À procura de interlocução

Crítica da peça O assalto

10 de fevereiro de 2009 Críticas

A peça O Assalto, escrita por Zé Vicente no ano de 1969, traz de volta aos nossos palcos, na encenação de Marcelo Drumond,com Fransérgio Araújo e Haroldo Costa Ferrari no Espaço SESC, uma dramaturgia muito emblemática de uma época de grande efervescência artística e ao mesmo tempo uma dramaturgia que me parece pouco conhecida dos palcos cariocas. Falo dos jovens escritores que despontaram na cena teatral carioca e paulista nos anos 60 e 70, no auge da ditadura militar, e que trouxeram em seus textos um registro social e existencial que os caracteriza e os une dentro de um estilo de escrita dramatúrgica. Entre os dramaturgos dessa safra, posso citar: Leilah Assumpção com Fala Baixo senão eu grito, Antonio Bivar e sua Cordélia Brasil( texto que repercutiu enorme sucesso entre critica e público na época de sua estréia), Isabel Câmara com As Moças e enfim, Zé Vicente com O Assalto, Santidade e Hoje é dia de Rock entre outros.

O que esses jovens dramaturgos traziam de novo aos palcos, sendo Zé Vicente um dos representantes mais contundentes, era uma forte carga de subjetividade dos personagens.  Essa carga reverberava nas questões sociais e políticas caras ao período, mas apareciam em uma escrita que buscava um embate psicológico denso entre os personagens mergulhados em suas existências e angústias à procura de sentido para suas vidas. É o que destacam Magaldi e Vargas:

“Continuando a linha de Plínio Marcos, os novos dramaturgos injetaram subjetividade no relacionamento humano, e ao mesmo tempo o vincaram de um forte cunho social. Esqueceram-se as abstrações, em proveito de um homem eminentemente concreto.” (MAGALDI. VARGAS, 2000:391)

Há um lirismo e uma subjetivação mais concentrados no homem abordado por essa geração de autores nacionais que não deixam escapar sua crítica em relação ao sistema político e social vigente no Brasil dos anos de violenta ditadura. Personagens como Vítor e Hugo de O Assalto, são figuras concretas dentro de uma escrita que dialoga com as questões de seu tempo, tencionando a relação existencial, social e política tanto em seu microcosmo – o local de trabalho de ambos – como no macrocosmo em que se insere o homem como parte de uma grande engrenagem. Personas no limite da razão e da loucura, da vida e da morte, do ser ou não ser naquele estado quase vegetativo e sem perspectivas em que se encontram.

O Assalto, peça dividida em dois atos, narra a história de Vítor, um bancário frustrado, e Hugo o faxineiro do banco. Após o expediente, no escritório de Vítor, Hugo se encontra para fazer a última faxina e então o bancário decide fazer dele seu interlocutor. Nesse contato, Vítor parte para a provocação, o suborno, a humilhação, chegando a uma explosão mística, proposta pelo autor, em que o faxineiro converte-se numa espécie de “Messias imaginário” para Vítor. A subjetividade e sexualidade são levadas ao extremo na cena, culminando num abismo de loucura em que se encontram ambos. Depois de estarem horas dentro daquele ambiente claustrofóbico, Vítor revela a Hugo o desvio que fizera do caixa do banco. Ele também confidencia que este é o seu último dia naquele emprego e, com estas revelações, torna Hugo seu cúmplice. A partir desse momento, a cena ganha maior intensidade culminando no gesto transgressor do faxineiro.  

A encenação em questão é bastante fiel ao texto e me parece que esta é uma proposta clara. A linguagem de Zé Vicente, com gírias e termos que alguns podem dizer que são “datados”, não foi substituída, o que se configura, penso, como um aspecto positivo da montagem, visto ser um desafio maior aos atores e ao espectador. Também a cenografia de Marcelo Comparini é precisa, com uma mesa de escritório e muitos papéis amassados pelo chão denotando um espaço bastante recluso, velho e claustrofóbico, embora os atores ocupem bem todas as possibilidades espaciais do teatro entre platéia, escada, corrimão e etc., amplificando a relação entre cena e espectador.  

Quando entrei no teatro imaginava ver uma cena recheada de intenções contidas, de atuações minimalistas. A leitura que fiz do texto abriu-me para essa percepção. Uma percepção que mais sugere do que mostra, que esconde o que está mais visível nas entrelinhas, trazendo significações várias. Sempre me pareceu uma “incógnita clara” a questão da homossexualidade de Vítor assim como a sujeição de Hugo a ela ser um ato legítimo e urgente. O direcionamento tomado por Drumond e os atores evidencia a homossexualidade de um e a sujeição de outro. Haroldo Costa em vários momentos acentua a sexualidade num movimento que pode parecer caricato. E quando ele não busca mostrar ao público quem é seu Vítor, a peça toma uma dimensão maior e mais intensa, se abre para diversas visões que a cena pode proporcionar. O mesmo ocorre com o outro ator. Quando Fransérgio Araújo não tenta caracterizar um possível faxineiro (falando errado, com sotaque meio mineiro meio paulista) e simplesmente joga sua angústia e revolta sobre o outro, é que vemos uma brecha do que pode ser aquela pessoa humilde, aquele trabalhador que está no limite e precisa entoar seu discurso de dor e solidão também.

Por isso, é num movimento de contenção que a encenação ganha força e toda poesia destilada pelo autor vem à tona. Em alguns momentos em doses menores e em outros em doses maiores, certamente. Fransérgio e Haroldo são ótimos atores, sem dúvida. Têm domínio da cena, assumem o discurso que fazem, amam aqueles personagens. Assim como a direção de Marcelo é bastante sensível na relação com o texto e da atuação sobre ele. Mas quando não exageram na caracterização e simplesmente deixam as palavras fluírem de suas bocas (os atores), retirando um do outro as intenções, é que temos uma cena carregada do lirismo e subjetivação como destaquei acima. Um lirismo que se configura num discurso em primeira pessoa à procura de interlocutores: os personagens entre eles mesmos, os personagens entre o público e seu tempo, e o próprio autor entre esses personagens.

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