Lugar de passagem

Crítica da peça Estação Terminal

10 de agosto de 2008 Críticas

Velatura, instalação penetrável de Suzana Queiroga. Foto: divulgação.

Estação terminal

, trabalho da atriz Tuca Moraes, da Cia Ensaio Aberto, traz textos autobiográficos de Lima Barreto, com dramaturgia de João Batista. Depois de ter sido apresentado em festivais dentro e fora do Brasil, o espetáculo está no Palácio Universitário da Praia Vermelha, na UFRJ, antigo Hospital dos Alienados, onde Lima Barreto ficou internado. Para narrar experiências de loucura e confinamento do autor, Tuca Moraes faz um percurso por três espaços diferentes, acompanhada pelo público.

A platéia entra na primeira sala, depois de passar por um corredor um pouco escuro, e encontra, cada um no seu tempo, a atriz sentada num banquinho, segurando uma vela. Depois de algumas palavras, ela se levanta e anda pelo espaço, às vezes desaparecendo do campo de visão de um ou de outro espectador, mas mantendo sua voz audível. Logo no início percebe-se uma certa crueza na iluminação. Para ver a atriz, é preciso deslocar-se um pouco pelo espaço. Esse deslocamento provoca diferentes percepções da iluminação. Num primeiro momento, ficamos de lado ou de costas para os refletores, posicionados em torno da atriz, que fica na nossa sombra. Quando ela se desloca e o nosso olhar se movimenta com ela, a iluminação incide diretamente sobre os olhos. No segundo e terceiro ambientes, a luz envolve todo o espaço, sem colocar nada em foco, sem estabelecer nenhuma hierarquia. Não há mais a sensação inicial de desconforto, embora seja um pouco desconcertante a impressão de que tudo está iluminado demais. Penso que esta opção é um dado de sobriedade da encenação, ou melhor, de lucidez – já que o assunto é a insanidade.

Assim, a iluminação nos insere no discurso da peça. Nossa condição de espectadores fica mais evidente, pois na medida em que nos sentimos expostos, nos vemos como cúmplices nos procedimentos adotados pela sociedade descritos pelo texto. Por medo, por omissão, por impotência, não assumimos a responsabilidade sobre aqueles que consideramos diferentes de nós. Uma frase do próprio Lima Barreto – “Não somos povo, somos público.” – nos coloca, como a peça, nesse lugar. Constituímos a sociedade na qual estamos contidos: não estamos observando o mundo, protegidos, separados, como numa platéia convencional. Fazemos parte dele. Do universo tratado pela narrativa de Lima Barreto também fazemos parte, mesmo que à distância.

Na noite em que assisti Estação terminal, havia entre o público um grupo de pacientes da Colônia Juliano Moreira. Inicialmente disperso, o grupo foi se envolvendo aos poucos. De algum modo, a platéia me parece ter se envolvido mais na medida do envolvimento particular de cada um deles, que acontecia gradualmente e evidenciava o poder de comunicabilidade do texto e do trabalho de Tuca Moraes. As diferenças entre o público espontâneo da peça e aqueles que ali estavam como parte de um grupo separado foi se dissolvendo na mesma medida em que o texto embaçava a fronteira entre lucidez e loucura.

Penso que esse trabalho pode mexer com nossas noções de pertencimento. Existe um dentro e um fora da sociedade; um dentro e um fora do conceito de lucidez. A voz do texto vem de fora, é a voz de um outro, colocado à margem do espaço que habitamos. Mas, ao mesmo tempo, ela vem de dentro de um manicômio, de um espaço de confinamento: um dentro opressivo, delimitado por sua condição de marginal. As palavras desse homem dado como louco têm na lucidez um grande trunfo: o que nos torna semelhantes, nós e ele, o que nos identifica, é exatamente o ponto que o exclui – a sua lucidez particular, considerada loucura. Nos consideramos lúcidos porque temos a loucura como parâmetro. Estação terminal propõe esse trânsito para a subjetividade do espectador, expondo o quanto é frágil a linha divisória entre esses dois mundos que se contêm mutuamente.

O lugar em que a peça é encenada é uma opção significativa. O mesmo Palácio Universitário foi, no início do século XX, o Hospital dos Alienados, onde Lima Barreto ficou internado. Não há nada na encenação de Luiz Fernando Lobo que reforce esse dado ou que use esse fato para incitar a emocionalidade do espectador. O tratamento da direção é o de uma simples sobreposição de espaços: o espaço da história, da memória, e o da ficção, da imaginação.

Na terceira sala, encontramos Velatura, instalação penetrável de Suzana Queiroga. Numa escala compatível com a do corpo humano, o inflável dá a ver a possibilidade da clausura e, talvez, da clausura dentro de si mesmo. Trata-se de um espaço dentro de outro espaço. O que faz a divisão entre o interior da sala e o interior do penetrável é uma fina camada de PVC vermelho, a pele de Velatura, mas também a nossa concepção de espaço, que estabelece dentros e foras para todas as coisas.  É como se dentro daquele lugar que é a sala pudesse se estabelecer um outro lugar, a instalação de Suzana Queiroga. Da mesma forma, dentro do sanatório, há também o mundo isolado de Lima Barreto. Este, como Velatura, é de algum modo penetrável.

Estação terminal me parecer ser uma tentativa de entrar nesse mundo. Talvez seja possível dizer que nos três espaços ocupados pela performance de Tuca Moraes há três apontamentos diferentes, três possíveis abordagens ou caminhos para lidar com a loucura ou pensar sobre ela. Os três ambientes em que o espetáculo se dá apresentam elementos visuais específicos.

No primeiro, ex-votos, formas geométricas no chão da sala, valorizadas pela movimentação da atriz e pela disposição dos objetos, elementos ritualísticos, zonas de sombra formadas pelo posicionamento do público, são formas que dão a esse ambiente uma atmosfera misteriosa, quase mística, como se apresentasse a loucura como algo hermético. A cena começa perto do chão, nosso olhar se dirige para baixo quando olhamos para a atriz ou quando precisamos proteger nossos olhos da luz. A platéia está espalhada pelo espaço e ainda um pouco dispersa.

Em seguida, subimos alguns degraus para entrarmos numa capela. A perspectiva é outra: vemos aquela personagem narrar sua história a partir de um lugar claro, amplo, literal e simbolicamente em um plano mais elevado: o pé direito da sala é mais alto e as referências visuais de elementos religiosos trazem uma atmosfera de elevação. A platéia está sentada em fileiras de bancos simetricamente arrumados. Enquanto a atriz se movimenta entre nós, olhamos para cima, não apenas para ela, mas para a sala decorada até o teto. Alguns, condicionados a olhar apenas em uma direção quando vão ao teatro (ou à Igreja) não chegam a movimentar a cabeça quando a atriz está atrás de nós. Há uma certa austeridade nesse ambiente, onde a loucura se associa à dor, à repressão e a alguma dimensão de sacralidade.

Com a orientação da atriz assistente, o público se dirige para a terceira sala, onde, depois de mais alguns degraus, encontramos Velatura, um elemento díspar e, ao mesmo tempo, coerente com as idéias que estão em jogo na peça. Depois da capela, onde tudo parece asséptico e intocável, o que vemos aqui é uma grande massa vermelha, que Tuca Moraes movimenta para cima e para baixo, o que confere um caráter lúdico à instalação. É impactante a grande quantidade de vermelho no nosso campo visual e é praticamente impossível ficar indiferente a esse elemento do espetáculo. As questões poderiam se multiplicar aqui, mas vou colocar apenas uma das diversas perguntas possíveis: o que podemos pensar sobre a presença de um objeto de arte nessa seqüência de espaços? Se na primeira sala temos elementos ritualísticos e, na segunda, elementos religiosos, o que se pode pensar do elemento artístico nesse contexto? Ele pode ser um olhar, um ponto de vista, um meio pelo qual podemos abordar a loucura? Será que, pela arte, a loucura é penetrável? Podemos considerar Velatura não apenas um objeto de arte, mas um lugar de arte, um recorte no espaço que convida a alguma fruição estética, que nos provoca a ver o que está à nossa volta de outra maneira. O plástico de PVC, material que constitui Velatura, é uma espécie de filtro para o olhar.

A presença desse espaço diferenciado e a consciência de estar no local em que Lima Barreto viveu esses momentos da sua vida me fizeram pensar na questão do lugar da loucura, ou da loucura como um lugar. O próprio nome dado ao trabalho sugere uma tensão de espaço: “estação” é um lugar de passagem, provisório, “terminal” é uma condição sem transição. O título da peça espelha a contradição do título de Cemitério dos vivos: uma espécie de fim em movimento. Talvez esta seja uma característica da loucura: ser um lugar dentro do homem, que fecha algumas portas atrás de si e abre outras, que não se sabe onde vão dar.

Vol. I, nº 6, agosto de 2008

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