Sensações de Adélia

Crítica da peça Adélia, da Cia. de Teatro Íntimo, em cartaz no Solar de Botafogo

24 de fevereiro de 2011 Críticas
Atrizes: Bellatrix, Gabriela Haviaras e Fernanda Boechat. Foto: Carol Beiriz.

Em cartaz no Solar de Botafogo até 01 de maio, o espetáculo Adélia, da Cia. de Teatro Íntimo, leva à cena a poesia da autora mineira, que dá título à encenação, Adélia Prado. A companhia celebra cinco anos em ocupação no mesmo teatro, no qual encena ainda outros nomes da literatura (como João Cabral de Melo Neto), o que revela um dos principais temas abordados na linguagem do Teatro Íntimo, o estudo da poesia brasileira.

Ao entrar no Espaço II do Solar nos deparamos com dois ambientes: uma anti-sala de espera, em que uma exposição fotográfica sobre a trajetória da Cia. prepara o público exibindo o universo de imagens criado pelos artistas ao longo dos anos, em cada espetáculo. “Prepara”, pois, a demanda poética da Cia. está impressa nas fotografias do passado, e, tal recorrência funciona como lugar de apresentação deste recurso; é também um lugar de transição, claro, entre o mundo que ficou do lado de fora, e a próxima porta que será aberta.

A poesia (transmitida nas fotografias) já estava presente na estética visual antes mesmo de se saber sobre o que – e como – era o texto. Pode-se pensar que as escolhas verbais germinem a partir de uma vontade imagética comum àquele grupo de pessoas. A poesia que vem antes do verso. Assim, em Adélia, antes da primeira fala da peça, outra porta é aberta e o público passa entre lençóis estendidos em varais suspensos por bambus, que aos poucos deixam ver uma pequena sala/palco, com pouquíssimas cadeiras posicionadas ao fundo de uma parede. Sentamos. São minutos de silêncio e pequenas ações para que o público repare em todos os detalhes da cenografia de Melissa Paro. À frente do público, mais um varal com poucas peças de roupas, erguido por outro bambu. Rente à escura parede descascada, em frente fica um banco artesanal comprido de madeira, candelabros e velas acesas, uma enorme cruz pendurada na parede à direita da porta, uma porta no meio, duas enormes janelas à sua esquerda. Uma escada também no canto esquerdo que dá acesso à equipe técnica da salinha que parece improvisada para que a poesia da arquitetura de um solar antigo não seja perdida. Como não foi.

Ainda antes do primeiro verso é necessário dizer que para dentro da porta havia outro cômodo, onde o público pôde entrar no final, mas que era visível e determinante para o estabelecimento da atmosfera criada. Pela porta e janelas via-se uma cozinha de casa de interior. Com fogão colorido antigo e quadro velho em alto-relevo da Santa Ceia na parede. Para quem já visitou alguma pequena cidade de Minas Gerais, é fácil reconhecer ali um úmido fundo de quintal de casa do interior mineiro. Alguma indicação de peça regional? Não fossem a presença das três atrizes já em cena, poderíamos imaginar que sim. Porém, Bellatrix, Fernanda Boechat e Gabriela Haviaras com seus figurinos compostos de vestidos de tons claros, tecidos leves e sensuais, criados por Thiago Mendonça, não deixaram fixar essa ideia. Marcam nessa primeira aparição as asas de anjo usadas por Fernanda, o bolo que Bellatrix terminava de preparar e os risos das três. Em determinado momento as asas são colocadas atrás da cruz, e o bolo vai para o forno, na cozinha. A natureza bastante pensada das ações dá à palavra “atmosférico” mais sentido na intenção da direção de Renato Farias do que o que costumamos entender por regional. Tudo gira em torno da manutenção deste estado subjetivo de sensações que remetem invariavelmente à poesia de Adélia Prado.

Atrizes: Bellatrix e Fernanda Boechat. Foto: Carol Beiriz.

Sobre a autora não custa relembrar as amostras do universo de sua escrita que são mencionadas no espetáculo, seja pela própria poesia falada, seja por meio das imagens: religiosidade (catolicismo), infância, interior mineiro (Adélia Prado nasceu em Divinópolis, cidade onde reside ainda hoje), relações familiares – a peça privilegia as figuras femininas, como a avó, a mãe, a filha e a esposa –, e a descoberta do corpo e do instinto sexual na mulher. As passagens sobre sexualidade deram origem às cenas de maior impacto e distanciamento do que até então era mostrado. Quando a seleção dos poemas tende para uma aparente relação de consequência dentre os fatos contados, com uma divisão de falas/versos que forjam diálogos que nem sempre são críveis, um banho de bacia, seguido por banhos de baldes e canecos e rolamentos no chão alagado do quintal retorna ao característico jogo atmosférico de sensações. A necessidade das meninas, ou melhor, das “Adélias” de “apagar o fogo” criam um momento descontraído, que provoca risos e olhares saudosistas por parte de algumas senhoras do público. Porque sempre há ar de saudade em textos que falam de um passado bom.

A mulher que Adélia Prado desenha em seus poemas é uma mulher cotidiana. Nas fases de sua vida não existe nada fora do banal, do possível. A identificação, dessa maneira, é praticamente certa. As lembranças, ao menos uma, é comum à vida de todos. O que faz imaginar que a escolha pelo trabalho da poetiza é a escolha por memórias normais. Para falar e rememorar a vida simples. Além disso, a vida caseira muda de status quando é elogiada na poesia. E o teatro que vive refletindo sobre o caos dos novos tempos recorre a um gênero que não é o seu legítimo para descomplicar as reflexões sobre a vida. Valorizar a simplicidade, hoje, não é uma escolha descartável.

De todas as aparições sutis de pequenas lembranças nasce uma esfera de intimidade que durante aproximadamente os cinquenta minutos do espetáculo todos compartilham. Como vizinhos íntimos, algumas pessoas dividiram com as atrizes doses da típica cachaça mineira oferecida. A fluidez ao final da peça contrasta com as marcações precisas do início, tornando tudo um pouco mais solto, mais “em casa”. Assim as cenas acabam sem que se dê muita conta. O bolo que Bellatrix havia colocado no forno, e que sentimos o cheiro dele assando ao longo dos poemas, ficou pronto. Ele é dividido com o público e conversamos um pouco antes de irmos embora.

A sensação que fica, dentre todas as provocadas, é de que a poesia de Adélia Prado foi apresentada de uma maneira que não permitiu sobressair do resultado alguma pretensão técnica, apesar do evidente processo de estudo. Tanto o público que desconhecia o trabalho da autora, quanto o que estava ali por gostar da sua obra, tornou-se mais próximo de uma linguagem que valoriza e simplifica o íntimo. O encontro da Cia. do Teatro Íntimo e Adélia Prado era só uma questão de tempo.

A propósito, o bolo estava ótimo.

Informações sobre temporadas no site da Cia. Teatro Íntimo: http://companhiadeteatrointimo.vilabol.uol.com.br/index.html

Mariana Barcelos é atriz, estudante de Artes Cênicas, bacharelado com habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO, e também é aluna de licenciatura em Ciências Sociais pela UFRJ.

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