as pessoas me odiaram por isso. Me odiaram de maneira instantânea, fácil, gratuita, um ódio que estava ali esperando que algo acontecesse para ser depositado em mim.”

Nessa passagem, notamos como esse debate em torno da morte do animal se complexifica. Pablo se vê no direito de matar o bicho por ele ser sua propriedade. E, ao mesmo tempo, sua prisão é espetacularizada e termina tomando uma proporção maior do que o atentado à escola que acontecera na mesma época. Como se nota, o dramaturgo nos põe diante de trajetos éticos em torno de um mesmo acontecimento que nos faz relativizar a ação central da obra.

Yndara Barbosa. Foto: Divulgação.

Em Dois amores e um bicho não faltam trechos em que a ação principal é vista por prismas inusitados. A visão da esposa é a da mulher que foi traída e vê no assassinato do cão um gesto inconsciente do esposo contra a sua própria vida. A filha torna-se veterinária. Logo, é uma personagem que transita dentro da trama no entre-lugar do público (profissional do zoológico) e privado (filha). Recorda-se da prisão do pai com dor. Mas revolta-se contra o gesto do genitor por conta do forte dilema que se coloca diante de sua escolha profissional. Para Pablo, os dois amores são a filha e a esposa. Para Karen, são o marido e a filha. Para filha, o pai e mãe. E o bicho é o cão morto. Trata-se, portanto, de um jogo triangular que se multiplica em torno da ação.

A forte atuação de Vitor Fraga no papel de Pablo traz à tona essa encruzilhada ética na qual o personagem está aprisionado. Como ele está a todo tempo enredado em um fato público e privado, o ator opta por construir o seu personagem inconsciente da razão do próprio ato do homicídio. Seu personagem pode ter matado o cão por ele ser homossexual ou até mesmo por uma fúria descontrolada, sem qualquer motivo justificável. A performance de Vitor Fraga oferece possibilidades à imaginação do espectador por não se fechar em uma alternativa óbvia.

Ana Paula Novelino faz sua Karen com a sofreguidão necessária e o tom de revolta e desconfiança no olhar diante do gesto do marido. O domínio técnico da atriz modula o texto e propõe jogos de variação rítmicas entre o humor e o drama. Sua sensibilidade cênica salva até mesmo alguns momentos arrastados do espetáculo, causados pela atuação de Yndara Barbosa e Luiz Paulo Barreto. Ela demasiadamente infantil e letárgica no papel da filha, sem pontuar a transformação da personagem nos momentos da vida adulta, enquanto ele, apesar de maior densidade e presença cênica, mostra-se muito carregado na caracterização das personagens, comprometendo pelo peso de suas composições o ritmo da peça.

Quanto à direção e adaptação de Guilherme Delgado há uma consideração a ser feita sobre duas opções de sua criação artística. Ambas modificam radicalmente a estrutura do texto de Ott. A primeira refere-se ao espaço cênico: a frontalidade do texto do dramaturgo venezuelano é transgredida pela busca de uma espacialidade em arena. Esta escolha traz uma dificuldade ao ritmo do espetáculo, pois o texto que transita da indeterminação de tempo e espaço de uma fala épica e a personificação de personagens em diálogo se dispersa na arena. Porém, se, por um lado, o ritmo é ralentado, o espaço em arena explicita a metáfora do lugar metamórfico entre a casa e o zoológico, até mesmo pelo uso dos bichos de pelúcia enjaulados. Logo, esta é uma escolha difícil. Porém, ela propõe uma ênfase no desdobramento da questão espacial e política do zoológico na peça. A segunda opção é a de colocar um quarto ator para fazer as personagens que, no texto, são feitas pelos três atores. Essa escalação quebra a triangulação proposta por Ott e não constrói nenhuma leitura intelectiva relevante. Surge apenas como recurso facilitador de carpintaria de direção para explicar didaticamente a história, anulando o jogo épico do texto de descolamento das personagens que se metamorfoseiam em outras.

A montagem do espetáculo Dois amores e um bicho propõe, assim como o texto do dramaturgo venezuelano, um caminho para a peça engajada na contemporaneidade a partir de procedimentos inventivos e nada panfletários. Discute-se, portanto, um mundo contemporâneo cujo ajuizamento ético tornou-se paradoxal, não havendo lugar para teses que não forem radicalmente críticas e multifocais e que exponham os conflitos do mundo corajosamente.

Referências bibliográficas:

ADORNO, Theodor. Notas de Literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991.

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores