Na trilha de um mito

O processo criativo de Kassandra, de La vaca Cia. de Artes Cênicas

27 de maio de 2015 Processos
Kassandra. Foto: Cristiano Prim.
Kassandra. Foto: Cristiano Prim.

Vol. VIII nº64, maio de 2015.

Resumo: É sabido o quanto se debatem, hoje, os estudos teatrais com as possibilidades de pensar não mais apenas o resultado espetacular, mas também os processos que originam o espetáculo, e é aqui onde justamente a crítica genética tem muito a contribuir. A peça Kassandra (2012), do dramaturgo franco-uruguaio Sergio Blanco, e interpretada pela atriz Milena Moraes, é o texto escolhido para se analisar as relações criativas entre o processo e a montagem.

Palavras-chave: crítica genética, Kassandra, Sergio Blanco, Milena Moraes

Resumen: Es sabido que actualmente, cuando se debate sobre los estudios teatrales, ya no solo se piensa en la posibilidad de estudiar apenas el resultado espectacular, sino también los procesos que originan el espectáculo, y es justamente ahí donde la crítica genética tiene mucho para contribuir. La obra Kassandra (2012), del dramaturgo franco-uruguayo Sergio Blanco, interpretada por la actriz Milena Moraes, es el texto escogido para analizar las relaciones creativas entre el proceso y la puesta en escena.

Palabras-clave: crítica genética, Kassandra, Sergio Blanco, Milena Moraes

O PROJETO

Desenhos animados no Bokarra Club? De uma tela localizada em uma das paredes do local, Pernalonga recebe o público. As pessoas percebem a contradição no momento em que adentram a casa. Um desenho animado é a última coisa que você espera encontrar na tela de um estabelecimento de diversão adulta ligado ao sexo. Em um determinado momento o desenho para de rodar, as luzes se entrecruzam com a fumaça, o volume do som aumenta, e se escutam os passos do mito que começa a subir ao placo, de coroa dourada e vestida com um casaco de pele.

Desta forma começa o espetáculo Kassandra, de La Vaca Cia. de Artes Cênicas, que hipnotizará por uma hora e dez minutos a toda a plateia. Mas este espetáculo, que movimentou e chacoalhou a cidade por vários motivos, começou há meses atrás e seu processo foi intenso e muito rico.

Fui convidado a fazer parte do projeto Kassandra como pesquisador de processos criativos, com a função de acompanhar a gênese da montagem brasileira da obra teatral, do franco-uruguaio Sergio Blanco. A pesquisa, que será meu trabalho de doutorado, traz a perspectiva de crítica de processo proposta por Cecília Almeida Salles que compreende o acompanhamento de projetos artísticos promovendo uma pesquisa em status nascendi, isto é, em processo. Desta forma o pesquisador, que passa a fazer parte do processo, vai desvencilhando o movimento criador em um sentido bastante amplo.

Como pesquisador, pude acompanhar todo o processo desde o momento em que me deparei com a matéria jornalística que dispararia o interesse dos idealizadores pelo projeto até hoje. No decorrer dos ensaios, elaborei um “Diário de Bordo” com minhas anotações, as indicações do diretor e do assistente, e dos outros profissionais envolvidos. Também gravei ensaios e participei de discussões da equipe. Tirei fotos nos ensaios e durante todo o processo. Acompanhei o elenco a São Paulo, onde foi escolhido o figurino de Kassandra e estive presente na sessão de fotos para o material gráfico. Também participei da primeira sessão de maquiagem, registrando tudo em material fotográfico e audiovisual. Também fazem parte do meu dossiê todos os e-mails trocados pela equipe, os três roteiros da atriz Milena Moraes (com todos os seus vestígios, marcas e anotações que denunciam o funcionamento do pensamento criativo), além do acesso ao perfil da peça no Facebook e ao blog da obra. Também acompanhei a produção em diversas reuniões, como, por exemplo, as que tinham a ver com a procura da casa onde se realizariam as apresentações da peça.

A riqueza semiótica do manuscrito, sobretudo de textos teatrais, fez com que a crítica genética se estendesse a outras artes, tendo como precursora a pesquisadora Cecília Almeida Salles. Segundo Salles (2006) a semiótica, ou seja, os modelos de comunicação humana regidos por signos podem ser mais bem compreendidos e estudados se os consideramos como uma rede de relações.

O texto teatral e sua transposição para a cena nos brindam com múltiplas redes de relações, já que são muitos os fatores que atuam nesta área. Ele reúne constituintes textuais e dramatúrgicos, didascálias, além de música, planos de luz, figurino, coreografias, anotações, a interferência dos atores e o próprio espaço. Nesse caso, a apropriação do espaço é um elemento que se deve considerar como um dos mais relevantes da montagem já que foi montado em um espaço não convencional.

Reconstruir o processo criativo de uma peça teatral tem um alto grau de complexidade, já que é um processo coletivo. Isso significa que esse processo colaborativo pode incluir autor, diretor, atores, cenógrafo, iluminador, músicos, artistas plásticos, todos participando do fazer da obra. Essa multiplicidade de vozes atuantes na criação teatral pede que se pense na gênese como um elemento também múltiplo.

Milena Moraes, atriz que dá vida a Kassandra, mantém comunicação constante com a nova geração de dramaturgos e artistas de teatro do Uruguai desde 2008, quando da estreia da montagem teatral de Mi Muñequita, de Gabriel Calderón. Este espetáculo de sucesso — conta com duas circulações estaduais e uma turnê nacional no currículo, além de ter sido recentemente apresentado em Montevidéu — abriu um novo universo de investigação e produção, resultado do diálogo criativo entre os artistas catarinenses e o que o Uruguai produz de mais novo e interessante em teatro.

Tradutor, pesquisador e parceiro de La Vaca há alguns anos, já havia indicado Mi Muñequita para a atriz e produtora. Em 2011, li em um jornal uruguaio a notícia da montagem de Kassandra em Montevidéu, com texto de Sergio Blanco, atuação da atriz Roxana Blanco e direção de Calderón. Imediatamente falei do projeto para Milena; esta, por sua vez, mostrou a notícia para o ator e diretor Renato Turnes. E no mesmo dia, por intermédio de Calderón, estabeleceu-se o contato com Sergio Blanco, autor de Kassandra. Surgia ali a premonição de um projeto interessante: um formato diferente, uma temática instigante, uma linguagem de apelo internacional e uma experiência teatral nunca vista antes em Florianópolis, que buscava, através da releitura do mito grego, a apropriação de um espaço não convencional, sensual e inusitado: uma casa de diversão adulta. Nascia assim a versão brasileira de Kassandra.

O interesse em pesquisar textos teatrais surgiu no momento em que entrei em contato com um texto em particular: Mi Muñequita. O dito texto chegou às minhas mãos quase que por acaso e disparou meu interesse não apenas pela tradução de textos dramáticos, mas também pelos processos criativos.

Foi o contato com a crítica genética, o que me incitou a curiosidade pelos processos criativos e pelo que seria meu objeto de pesquisa: os processos criativos dentro da área teatral.

Após minha primeira experiência na pesquisa com Mi Muñequita, Kassandra foi um trabalho que chegou de forma natural e fez com que entrasse desde o começo no projeto como pesquisador de processos criativos.

O processo de criação de uma montagem teatral conta com referências imagéticas, textuais, musicais, etc. Referências que permeiam a criação de personagem (trabalho de ator), cenários, figurinos, escolha de objetos de cena, de trilha sonora, etc. Nas artes cênicas são muitos os elementos que devem ser levados em conta, são vários processos criativos em prol da montagem teatral: do dramaturgo, do diretor, dos atores, do cenógrafo, do figurinista, etc. Esta observação encontra eco no que diz Pierre-Marc de Biasi (2002, p. 219) acerca do cinema como objeto transdisciplinar e de múltiplas possibilidades.

Tanto no texto teatral como em outras modalidades espetaculares, o campo genético é um campo transdisciplinar de grande amplitude e esse é mais um motivo para buscar identificar todas as ferramentas que podem intervir no processo criativo. Visto que é escassa a pesquisa de processos criativos teatrais na área de Crítica Genética, penso que é de suma importância a investigação sobre o tema.

O mito

Segundo a mitologia grega, Kassandra é uma das princesas de Troia — filha de Príamo e Hécuba — e um dos personagens citados nos escritos que relatam o sangrento episódio da célebre Guerra de Troia. A dita guerra foi causada pelo rapto da bela Helena — esposa de Menelau, Rei de Esparta — pelo príncipe troiano Páris. A guerra durou dez anos, envolveu os grandes guerreiros de ambos os lados e terminou com o episódio do cavalo de Troia, quando os gregos usaram uma estratégia ousada e mentirosa para invadir os muros da cidade e dizimá-la.

Segundo o mito, Kassandra era uma jovem tão bela que por ela o deus Apolo se apaixonou. Num arroubo, o deus lhe ofereceu o dom de prever o futuro e em troca, a princesa lhe daria um filho. Vaidosa e ingênua, Kassandra aceitou o presente, porém logo se recusou a cumprir a promessa. Inconformado, o deus do oráculo lançou sobre a jovem uma maldição: ninguém jamais acreditaria em suas predições. A partir de então, a jovem seria atormentada por visões da futura queda de sua cidade, sem que nenhum dos troianos lhe desse ouvidos. Tida por louca, foi encerrada em uma torre. De lá somente sairia com Troia consumida pelas chamas, destruída pelos soldados gregos.

O mito inspirou a psicologia a nomear a Síndrome de Cassandra. Diz que alguém é acometido pela síndrome quando a pessoa afirma constantemente conhecer de antemão o que virá a acontecer, normalmente acontecimentos negativos, mas ninguém a leva a sério.

A Kassandra de Sergio Blanco

O dramaturgo franco-uruguaio Sergio Blanco escreveu Kassandra como um monólogo que parte do personagem mítico, mas apresenta ao público de hoje uma versão atualizada, tragicômica, recheada de referências que vão desde os clássicos gregos até elementos do imaginário da cultura pop. O texto foi escrito propositadamente em um inglês precário para ser encenado exclusivamente dessa maneira, no que seria a representação de um idioma de sobrevivência, que permite que Kassandra seja entendida em qualquer lugar do mundo. Na visão transgressora de Blanco,a personagem é uma travesti, criada para ser interpretada por uma mulher ou um transgênero, que conta sua história em uma língua que não é a sua. Kassandra é um ser estranho em uma cultura que não lhe pertence. Outra exigência do autor para a montagem do texto é que ele seja representado em espaços não convencionais, mais precisamente estabelecimentos de diversão adulta ligados ao sexo, no qual a heroína troiana ressurge nos dias de hoje, em seu inglês tosco de imigrante, para recontar a sua história e desmitificar seu próprio mito.

A montagem brasileira é parte de uma movimentação internacional espontânea que envolve encenações do texto em vários países, dentre eles: Argentina, Brasil, Cuba, Espanha, Grécia e Uruguai. Ainda devem entrar no circuito montagens na França e na Itália, sempre produzidas por uma equipe diferente de artistas, mantendo como ponto de contato apenas a ideia do texto de Sergio Blanco.

A montagem uruguaia, do diretor Gabriel Calderón com a atriz Roxana Blanco, estreou em novembro de 2010 na cidade de Montevidéu. Em abril de 2011, a Kassandra grega, da atriz Despina Sarafidou, estreou em Atenas. Meses depois estreou a montagem argentina em Córdoba com atuação de Martín Suarez e direção de Cipriano Argüello Pitt. Em setembro de 2012 foi temporada de estreia da Kassandra brasileira, com a atriz Milena Moraes e direção de Renato Turnes. Em 2014 a montagem realiza uma turnê pelo estado de Santa Catarina, se apresentando nas cidades de Blumenau, Rio do Sul, Balneário Camboriú, Joinville e Florianópolis. O espetáculo Kassandra conta até março de 2015 com seis montagens estreadas em diferentes cidades do mundo e mais duas a serem estreadas ainda este ano.

O desafio da atriz

Uma atriz que interpreta uma heroína aprisionada em um corpo masculino. Um indivíduo nascido homem e que se transforma em mulher em um ambiente masculino e bélico. Uma feminilidade em princípio artificial e ao final superlativa. A força e a fragilidade de uma personagem conhecedora do destino, mas impotente com relação ao seu desfecho. Como seria isso?

A ideia da Kassandra de Blanco me interessou antes mesmo da leitura do texto. Pessoalmente, sempre tive fascinação pelas histórias de pessoas que se sentem aprisionadas em outro corpo, que experimentam a sensação do não pertencimento. Kassandra não pertence ao corpo para o qual foi concebida, não pertence ao lugar onde vive, sequer pode usar o idioma que lhe pertence, é obrigada a se comunicar em uma língua que não é a sua. Como se não bastasse o esforço diário de convencer as pessoas de que sua identidade de gênero não está de acordo com seu corpo, a personagem deve convencer as pessoas da iminência da tragédia, da iminência da morte. Kassandra sente a dor da tragédia pré-dita na própria pele, impotente. Todo ator experimenta a sensação de não-pertencimento — em um grau muito menos elevado que um transgênero, obviamente — ao se deparar com uma nova personagem. E tem a obrigação contínua do convencer. A minha ideia principal é transmitir essa sensação ao público, além de instigar diferentes respostas para a cotidiana pergunta: — De onde você é?” (Depoimento de Milena Moraes, atriz).

A visão da direção

Na visão de Renato Turnes, Kassandra se apresenta como uma artista da boate e recebe seus clientes para contar sua história. Além de garota de programa, ela é uma transexual-artista, que apresenta seus números como uma espécie de guerreira fetichista e sensual. Os aspectos trágicos, eróticos e cômicos do texto são reforçados usando elementos cenográficos presentes na própria casa noturna, explorando o espaço não convencional e a relação próxima com o público. A direção procurou enfatizar certa dramaticidade da iluminação com poucas intervenções de uma luz mais teatral sobre a luz de boate pré-existente.

As referências ao universo do bondage e do fetichismo estão inseridas em diversos aspectos da montagem, da arte gráfica aos elementos cenográficos e figurinos. Os figurinos foram pesquisados e adquiridos em lojas específicas da Rua Augusta, em São Paulo, compondo um visual poderoso e sexy, ao estilo das travestis performers reais.

A maquiagem e os cabelos desenvolvidos por Robson Vieira procuram realçar a androginia presente na construção da personagem, estabelecendo ainda mais beleza e força aos traços de Milena.

A trilha sonora desenvolvida com exclusividade por Ledgroove remete a sonoridades gregas antigas envoltas pela modernidade do estilo do DJ, compondo uma atmosfera sonora de forte impacto, ao misturar ancestralidade e contemporaneidade, enquanto dialoga de forma coerente com o espaço da noite na boate, o reino da música eletrônica.

Quando soube da temática envolvida, e suas referências a uma Grécia Antiga, de cara passei a pesquisar os instrumentos, as temáticas e as estruturas que datavam das primeiras experiências musicais registradas na região. Em seguida, depois da leitura do texto, e do entendimento da cara que o Renato daria, mergulhei nos sintetizadores modelados nos anos 80, misturados com os digitais mais atuais, para situar a peça. Resolvi brincar com referências de época pouco ou nada simétricas como o synth pop e o clássico eletrônico erudito, somadas a linhas de baixo londrinas que são sórdidas, ácidas, étnicas mas sempre modernas, e achei que teria tudo a ver com a Kassandra. E assim é a trilha de Kassandra, uma confusa porém verdadeira construção de tempos distintos em texturas assimétricas, randômicas, ora mais nervosa, ora despencando de um penhasco, oscilante, moderna e multirracial. Uma tentativa de tradução sonora do mito.” (Depoimento de Ledgroove, criador da trilha sonora original).

O público poderá beber e circular pela casa, representando ele próprio o papel de um cliente. A ideia é que o público seja tomado pela experiência de visitar a tradicional casa noturna, explorando a curiosidade que a própria casa provoca, e que viva uma experiência teatral única, sensual, perigosa e divertida.

“Tudo em Kassandra é loucura trágica e sensual. É a memória de uma mitologia antiga, de heróis, deuses e massacres. E uma aventura noturna pelo inferninho perverso da cultura pop. É uma investigação sobre corpos transformados e sexualidades marginais, um cuidadoso e desafiante trabalho de direção de atriz. Encontrar o tom híbrido do estado performático, além de uma voz e um corpo artificiais: uma presença trans. É também uma incursão estética por lugares proibidos, guiados por fetichismo, música eletrônica, Pernalonga, sexo e poder.” (Depoimento de Renato Turnes, diretor).

A assistência

“Investigar Kassandra é aceitar que ainda devemos muito aos gregos. Retornar a eles e sua mitologia insana, às fronteiras demolidas pela potência de suas fábulas, é uma estratégia consciente de iluminar as zonas sombrias de nosso tempo. Muitas vezes pra provocar algo diferente da caretice com que estamos nos acomodando.Marginais como Kassandra, resta a nós, artistas da cena, uma investigação dos sentidos que esse oráculo pode desvelar na segunda década desse novo século. Aqui, minha função é assistir, em sua dupla conotação: observar e colaborar. A elas somo outra: atrapalhar. Uma terceira voz na parceria já consolidada entre Turnes e Milena. Atrapalhar pra construir. Para que a parceria resulte tão provocadora quanto o texto que origina este processo.” (Depoimento de Vicente Concílio, assistente de direção).

Bokarra Club, o espaço

Em uma parceria inédita em Florianópolis, a casa abre suas portas para receber um público interessado em teatro. A tradicional casa de shows voltados para a diversão adulta foi inaugurada em 17 de novembro de 1994 em Florianópolis, e desde então vem mantendo uma clientela exigente e de alto nível. Hoje, o Bokarra Club é a mais tradicional casa da cidade dentre as congêneres, mas sem medo de inovações.

Uma das estratégias da produção é utilizar a mítica ao redor do espaço erótico em favor da divulgação do espetáculo. O bar da casa funcionará antes e no decorrer das funções, favorecendo a criação de um ambiente que reforçará a erotização da cena.

A ideia é utilizar o espaço da boate ressignificado a partir do evento teatral, despertando a curiosidade em um público que normalmente não frequentaria esse ambiente e que, a partir do pretexto da representação teatral, sente-se à vontade para conhecer um novo espaço social.

Referencial metodológico

Além da base teórica, será possível contar com um rico dossiê que começou a ser confeccionado ainda na fase de pré-produção da montagem brasileira de Kassandra. Fazem parte desse dossiê: os três roteiros da atriz com seus rascunhos, um diário de bordo que começou a ser elaborado no mesmo momento em que começou o projeto e as entrevistas com atriz, dramaturgo, diretor, assistente de direção, sonoplasta e maquiador. Também em vários momentos da montagem foram registrados material fotográfico, material audiovisual e entrevistas com a equipe. A gravação da palestra do dramaturgo Sergio Blanco, quando visitou a UFSC em Florianópolis, também fez parte dos meus documentos de processo. Nesta palestra, o autor conta como foi seu próprio processo de escrita do texto. Incluí também críticas do espetáculo, além de material impresso e audiovisual que foi veiculado durante a divulgação de estreia do espetáculo. Também fazem parte do dossiê as repercussões e os comentários que a peça teve nas redes sociais previamente à estreia e no momento da estreia, não só na capital como também nas cidades por onde circulou. Sem contar a minha vivência durante todo o processo, já que, além de pesquisador, atuei como consultor do idioma espanhol no espetáculo. Isso porque o texto, escrito em inglês, fora traduzido a partir do espanhol, o que fez com que algumas falas ficassem confusas para o elenco.

Durante o processo tive a oportunidade de acompanhar praticamente todas as pesquisas da atriz em relação a leituras, filmes, vídeos e artigos, muitos dos quais abordavam a questão de gênero. No decorrer do processo pude ver o trabalho corporal e de pesquisa da atuação, que tinha à sua frente um desafio enorme: representar um homem que vira mulher, ou seja, tendo que afeminar um corpo de homem, sendo mulher. Vimos seu processo de mudança na voz e na linguagem, já que, além de ter que conseguir um timbre de voz mais grave, tinha que deformar uma língua que não era a sua, reestruturando-a.

Propostas que foram surgindo e que não estão no texto apareciam a cada ensaio. A cena do bondage foi uma proposta da atriz, que pensava em ações fortes que enriquecessem a cena. O contínuo movimento criador do diretor e do assistente enriquecia cada ensaio; no entanto, cada detalhe, cada movimento que traziam, eram experimentações às quais não se apegavam. Arriscavam com engenho e com talento no texto e na cena, sem deixar de criar.

Vi como o aporte da música trouxe novos movimentos para a cena e notamos como algumas músicas foram mudando no decorrer dos ensaios, ora cantadas, ora recitadas.

A chegada da máscara também foi um momento importante, os ensaios tomavam outra forma, os gestos apareciam.

Começar a ensaiar no Bokarra também teve um grande efeito na criação. As sugestões da direção para brincar com a própria infraestrutura do lugar deram um novo rumo à personagem, que flertava com os espelhos, aproveitando-se das luzes do lugar.

Em definitivo, nos processos de criação na área teatral que venho acompanhando, tenho notado que o percurso é intersemiótico, sempre existem vínculos dessa natureza. Isso significa que entre os documentos de processo se encontram rastros de diversas linguagens que dialogam entre sim. Assim vemos como podemos tecer redes com outras linguagens como o cinema, a literatura, vídeos postados na internet, música, desenhos animados.

As rasuras ou alterações no texto são resultado das reflexões durante e pós-ensaios. Trechos que não convencem os artistas, critérios e justificativas que chegam ao próximo ensaio como reflexões do anterior. Por isso tudo, perguntamo-nos se não é nos ensaios em que existe o movimento criador em sua máxima expressão, o teatro em seu momento mágico.

 

Kassandra. Fotos de Cristiano Prim.
Kassandra. Foto: Cristiano Prim.

Documentos de processo

Procurando Kassandra

Em uma primeira tentativa de achar o espírito de Kassandra, em uma noite de setembro de 2011, dois meses antes de ter a certeza de que a peça seria montada, fomos junto com Turnes e Moraes para uma rua no centro da cidade. Moraes montada como a personagem, procurou na rua, movimentos, caras e gestos da Kassandra. Foi a primeira aproximação do personagem. Nessa primeira ação, foram produzidas fotos e um vídeo. Este material também seria o primeiro a ser enviado ao autor.

Manuscritos da artista

Foram três os roteiros utilizados pela artista durante o processo. Em todos eles, ficaram rastros, anotações, coreografias e outros rascunhos. Todos os roteiros foram analisados durante o trabalho. Os vestígios deixados pelo artista nos darão os meios para captar fragmentos do seu processo criativo, do seu pensamento em ação, pois as marcas no texto deixam ver o ato criador. Nos manuscritos, podem ser localizadas algumas marcas, como informações extratextuais, comentários relativos ao texto e aos próprios ensaios, testemunhando a escritura e as emoções por parte da atriz que ficaram estampadas nas anotações, ou seja, informações do seu próprio processo criativo.

“Diário de Bordo”, ensaios e algo mais

Através do diário de bordo se pode perceber como as cenas vão aparecendo e saindo, como chegam músicas, processos criativos dos artistas envolvidos e sugestões do pesquisador. Ideias que passaram a ter vida na montagem, mecanismos de trabalho, momentos em que se questionam algumas frases do texto, dúvidas, e também o constante movimento da obra a cada ensaio. Personagens que saem, momentos que entram.

04/05/2012

Início do processo. É realizada a primeira leitura. Tentaremos esclarecer os pontos em que existam alguma dúvida inicial. Milena lê o texto, Renato e Vicente se alternam nas didascálias.

Milena questiona se não seria melhor ler os nomes dos personagens em português ao invés de em inglês (pag. 7). Em relação à linguagem do texto, percebe-se que o Blanco pensa em espanhol e escreve em inglês para a sua personagem, a Kassandra dele é hispânica. Há passagens do texto nas quais o inglês rudimentar da personagem é traduzido literalmente do espanhol.

Percebemos que Blanco escreve o texto em inglês pensando em um imigrante hispânico, discutimos a necessidade de mudar as partes que tenham essa particularidade e tentamos mudar para o que seria um imigrante brasileiro. Por exemplo, no texto existia a expressão “it’s heavy” querendo expressar que “es pesado” (uma pessoa). Essa expressão não tem sentido para um brasileiro, já que ele diria que “é chato” e a sua tradução deveria ser: “it’s flat”.

Renato pede para Milena ler com sotaque ruim em inglês. Comenta-se que para quem estudou a língua como a Milena, falar em um inglês ”macarrônico” apresenta mais dificuldade que para alguém que não teve contato com a língua.

Em vários momentos da leitura aparecem momentos engraçados, devido às traduções da personagem, por exemplo, estatuilla (estatueta), que é traduzido por “little status”. Outro momento engraçado da leitura foi quando a personagem tem que ler um trecho do texto em grego com a máscara de Bugs Bunny.

Brincamos com Bugs Bunny, deveria ser uma referência como “LongLeg”… Perna Longa?

Oh mygold! (expressão da personagem), muitos risos e comentários.

Comenta-se que a personagem terá uma grande carga gestual, não só pelo próprio personagem, senão também para suprir algumas dúvidas que possam surgir no público já que o texto é todo em inglês.

Fim da leitura. Discussão sobre quem é Kassandra. Ela é uma reencarnação? É uma travesti que idolatra a Kassandra? É uma louca que acredita ser a Kassandra?

Final trágico.

E-mails trocados pela equipe

Primeiras ideias pros ensaios iniciais de Kassandra:

Lei da Língua Tosca: a partir do momento em que pisamos na sala de ensaio, e em todos os momentos que estivermos dentro dela, apenas podemos nos comunicar em “inglês”.

“Como meu inglês é tosco, acredito que serei um bom exemplo para a atriz. Como minha função é falar e falar e falar, vai ser engraçado, ou trágico, depende”, diz o diretor Turnes.

A ideia aqui é diminuir a distância entre o pensamento (em português) e a fala (em inglês), destruir o “superego” linguístico de oito anos de estudo do idioma, estimular a comunicação gestual da personagem e o fazer-se entender…

Ensaio 1: Improvisação da muamba: Kassandra vendendo produtos importados para nós, os clientes. Kassandra descreve os usos e vantagens dos produtos, tentando nos convencer. Objetos de contrabando, bolsa, salto alto, shortênho.

Ensaio 2: Dublagem: The winner takes it all. Isso eu vou pedir pra ela preparar pro ensaio. 

Ensaio 3: A Fala Trágica: Kassandra conta seu mito, aqui ela pode usar objetos, cartazes, fotos, o que quiser… Tipo contação de histórias, bem épico, gostaria que usasse trechos de Eurípides (em inglês, pode ser lido) e que exercitasse uma fala trágica, densa, gutural, a tragédia na voz.

Ensaio 4: Dança sensual: “Closer” do Nine InchNails: 

http://www.youtube.com/watch?v=PTFwQP86BRs&ob=av2e

Ensaio 5: Profetisa: Kassandra monta uma barraquinha de vidente, fala sobre os arcanos, abre o tarô pra gente, vê o futuro dos outros e o seu.

Os vestígios deixados pelos artistas, neste caso em roteiros, gravações, vídeos, fotos e e-mails trocados pela equipe, junto com o diário de bordo do próprio pesquisador, oferecem meios para detectar o funcionamento do pensamento criativo. Com o cruzamento e o estudo de todos esses documentos, podemos tentar reconstruir o processo de uma dramaturgia que pretende trazer um novo olhar para o fazer teatral, além de possibilitar que os artistas possam revisitar o próprio processo através dos registros, seja para rever a obra ou para identificar uma linha de trabalho. Também podemos ver os pontos de conexão que existem entre a peça, o seu processo e a cultura.

Finalmente, como pesquisador, acredito que, hoje, falar de arte contemporânea significa também abordar processos, redes e obras em movimento.

Referências bibliográficas:

BIASI, Pierre-Marc. A genética dos textos. Trad. Marie-Hélène Paret Passos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.

_______. “O horizonte genético”. In: ZULAR, R. (org.). Criação em processo. São Paulo: Iluminuras, 2002.

GRESILLON, A. “Nos limites da Gênese: da escritura do texto de teatro à encenação”. In: Estudos Avançados, 9 (23), Paris: ITEM, 1995, p. 269-285.

SALLES, Cecília A. Gesto Inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 1998.

_______. Redes da criação construção da obra de arte. São Paulo: Horizonte, 2006.

 

Esteban Campanela Miñoz é doutorando em Literatura, Mestre em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisador do Núcleo de Estudos de Processos Criativos (NUPROC), na mesma instituição. Tradutor para o português do dramaturgo uruguaio Gabriel Calderón.

 

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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